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Música

Você nem desconfia, mas o Gilles Peterson é BFF do Ed Motta

O DJ britânico, apresentador de rádio e escavador de raridades musicais conta como, numa visita ao músico-sommelier carioca, descobriu a origem obscura de “Mas que Nada”, que ficou famosa na versão de Jorge Ben e ganhou um remix pop do Black Eyed Peas.
Foto cortesia do artista.

Se houvesse um Hall da Fama de Escavação de Discos obscuros, o britânico Gilles Peterson, DJ, apresentador de rádio e dono de gravadora, seria uma presença óbvia. Durante toda sua célebre carreira "em busca da batida perfeita" (como a bio dele no Twitter descreve suas aventuras), Gilles, de 51 anos, sempre trabalhou para tocar, apresentar e lançar discos que parecem ter viajado pelo mundo inteiro antes de chegarem ao seu fone. É um tema presente em seu programa de rádio, que tem o nome certeiro de Worldwide Radio Show, assim como de sua gravadora, a Brownswood Recordings, pela qual ele lançou seus próprios projetos de discos em colaboração, e soltou discos solos de artistas com quem tem afinidades, como Mala e o Four Tet.

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Um fascínio antigo de Peterson é a cultura musical brasileira. Desde o início dos anos 90, ele lançou uma série de compilações dedicadas ao nosso país, e em 2014 lançou um novo projeto, o Sonzeira, voltado à celebração do legado musical do Brasil. Por meio do lançamento de Brasil Bam Bam Bam, sua banda Sonzeira reuniu artistas contemporâneos da música eletrônica como Sam Shepherd (o Floating Points) com importantes músicos brasileiros, como Seu Jorge, Marcos Valle e Elza Soares.

Dois curtos anos depois, Peterson retomou a Sonzeira, com um novo disco chamado Tam Tam Tam Reimagined, também com foco em unir o passado e o presente do Brasil, desta vez reimaginando músicas do disco de 1958 Tam… Tam… Tam! do icônico músico brasileiro José Prates, um dos prediletos de Peterson. Lançado pela Polydor quando Peterson ainda era criança, o disco de Prates continha a faixa "Nânâ Imborô", que se tornaria o "protótipo" da hiperentoada "Mas Que Nada", que nós conhecemos na versão do Jorge Ben, uma música que ficou famosa no mundo ao ser sampleada pelo The Black Eyed Peas em 2006. Hoje, Peterson conta a história de como uma aventura até o Rio de Janeiro, e à casa do músico brasileiro Ed Motta, lhe apresentou ao disco, e abriu caminho para o seu próprio lançamento.


Gilles Peterson: Meu disco brasileiro favorito é Tam… Tam… Tam!, do José Prates. A história do disco se revelou para mim quando fui à casa do Ed Motta dois anos atrás, parte da preparação para uma gravação que eu faria alguns meses depois. Foi meio que uma sessão preliminar, para ver com quem eu iria trabalhar nesse disco Brasil Bam Bam Bam, embora eu não soubesse qual seria o nome do disco naquela época. Fui pra lá com o Floating Points, com quem eu planejava fazer um disco, junto também com o Marcos Valle.

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Passamos a tarde na casa do Ed Motta, fazendo o que você tem que fazer quando vai ao Rio, que é almoçar com o Ed Motta. A gente acabou indo pra casa dele e, para falar a verdade, um dos grandes privilégios da vida no meu mundo é poder passar qualquer tempo na companhia [do Ed]. Eu queria que o Sam [Shepherd, o Floating Points] tivesse essa experiência, então a gente acabou tendo um dia maravilhoso, e por fim fomos para o andar de cima do apartamento do Ed, para a sala de ouvir música, que é uma coleção insana de cervejas, quadrinhos, vinhos e discos.

O Ed vê a música por um ângulo um pouco diferente se comparado a nós que somos DJs — um ângulo um pouco mais acadêmico, acho, na consciência que ele tem das músicas e das ligações entre elas. Um disco específico que ele pegou foi o desse artista José Prates. Foi gravado em 1957, mas saiu em 1958 pela Polydor, e nele há uma versão original de "Mas Que Nada", embora no disco ela tenha outro nome. Basicamente o lance todo do Ed era o seguinte: "Isso aqui é incrível, é um pequeno artefato arqueológico da música. Já ouviu isso aqui?" [Sam e eu] ficamos de queixo caído com essa versão. Se você perguntar para qualquer pessoa de fora do Brasil, "Mas Que Nada" provavelmente seria considerada o clássico brasileiro.

A gente achava que "Mas Que Nada" tinha sido composta pelo Jorge Ben, que fez sucesso com um cover da música, e a mesma coisa aconteceu com o Sérgio Mendes depois. A mais recente, na verdade, foi uma versão do Black Eyed Peas. Ao ouvir esse disco, o que achei incrível nele foi que o Jorge Ben na verdade aparece nos créditos como compositor da música. Mas é óbvio que não foi ele, porque a gente encontrou nisso aqui a sua fonte de inspiração: "Nânâ Imborô" do José Prates (do disco Tam Tam Tam).

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O que me faz lembrar de uma outra música do Jorge Ben chamada "Taj Mahal", que o Rod Stewart surrupiou sem perceber, quando foi para o Carnaval enquanto estava gravando o disco que tinha a música "Do You Think I'm Sexy". [Rod] foi para o Brasil numa folga e ouviu essa música, daí ele voltou para casa e compôs uma música com a mesma melodia, achando que era dele.

Nisso o Jorge Ben ficou tipo: "Pera lá, esse cara roubou a minha música." Então, depois de um toma lá dá cá entre os advogados, o Jorge Ben conseguiu o crédito e os direitos de publicação. Então achei muito irônico a gente encontrar uma música em que o Jorge Ben tinha levado o crédito, mas que não era dele. Ed contou tudo isso para a gente e depois nós ouvimos o resto do disco.

Mas, para mim, o incrível mesmo desse disco é que ele é a melhor descrição das duas forças musicais muito fortes que entraram no Brasil. Da Europa, tinham os descendentes dos colonos portugueses, que trouxeram consigo o som europeu da ópera e da música clássica, e depois o som africano que veio dos escravos. Então esse é um disco que combina um velho tipo de tradição europeia com sons afro-brasileiros. Isso fez minha cabeça estourar. Há também toda aquela abertura do jazz, porque os anos 50 foram a era do Kind of Blue, do Miles Davis, e daquele lindo período do jazz.

No Tam Tam Tam você pode ouvir um tipo de som lindo, um jazz modal, misturado com arranjos vocais operáticos, e também com uma percussão afro-brasileira. Era meio que o elo perdido entre a bossa nova e o samba, num certo sentido, porque o samba está aí desde o início do século passado, mas a bossa nova surgiu com Tom Jobim e João Gilberto mais tarde. Então foi tipo: "Meu deus, então era essa a música que rolava antes da bossa nova". Foi uma experiência fascinante para mim e para o Sam.

Basicamente, depois, fiquei à procura [do disco] durante anos, e não conseguia encontrar. O que aconteceu foi que, como o Ed é seguido por muita gente nas mídias sociais, ele obviamente escreveu sobre o disco, e as poucas cópias que ainda circulavam desapareceram. O Jonny Trunk acabou ouvindo essas histórias e o relançou usando a cópia do Ed, porque o disco — que tem mais de 50 anos — já está em domínio público. Assim [o Jonny] não precisou pagar os direitos.

Então, partindo do mesmo tipo de premissa, acredito, achei que isso era uma coisa que eu poderia usar para criar uma versão que eu pudesse tocar nas boates. Foi esse o raciocínio por trás do meu novo disco do projeto Sonzeira, Tam Tam Tam Reimagined. O lance todo foi que eu amei o disco, achei que poderia colocar ele para tocar em alguns lugares, mas queria pegar aquilo e reconstruir eletronicamente. E o "reimagined" se refere a isso. Eu queria incorporar coisas como footwork e hip-hop, já que eu sentia que havia vários paralelos com certos ritmos contemporâneos de dance.

'Tam Tam Tam Reimagined' está disponível pelo Bandcamp .

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