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reportagem

Explicando o batismo de grupos indígenas

“Genocídio é o extermínio físico e o etnocídio é o extermínio cultural.”
Primeira missa no Brasil. Imagem de domínio público

Esta matéria foi atualizada.

Em 22 de agosto, o pastor Isac Santos publicou no Facebook uma foto com um grupo de índias da comunidade xavante, em Água Boa (MT), e relatou ter batizado 38 índios, incluindo o cacique. Muita gente viu no batismo um flagrante desrespeito à cultura e à liberdade xavante. Após o episódio, a página do pastor está indisponível no Facebook.

Imagine que o seu grupo social tem seus próprios costumes, por meio dos quais vocês sempre viveram em harmonia. Mas um grupo estranho chega sem aviso à sua quebrada para mostrar que vocês estão errados e começa a obrigá-los a adotar o estilo de vida que eles julgam ser o correto. Isto é chamado etnocídio. "Genocídio é o extermínio físico e o etnocídio é o extermínio cultural", explica a professora de antropologia da FESPSP Caroline Cotta de Mello Freitas.

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A prática é recorrente no Brasil desde o século XVI. Jesuítas portugueses foram enviados pela coroa portuguesa para catequisar os índios em âmbito salvacionista, ou seja, partiam do princípio de que as almas deles somente seriam salvas por meio da conversão ao catolicismo. À época, os índios também foram escravizados pelos colonizadores e assim continuaram até o século XVIII, ainda que em menor escala — o fim da prática com indígenas terminou no final desse mesmo século. No entanto, até hoje, a catequização de índios continua. Não são raras as notícias sobre grupos indígenas evangelizados.

Há ainda quem tente ressignificar essa prática como um ato filantrópico. Mas, para estudiosos, a partir do momento em que um ato solidário é condicionado à conversão religiosa, ele se torna imposição cultural. "Convertê-los à fé cristã e considerar isso um gesto de bondade só mostra o quanto precisamos rever valores na busca de uma sociedade mais justa, igualitária e que saiba conviver com a diferença", pontua Edmundo Antonio Peggion, professor de antropologia da Unesp de Araraquara.

A percepção simplista de que todos os índios são preguiçosos e vivem no atraso é uma construção racista. É o que defende Ruth Künzli, professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp. "Considerar a 'sua' cultura como superior dá origem a preconceitos e à ideia da supremacia de uns sobre os outros. Veja o que aconteceu em Charlotteville, nos EUA."

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Entidades religiosas que impõem crenças religiosas aos índios estariam cometendo irregularidades. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
Apesar disso, chama a atenção o viés político de quem deveria garantir a integridade indígena.

Procurada para falar sobre o caso, a Funai (Fundação Nacional do Índio) — hoje presidida pelo general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas — informa que a presidência da entidade é responsável pela autorização para entrada em terras indígenas após realização de análise técnica do pedido. De acordo com o órgão, "não há instituições religiosas autorizadas a atuar em terras indígenas", sendo que as autorizações para instituições religiosas poderem atuar em áreas indígenas estiveram orientadas, no passado, "para a ajuda humanitária, mediante o estabelecimento de convênios entre a Funai e as instituições religiosas para atendimentos à saúde e à educação". A Funai informa também que esse procedimento foi extinto após o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação terem se tornado responsáveis por trâmites do gênero."

"O xavante tem uma forma de resistência muito sofisticada contra esses 'brucutus' de almas." É assim que Felipe Milanez, professor de descolonização do conhecimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, descreve a postura do grupo indígena em relação aos episódios como o do batismo. Milanez está convicto de que apoiar a cultura Xavante é um dever de todos. "Defender o xavante é defender todo mundo no Brasil, porque a violência dessa conversão forçada deve atingir todo mundo."

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Quem compartilha a mesma linha de raciocínio é o líder xavante Jurandir Siridiwe Xavante. "É muito triste, pois essas pessoas acham que estão fazendo bem, mas não estão", pontua. De acordo com o líder indígena, apesar de os índios considerarem ações desse tipo algo aleatório, iniciativas de cunho religioso estão destruindo a cultura deles. Mas é importante ressaltar o espírito de resistência xavante. "Eu estudei no catolicismo e em escola protestante, mas não me converti. Eu estava de olho na alfabetização e na educação", completa Jurandir.

O outro lado

Procurado pela reportagem, o pastor Isac Santos relatou que ele e sua família já conheciam havia algum tempo os xavantes de Água Boa (MT) e que os ajudavam, por meio de doações de roupas, como "fruto de uma boa amizade" e sem a finalidade de batizá-los. "Porém, há quatro meses eles nos pediam o batismo e demoramos [esse mesmo período] para aceitar", contou sobre o processo, segundo o qual foi restrito aos índios que fizeram o pedido.

Questionado sobre um vídeo gravado pela vereadora Aninha Carvalho (Solidariedade, de Trindade - GO), no qual aparece cantando uma música evangélica com crianças xavantes, ele relatou que se tratava de um momento no qual ela iria distribuir doces a eles, que inclusive já conheciam a canção.

A vereadora, que segundo o pastor estava a passeio na região, não respondeu aos contatos feitos até a publicação da reportagem.

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