FYI.

This story is over 5 years old.

Vice Blog

A Poesia Lúgubre dos Suicidas Chineses

Alguns casos de suicídio na China têm tido destaque recentemente graças ao tipo de texto escrito por suas vítimas: em vez de cartas de suicídio, elas preferiram deixar poemas para a posteridade.

Alguns casos de suicídio na China têm tido destaque recentemente graças ao tipo de texto escrito por suas vítimas: em vez de cartas de suicídio, elas preferiram deixar poemas para a posteridade. Essa poesia tem a qualidade do estilo "minha vida é um vórtex de tristeza" que já se espera de alguém no auge da agonia psíquica, mas também é bastante literária.

Empresa responsável pelas megafábricas de salário mínimo onde produtos da Apple são feitos, a Foxconn chegou a instalar redes para evitar que os crânios dos funcionários com desejo de morte se espatifassem na calçada. Mas isso não impediu Xu Lizhi, do setor de produção da empresa, de tirar a própria vida no mês passado. Antes de se jogar de um prédio, ele deixou para trás uma coleção de poemas sombrios que oferecem um vislumbre de como é a vida numa gigantesca fábrica chinesa.

Publicidade

Xu escreveu o seguinte sobre a vida no dormitório dos funcionários da Foxconn:

Um espaço de dez metros quadrados
Apertado e úmido, sem luz do sol o ano inteiro
Aqui eu como, durmo, cago e penso
Tosse, dores de cabeça, envelhecendo, ficando doente – mas sem conseguir morrer
Sob a luz monótona amarela, de novo olho para o nada, rindo como um idiota
Ando pra frente e pra trás, cantando baixinho, lendo, escrevendo poemas
Toda vez que abro a janela ou a porta de vime
Pareço morto
Empurrando lentamente a tampa do caixão.

Este é outro poema de Xu, escrito em janeiro, com uma premonição sombria de seu destino:

Um parafuso cai no chão
Nessa noite escura de hora extra
Mergulhando na vertical, tilintando levemente
Não vou chamar a atenção de ninguém
Como da última vez
Numa noite como essa
Quando alguém mergulhou para o chão.

Traduções do chinês para o inglês por libcom.org. Leia o último poema de baixo para cima. Igualmente sinistro.

Diferentemente do que diz o poema, Xu atraiu muita atenção. Depois de sua morte, seu suicídio e seu trabalho foram esmiuçados por publicações como o Washington Post, a Bloomberg Businessweek e a Business Insider. Mas outros casos parecidos não receberam a mesma atenção no Ocidente.

Lou Xuequan, um oficial chinês de Nanquim que caiu em desgraça, tirou a própria vida (link em chinês) três meses depois de ser demitido, em junho. Entre perder o emprego e se enforcar, ele expressou a profundidade do seu desespero através da poesia. Seus poemas foram censurados na internet na época de sua morte, o que não impediu que fossem compartilhados milhares de vezes nas redes sociais desde então. Um trecho:

Publicidade

Para quem deve apontar a espada da traição?
A intoxicação esconde o estrondo do trovão
No meu vagar não encontrei um confidente
Eu sirvo o mestre e ainda bebo tristeza
Minha visão se enche de jovens seguidores que não posso mais proteger
Mas um barco de velhos amigos faz companhia um ao outro
De repente, desperto no cruzamento para o paraíso
E renuncio a um milhão de responsabilidades.

O poema de morte de Lou é complexo, foi escrito de maneira muito tradicional e algumas palavras não podem ser traduzidas com exatidão. Para quem sabe chinês, o original pode ser encontrado aqui, juntamente com tentativas de análise. (Em chinês, a parte "sirvo o mestre e ainda bebo tristeza" é uma alusão muito mais sutil à servidão fiel ao Partido Comunista.)

Perseguição é o fio que parece amarrar todos os poemas de morte. Uma promissora estilista chamada Li Yanmo se matou em seu estúdio, em Pequim, em janeiro do ano passado; alguns meses atrás, veio a público um longo poema dela chamado "Um Retrato Morto". Um trecho:

A grama cresce do asfalto
E alguém derrama mais asfalto por cima
Sinto meu pé esquerdo pisar na minha mão direita
Entre paralisia cerebral e dor no ombro
Você escolhe a última
Só posso recuar
Ver vocês dois brigarem sempre foi um prazer
Você tira sua calça
Eu removo os adjetivos
É assim que podemos ser honestos um com o outro?

A história de Li tem todo um ar de notícia de tabloide. Ela era uma estilista de sucesso que tinha trabalhado como figurinista num grande filme chinês. Mas Timmy Yip, diretor de arte vencedor do Oscar, estava tornando a vida dela difícil, segundo uma postagem da mãe de Li num blog, onde o poema foi divulgado.

Sempre que falo
Você me dá um tapa na cara
Vou te estrangular
Estrangular sua ternura
Como um grandioso assassino.

O poema de Li não parece ter sido escrito como uma carta de suicídio, mas os temas de desamparo e de depressão estão presentes. A versão original pode ser lida aqui.

Usar poemas como cartas de suicídio não é um fenômeno novo, mas todos esses vieram à luz nos últimos meses, e a combinação de tragédia e escrita emocional capturou o imaginário do público. E, em alguns casos, os versos chamaram a atenção para tópicos que não são abordados frequentemente pela mídia. Quantos outros funcionários da Foxconn estão sentados em seus quartos de dez metros quadrados, agora, escrevendo poemas como esses?

Tradução do inglês: Marina Schnoor