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Uma Verdade Incipiente

A doutora Maria Helena Pereira Franco é uma psicóloga especializada em crises de emergência. Pós-doutorada em luto, já foi treinada pela NOVA (National Organization for Victims Assistance) e algumas outras siglas da morte.

A doutora Maria Helena Pereira Franco é uma psicóloga especializada em crises de emergência. Pós-doutorada em luto, já foi treinada pela NOVA (National Organization for Victims Assistance) e algumas outras siglas da morte. Seu trabalho é, basicamente, atender vítimas de catástrofes. Foi ela quem fundou o LeLu (Laboratório de Estudos e Intervenções Sobre o Luto), na PUC-SP, em 1996, e criou, em 2001, o grupo IPE (Intervenções Psicológicas de Emergência), pioneiro neste tipo de serviço no Brasil e que conta atualmente com 35 profissionais. Daí em diante se fez presente na consolação de envolvidos em marcos nacionais como a explosão do shopping de Osasco, a queda do Fokker 100 da TAM, a mid-air collision entre Boeing da Gol e Legacy, o choque do Airbus da TAM com um prédio em Congonhas e o fim do carnaval de São Luís do Paraitinga. Ou seja, se a Defesa Civil pensou “fodeu!” ou o comandante decolou um “deu merda!”, pra ela é “vambora!”.

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Entre alguns dos clientes do IPE hoje estão a Petrobras, Consórcio Linha Amarela (lembra?), a construtora Andrade Gutierrez, Schering e as tais companhias aéreas—inclusive foram eles os responsáveis pela elaboração do plano de emergência da Gol. Sentei com a doutora pra conversar dia desses. Ela tinha acabado de voltar da ilha da Madeira, onde rolou uma versão portuguesa do desastre de Angra dos Reis do começo desse ano. Foi pra lá dar uns workshops e palestras sobre a necessidade de se precaver e saber remediar quando a casa literalmente cai.

Acabei descobrindo que no Brasil esse tipo de trabalho ainda é “incipiente”; que fora os cursos dados pelo próprio IPE não existe quase nada, o que tem lá sua graça, já que o fim do mundo chega antes da Copa. “Mas o interesse está crescendo, mesmo porque cada vez acontecerão mais desastres.” Foi esse tipo de coisa que escutei, mas relaxa que a doutora não é o Al Gore e o que ela faz não é pra aventureiro. Fazer de catástrofes catarses é coisa pra profissional.

O que faz exatamente um psicólogo que atende vítimas de catástrofes?
O papel desse psicólogo antecede o desastre, como isso que fui fazer na ilha da Madeira. Tem um papel de educação, de fortalecer a cidadania… Deixamos claro que as coisas têm que ser levadas em conta antes. A gente já viu tanta coisa acontecer e, puxa, tudo poderia ter ficado mais sob controle.

Mas e depois que acontece?
Depois que acontece, todo mundo é vítima. Todos vão precisar de alguma atenção, sejam os desabrigados, os enlutados ou os profissionais envolvidos – bombeiros, policiais etc. –, que nós também vamos atender. Isso sai do molde tradicional do que todo mundo tem na cabeça sobre o que é atendimento psicológico. Vou te dar um exemplo: você está conversando com uma pessoa que viu acontecer um desastre ou é familiar de alguém que pode ter morrido no acidente. Se for dar um copo de água para essa pessoa, você, sem treinamento, vai dar um copo d’água. Já um psicólogo efetivamente preparado vai dar um copo que não seja de vidro. Por quê? Porque aquela pessoa vai poder, de repente, estourar aquele copo, se ferir, me ferir… Percebe? Num simples copo de água a gente tem um objetivo que é voltado para essa pessoa.

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E por que o interesse nesse tipo de psicologia está aumentando?
Porque os desastres estão crescendo. Lembro de uma reunião na Defesa Civil que me preocupou porque eles diziam, “Olha, a gente vai ter mais. As chuvas vão ser piores, as secas vão ser piores… Vai ter mais desastres”. Os desastres tecnológicos vão ter um impacto maior porque teremos mais aviões voando, mais extração de petróleo com plataformas maiores, o que significa mais gente trabalhando… Enfim.

No Brasil já tem muita gente preparada pra isso?
Não, ainda é incipiente. Precisa se desenvolver, mas acho que precisa se desenvolver seriamente porque é uma situação que, havendo um acidente, tem muita visibilidade. Aí entra a questão: onde está a linha divisória entre a pessoa que quer ajudar e acha que tem algo a oferecer e a pessoa que quer ajudar e tem um ganho secundário de querer aparecer.

Você quer dizer voluntários?
Eu acho que o voluntário precisa ser mais consciente da importância do trabalho dele pra que seja efetivamente aproveitado. Porque, olha, sempre vai ter recurso faltando, seja humano, seja material… Só vai faltar. Então o voluntário é importante. O problema está em como o sistema lida com ele, como prepara esse voluntário. Ela quer ajudar, ótimo, mas tem que saber ser aproveitado.

Eu achava que os profissionais já eram preparados pra lidar com isso.
Como ele já deveria estar preparado, acha que já está preparado, e, às vezes, não respeita seu limite. Tem uma condição, que chama burnout, que a gente toma muito cuidado para não acontecer. Uma boa tradução seria ‘passar do ponto’. São os profissionais que cuidam dessas pessoas e vão além do que suportam, até mesmo se envolvendo demais.

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É comum de psicólogos se envolverem muito com as vítimas que estão ajudando?
A gente não quer que o envolvimento seja com alguém, mas com o pessoal. Queremos dar a noção de que é o grupo IPE, e não a pessoa A, B ou C. Eu faço o trabalho e, na hora que eu paro, o trabalho continua com outra pessoa.

Aliás, quais os erros mais grosseiros cometidos em situações pós-desastres?
Acho que um dos grandes erros é ter uma atitude em relação a essas pessoas que diga, “Você está abrigado, está vivo. Tem que ficar contente”. A atitude de não validar que ali existe um sofrimento, sabe? As pessoas podem estar se solidarizando, dando roupas e tudo, mas o outro lado, o do sofrimento, também existe. Segundo: essas pessoas [vitimados] precisam participar dos esforços de reconstrução. Elas não podem só receber, porque aí você vitimiza. Tem que dar a elas uma rotina, o lado saudável da rotina, fazer com que essas pessoas sejam protagonistas. Cozinhando, dobrando roupa… Tenho visto uma postura muito assistencialista, e é aí que eu não gosto. Tem que juntar as pontas desse rombo que a pessoa viveu pra não termos um monte de dependentes. Queremos que as pessoas comecem a gerir suas vidas de novo, talvez não com a mesma qualidade, mas não queremos um monte de gente pra passar a mão na cabeça.

Qual o caso mais chocante que você trabalhou?
Acho que foi o do shopping de Osasco. Foi como uma troca de casca. Cheguei achando que a gente fosse legal, que bastava querer fazer uma coisa boa, mas não é por aí. Não é beneficência. Me fez perceber muito essa diferença do assistencialismo, voluntariado e beneficência.

Quando alguém diz “não entre em pânico” essa pessoa realmente espera ser obedecida?
Essa é a pior ordem do mundo. Primeiro porque não se dá uma instrução com uma negativa. Seu cérebro não decodifica negativas -- ele vai ouvir como afirmativa, tipo ENTRE em pânico. Tanto que, nos treinamentos, a chamada ‘voz de comando’ fala sem vacilo e dá ordens enxutinhas. Não tem “por favor” ou “por gentileza”, é “vai, vai, vai!”

Agora suponha que alguma catástrofe tenha acontecido com a senhora. Por você já estar envolvida com isso acha que seria mais fácil lidar?
Olha, eu estava indo para um treinamento nos EUA e o meu avião começou a pegar fogo. Comecei a sentir o cheiro de queimado e a ver fumaça. O comandante falou que a gente ia ter um pouso de emergência e pediu para fazermos tudo o que os comissários mandassem. Aí ficava pensando: “tenho que ficar com a cabeça fria, vamos fazer direito.” Só que na minha frente tinham duas moças chorando e se abraçando. Pensei: “que ridículas, isso não vai ajudar em nada. Tem que ficar com a cabeça fria.” Se você soubesse, no dia em que caiu minha ficha, como eu fiquei com inveja de elas estarem uma com a outra… Eu estava sozinha, tinha ido fazer um curso, e aí fiquei desqualificando, sabe? Mas eu queria mais era alguém pra abraçar.

E como fica Deus na equação?
Ele tem ombros largos, viu… Nos desastres naturais pode ter isso de culparem muito Deus, mas também acho que as pessoas estão muito conscientes de que essa distinção é artificial. A distinção entre o natural e o tecnológico -- o evitável -- é artificial porque as coisas acontecem por omissão ou comissão. Ou porque alguém fez o que não era pra fazer ou porque alguém não fez o que era pra ser feito. Aí quando uma pessoa passa por uma situação que a faz pensar na vida, ela vive um processo importante que é o de construção de significado. Falo de construção porque não é descoberta -- ela vai ter que construir o seu, mesmo que seja o mesmo de outra, mas que será o dela. Nesse processo ela passa pelo imponderável, incontrolável, inevitável, abstrações e significados conhecidos que revisita. Então Deus é um personagem importante sim, agora é de cada um como se ele vai se sair como herói ou vilão.