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Jack Kirby

Desenhava quadrinhos desde 1936. Era, e continua sendo, reverenciado por seu dinamismo e criatividade visual. Seus desenhos têm aquela energia vibrante que associamos aos melhores livros de HQs, com personagens irrompendo através das páginas.
Quarto Mundo Big Barda Senhor Milagre
Um pilar da construção "Quarto Mundo", de Kirby: Mr Miracle 16, 1973, de Jack Kirby. Reprodução.

Quando se instalou no sul da Califórnia em 1969, Jack Kirby não conseguia dormir à noite por causa dos motociclistas hippies que dirigiam pela encosta nos arredores de sua casa. O barulho o distraía, e Kirby, um sujeito já tremendamente distraído—cuja mulher, Roz, lhe proibiu de dirigir por ter devaneios vívidos demais—, sofria com isso. Kirby, aos 52 anos de idade, avançava cada vez mais no século XX, que o conturbava e inspirava. Mesmo no seu novo paraíso, assim como nas imagens fantásticas de sua obra, o caos sempre irrompia na superfície.

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Kirby se mudou de Long Island principalmente por causa da asma de sua filha Lisa, mas o sonho americano e Hollywood não atrapalharam. Com exceção do período em que esteve na Segunda Guerra, Kirby havia passado toda sua vida nas cercanias de Nova York. Desenhava quadrinhos desde 1936. Era, e continua sendo, reverenciado por seu dinamismo e criatividade visual. Seus desenhos têm aquela energia vibrante que associamos aos melhores livros de HQs, com personagens irrompendo através das páginas. Sua habilidade de desenhar trajes, cidades e mundos é incomparável. Ele era uma máquina de inventar, e nos anos 60 foi o cocriador de inúmeros personagens (ou melhor, “bens”) para a Marvel Comics (X-Men, Quarteto Fantástico, Incrível Hulk, Homem de Ferro e Thor são criações de Kirby), que viu serem comercializados `a exaustão sem que recebesse nada a não ser promessas e a remuneração habitual por página desenhada. Kirby era um homem digno, e que honrava seus acordos. Acontece que os possíveis acordos com uma empresa de quadrinhos eram mais exigências do que acordos, e a mais importante delas é que a empresa era dona de tudo que o artista criava. Kirby não criou caso até muito tempo depois, quando chegou ao seu limite. E não era ingênuo em relação às suas habilidades. Em uma conversa com Mark Herbert, em 1969, disse: “Eu me sinto como se fosse Deus, porque esses personagens vivem e se movem de acordo com a minha vontade. Bons ou maus, é assim que surgem. Posso até puni-los, apagando-os, mas não estou tão louco ainda. Gosto de fazê-los o mais perfeitos possível, e hoje sinto que é isso que Deus está fazendo conosco”. (Nostalgia Journal 30-31, 1976) Um homem com essa atitude, combinada com um forte senso de lealdade e a necessidade de sustentar sua mulher e três filhos, enfrentaria momentos difíceis. Momentos de tortura. Kirby, um judeu que cresceu pobre no Lower East Side de Manhattan, era divino em suas habilidades. Ele era uma máquina de criar mitos, e sabia disso. Mas era impotente em todas as outras questões práticas. Então,—quando os contratos cinematográficos foram anunciados, os desenhos foram ao ar e outros artistas começaram a dirigir seus personagens, ele ficou bravo. O Kirby se sentiu na obrigação de ir embora.

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Ele deixou a Marvel em 1970 e fechou um contrato de três anos com a DC Comics que lhe garantiu total (ou quase total) controle criativo, e até propriedade. Na Califórnia, ele assumiu a produção de suas obras, e por cinco anos escreveu, desenhou e editou diversos títulos, incluindo a grandiosa saga “Quarto Mundo”, na qual criou um novo panteão de deuses em conflito ao longo de quatro títulos: Jimmy Olsen, O Amigo do Super-Homem; O Povo da Eternidade; Mister Miracle e Novos Deuses. Esses títulos definiram sua obra. Então a DC os cancelou ao fim do contrato, deixando Kirby a todo vapor e à deriva. Ele já havia começado a trabalhar em títulos auxiliares, como Kamandi (1972), mas também pegou outros trabalhos em uma variedade de gêneros, cujas restrições às vezes o irritavam. A guerra era um tema natural para Kirby, e Our Fighting Forces surgiu em 1974. Ambos os títulos, apesar de não terem a forma livre de “Quarto Mundo”, mostram um Kirby em grande forma, brilhante e inventivo.

Kamandi começou como uma imitação de Planeta dos Macacos. A DC não conseguiu os direitos do filme, então pediu a Kirby que criasse algo que pegasse uma parte do público do Planeta dos Macacos. Ele desenterrou uma ideia de HQ que teve em 1956 e colocou a mão na massa. Kamandi é um garoto à deriva em um mundo pós-apocalíptico dominado por uma raça de humanoides com feições de leão. Como quase tudo que Kirby fez, é repleto de humanismo e urgência. O número 6 não é apenas o melhor da série, como também é o ponto alto de toda a carreira de Kirby. Em um passeio de buggy, Kamandi e sua namorada hippie (sempre de topless), Flower, são hostilizados por leões motoqueiros (ao longo dos anos 70, motoqueiros fizeram parte das histórias de Kirby como mocinhos ou bandidos, mas sempre barulhentos). Os dois precisam se esconder. Flower é uma garota voluptuosa, forte, bonita e livre, como todas as melhores mu-lheres de Kirby. Nosso casal de heróis se esconde em uma casa sinistra, onde Kamandi solenemente faz vigília, apesar dos constantes chamados de Flower. Enquanto faz a guarda, ele pensa: “Temos todo o conforto que precisamos aqui. Um homem poderia ficar aqui por tempo indefinido, com comida e abrigo garantido”. Kirby foi da infantaria do Exército, e essa cena lembra suas descrições de suas experiências de guerra em diversas entrevistas—sentar nos escombros de um castelo enquanto aguardava a ajuda chegar ou o outro lado fraquejar. Um homem pode aguentar, pensa Kirby/Kamandi, metido debaixo de um cobertor, arma na mão. Mas a manhã traz consigo um novo ataque, e Flower, que é capturada, se liberta a tempo de colocar seu belo corpo na frente de um tiro de rifle, morrendo para salvar seu amante. Silenciosamente, Kamandi a carrega para fora para velá-la.

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Kirby gostava de temas populares, que pareciam, na superfície, tolos. Mas ele ia fundo neles, descobria aspectos primitivos e os destacava. Para Kirby, um homem deve proteger e, se necessário, lutar, mas ele preferia a paz. Um homem pode ficar solenemente de prontidão, mas não deve ter medo de caçar e amar. É uma abstração dos valores mitológicos mais básicos, de alguma forma transformados em entretenimento. Não é didático, mas Kirby passa a mensagem. Ele anseia por hombridade e responsabilidade, mas não tem medo do amor e do luto. Não é um hippie, nem um espartano da guerra fria, mas uma espécie de humanista popular. Pode-se pensar nele assim: Kirby era um visionário que guardava a lembrança de sua mãe imigrante austríaca judia; que sustentava sua família com seus desenhos em meio à Depressão; que foi um dos criadores do Capitão América e depois lutou e matou durante a Segunda Guerra. Mais tarde, de uma casa em Long Island, começou a ver o século passar. Compreendeu o quão diferente as coisas estavam ficando e que havia ultrapassado um limiar inimaginável. Isso se reflete em sua obra, em especial nos anos 70. Ele atravessou uma bonança cultural popular, e agora era hora de voltar às suas raízes dos anos 40 e 50, partindo das formas mais populares a fim de realizar uma visão de mundo que era divina em sua capacidade de marcar época, e que assumia a defesa de um conjunto de valores. Os colegas de Kirby costumam dizer que quando ele desenhava (da esquerda para a direita ao longo da página, em geral sem planejar as composições por inteiro antecipadamente), era como se estivesse copiando uma imagem interna. Kirby disse certa vez: “Sempre que começo um desenho a lápis sinto que é aquilo mesmo. Pode parecer excêntrico, mas se eu fosse passar a tinta, eu estaria desenhando a imagem novamente sem nenhum motivo. Não passo a tinta se não for necessário. Acho que o desenho a tinta é uma outra forma de arte”. (Nostalgia Journal 30-31, 1976). Para Kirby, o ato inicial de criação era o começo e o fim de seu processo. Outros artistas consideravam as imagens a tinta (somente fotografias de imagens a tinta eram apropriadas para reprodução) o fim, mas Kirby não. Para um homem que passava rapidamente de uma ideia à outra, um homem capaz de fazer 20 páginas por semana ou mais, qualquer tempo gasto “redesenhando” uma página era um desperdício de energia criativa valiosa. E Kirby era daqueles artistas raros que podiam se mover para frente e para trás no tempo com facilidade, parecia capturar o passado e o presente em uma única imagem. A imagem de página dupla de Kamandi 8 é um exemplo perfeito dessa sensibilidade e do próprio Kirby: um museu pós-apocalíptico imaginário no qual o Lincoln Memorial está pendurado no alto entre artefatos de uma nova civilização esotérica. E nenhum desses artefatos é mais significativo do que aqueles deixados para trás pela guerra.

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Já no fim de seu período na DC Comics, ele estava trabalhando em uma história chamada “The Losers” para uma HQ chamada Our Fighting Forces. O que é curioso em “The Losers”, como todas as HQs que escreveu, desenhou e editou, é que parece ser a guerra que Kirby viveu. Em vez de líderes heróis ou patriotismo, Kirby desenha uma gangue que, apesar de interessante, serve principalmente para segurar a ação e sustentar as histórias. O próprio Kirby foi convocado em 1943 e chegou na Normandia em agosto de 1944, apenas dez dias depois da invasão, cujos sinais ainda estavam visíveis, como ele recordou mais tarde: “Todos os soldados ainda estavam lá, pelo chão”. Kirby viu e vivenciou eventos terríveis, incluindo a liberação de um campo de concentração. Trinta anos depois, lá estava ele desenhando a guerra, relembrando coisas ocorridas há tempos. Ele não mitificava. Nem dava lições de moral, como fica claro para quem lê a história toda. O desenho é limpo e diagramático—estranhamente limpo para um assunto frequentemente grotesco, mas olhe uma página após a outra e você verá que a clareza é necessária porque os “Losers” estão em constante movimento: a próxima ação está sempre prestes a ocorrer, e Kirby nunca interrompe esse avanço. “The Losers” é uma versão fantasmagórica da guerra, elaborada pela mente de Kirby como se fosse uma forma de acertar as contas com a Segunda Guerra Mundial. “Não há nada de ‘romântico’ na guerra”, ele disse a Ray Wyman (Jack Kirby Collector 27, 1999). “Claro, nos filmes e na televisão eles pintam um quadro otimista do companheirismo que ela cria. Eu vi a guerra aproximar pessoas, mas posso dizer que o custo é extremamente alto: não apenas em termos de vidas, mas também para o espírito humano. Acho que a guerra nos diminui, nosso caráter como raça é de alguma forma reduzido por cada guerra que permitimos acontecer. Hitler teve de ser destruído, não havia escolha, e eu fico feliz em ter cumprido o meu dever, mas se houvesse uma outra forma de tirá-lo do poder eu teria preferido. Talvez os alemães fossem derrotados por suas próprias ambições—não poderiam dominar toda a Europa para sempre—quanto mais você empurra as pessoas para baixo, com mais força elas resistem. É da natureza humana ser livre, e eu sinto que eventualmente teria havido uma revolta. Talvez tenha sido a coisa certa a fazer, mas acho que isso não se aplica a outras guerras que esse país [EUA] lutou. Esse país sempre esteve em guerra—começou com uma. Talvez também termine assim.”

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As três páginas do clímax de Our Fighting Forces (Nossas Forças de Combate) 156, 1975.

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No número 156 de Our Fighting Forces, Kirby relembra a gloriosa Nova York dos tempos de guerra, com direito a elaboradas marquises e uma multidão vibrante, enchendo de maneira esplendorosa as ruas. Mas na obra de Kirby, a normalidade é sempre um risco: quando os heróis reconhecem um espião nazista na multidão, a explosão de ação é puro Kirby, na velocidade das linhas e formas. Uma vez mais, Kirby parece ansiar por humanidade nisso tudo. Os anos 70 foram bons para Jack Kirby. Livre na Califórnia e recomeçando sua vida, inventou e reinventou num ritmo impressionante—pulando entre mundos e eras com um sucesso que nunca mais atingiria. Em 1975 voltou relutantemente para a Marvel por alguns anos antes de ir trabalhar com animação, aposentando-se parcialmente das HQs. Ele viveu até 1994. Passou seus últimos anos recebendo elogios de seus fãs. Mas o ruído dos motoqueiros nunca ficou para trás, e até o fim Kirby manteve sua dignidade e sua busca pessoal: “Sou um sujeito que vive com muitas questões”, disse no documentário The Masters of Comic Book Art, de 1987. “Eu pergunto: ‘O que existe lá fora?’, e tento responder isso, e nunca consigo. Quem sabe a resposta? Eu adoraria ouvir a resposta definitiva. Mas ainda não a ouvi. Então vivo com um monte de perguntas. Acho divertido. E se a minha vida terminasse amanhã, estaria realizada. Eu diria, ‘As perguntas foram ótimas’”.
Uma página meio a tinta do não publicado True Life Divorce (Divórcio da Vida Real), 1970. Essa página é um ótimo exemplo de como o traço a caneta do Kirby era detalhado antes mesmo de ir para a tintagem.