Primavera Sound - Dia 3 - Génios loucos à solta e a garantia de qualidade dos National

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Música

Primavera Sound - Dia 3 - Génios loucos à solta e a garantia de qualidade dos National

O dia da enchente.

O terceiro e último dia do Primavera Sound teve a maior enchente. Ao contrário dos dias anteriores, os espectadores dos dois palcos principais preencheram a encosta até bem cá acima durante boa parte da noite, sendo difícil penetrar na multidão. E mesmo nos secundários notava-se uma maior afluência. O principal motivo para o acréscimo de público terá sido The National (e possivelmente os Neutral Milk Hotel e St. Vincent). Havia também muito mais crianças, alguns bebés em carrinhos, e famílias, muitas, facto para o qual não encontramos outra razão que não ser Sábado. É possível que haja outra.

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João Rocha Pereira Três serrotes não serão o instrumento mais comum de ser encontrado num qualquer palco, mas pouca coisa será convencional no que toca aos Neutral Milk Hotel. Não só pelo longo interregno, agora interrompido para uma série de concertos onde se integra este, mas também pelo estatuto de culto que o segundo disco da banda liderada por Jeff Mangum, In The Aeroplane Over The Sea, atingiu desde o seu lançamento. Até o concerto se inicia de forma invulgar, com Mangum sozinho em palco, de guitarra em mão e pedindo para que os telefones e máquinas fotográficas fiquem no bolso — pedido que voltou a repetir quando um audaz festivaleiro ousou fotografar a banda, e tão enfatizado que nem houve lugar a fotógrafos de imprensa ou imagens nos ecrãs laterais. Musicalmente falando pouco há a dizer senão que foi óptimo: a banda, com o visual rústico recheado de fartas barbas, bigodes e com Julian Koster — mestre na arte do singing saw — trajado de algo muito parecido com o Noddy, distribuiu de forma exemplar as canções dos discos e EP's para um público que sabia bem o que estava a ouvir: "The King of Carrot Flowers" arrancou as vozes dos presentes, "Holland", "1945"tirou os pés do chão e em "[untitled]" até o tímido Jeff Mangum saltou. No fim, deu um agradecimento generoso. Ele disse que foi sentido, e nós acreditamos. Se os Neutral Milk Hotel se estreavam por estas andanças, em sentido inverso os The National conhecem isto como poucos. Merecedores de enchente no palco principal, em boa verdade o alinhamento nem foi assim tão diferente do apresentado há uns meses em Lisboa, mas isso pouco importa porque o Matt Berninger bem podia continuar a apresentar as canções de coração partido durante vinte dias seguidos, que teria sempre milhares prontos para lhe lamberem as feridas. À quarta canção subia a Annie Clark para ajudar na Sorrow, pouco tempo antes de ela própria subir a palco enquanto St. Vincent. Acompanhados por óptimos visuais no cenário de fundo — particularmente a viagem marítima em Conversation 16 — esta foi mais uma noite de sucesso para os National. Basta ouvir as vozes que se ergueram em I Need My Girl ou Fake Empire, o habitual passeio de Berninger pelas primeiras filas, ou pelas emoções despertadas aqui e ali na multidão pelos refrões que todos conhecem. Os National são para nós uma banda especial — e o facto de This is the Last Time até ter sido a canção escolhida para os spots de TV do festival prova um bocado isso. João Lameira Primeiro, entra a banda em palco – órgão, bateria, duas guitarras, baixo, saxofone e trompete – para aquecer os espectadores, que ensaiam já um movimento ou outro. Depois, só depois dos corpos estarem bem oleados para a dança, entra Charles Bradley, figurão de calças e casaco vermelhos, directamente saído dos anos 60/70 (décadas em que, ironicamente, não conheceu o sucesso), o irmão gémeo que James Brown nunca teve (Bradley emula a bem conhecida pose de joelhos de Brown). Está aberto o museu do soul-funk. Embora seja óbvio que se está na presença da real thing e seja sempre saboroso visitar tempos felizes que nunca se viveram — quando dezenas de músicos abriam o coração ao ritmo de uma sumptuosa combinação entre groove e melodia por essa América fora —, fica a sensação que se está perante uma representação do que já foi e não voltará a ser. É música vintage que pode ser usada como qualquer outro acessório. Nota-se mais isso na banda, constituída por jovens brancos, do que no próprio Bradley, um espectáculo dentro do espectáculo, um homem que se pode finalmente divertir a fazer aquilo que gosta e transmitir o amor pela população, como quer. Mais do que pela dança dos corpos (muito louvável), o concerto vale por ele. Por esta hora, os St. Vincent preparava-se para mostrar serviço no palco (e diz quem viu que foi muito bom), mas valores mais altos se levantavam no palco onde já estávamos: os Slint. Passados poucos minutos do início do concerto alguém do público “isto é a melhor banda do mundo, caralho!” e quem somos nós para o desmenti-lo (estamos até mais perto de concordar). Apesar de todas as “tentativas” de sabotagem — as canções de St. Vincent que se ouviam nos momentos mais calmos (e se há música que esculpe o silêncio é esta) ou os espanhóis que gostam de se fazer ouvir por cima de qualquer concerto (e foram brindados com uns quantos schius!) ou a própria postura tímida da banda americana (quem viu o documentário Breadcrumb Trail ou conhece minimamente a história do grupo, sabe que ninguém ali goza de uma saúde mental muito recomendável: são génios loucos, à maneira de Jeff Mangum) —, este foi o concerto do festival (ultrapassando o óptimo concerto dos Slowdive no dia anterior). Por muito que Goodspeed You! Black Emperor, Mogwai  se tenham especializado em construir canções em crescendo (cada vez mais barrocamente), a génese do chamado pós-rock está em Spiderland, o notável segundo álbum dos Slint, cujas canções constituíram grande parte do concerto. Houve um cheirinho o outro do EP auto-intitulado e do primeiro disco Tweez, mais convencional mesmo que apresente muitas das qualidades que fazem a grandeza da banda americana: a bateria de hardcore desconforme de Britt Walford, os floreados da guitarra de David Pajo, o baixo agregador (que já passou por muitas mãos e está nas de Todd Cock), o sussurro antes do grito de Brian McMahan (que quando canta é substituído na guitarra por Michael McMahan). No entanto, para provar a genialidade dos Slint bastaria passar pelas catarses das inultrapassáveis “Washer” e “Good Morning, Captain”. Esta última fechou o concerto, uma vez que depois daquela violência emocional não é possível mais nada. E não só o concerto de Slint deveria ter ficado por aí como o próprio Primavera. É verdade que depois apenas vimos os Cloud Nothings, rock a 200 km/hora que só consegue recuar no tempo para oferecer uma desinteressante “variação” (muitas aspas) do que já foi feito cerca de 1500 vezes nos últimos 40 anos, uma adenda perfeitamente desnecessária na história do festival, da música e das nossas vidas.

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