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Visitei o Acampamento da Irmandade Muçulmana no Cairo Logo Antes do Ataque dos Militares

A turnê em Rabaa mostra o lado mais alegre da mobilização da Irmandade Muçulmana.

Homens passam por cartazes de Mohamed Morsi e mártires na praça da mesquita Rabaa al-Adawiya, ocupada pela Irmandade Muçulmana, dias antes de os militares desmantelarem o acampamento. Todas as fotos por Mat Wolf.

Esta manhã, o Exército Egípcio finalmente cumpriu suas ameaças e lançou um ataque em grande escala aos acampamentos de protesto da Irmandade Muçulmana, incluindo o principal deles na mesquita de Rabaa al-Adawiya no distrito de Nasr City, Cairo. Durante todo o mês passado, milhares de simpatizantes do presidente muçulmano recentemente deposto, Mohamed Morsi, realizaram protestos contra sua derrubada pelos militares. Esses e outros enfrentamentos entre as forças de segurança e os manifestantes deixaram pelo menos 130 mortos. O governo egípcio afirma que 13 pessoas foram mortas na violência de hoje, mas é bem provável que esse número seja muito mais alto. Os manifestantes que estavam nos acampamentos enfrentaram a polícia jogando pedras, garrafas e incendiando entulho, mas isso, obviamente, não foi páreo para as metralhadoras, tanques e gás lacrimogêneo do exército.

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Dias antes do brutal ataque militar, os liberais do Egito pediram que os militares agissem com mais agressividade contra os acampamentos e a ocupação da Rabaa foi acusada de ser um acampamento terrorista que abrigava combatentes estrangeiros e onde atividades sexuais imorais e abuso infantil aconteciam. Apesar de algumas organizações internacionais refutarem essas alegações, a Anistia Internacional encontrou evidências de que a Irmandade estava torturando seus oponentes políticos. Os manifestantes resolveram afastar esses rumores convidando qualquer pessoa interessada para visitar o acampamento.

Semana passada, quando os manifestantes se preparavam para o confronto inevitável com o exército, participei do Rabaa Tour, um passeio em inglês pelo acampamento da Irmandade. Isso era uma tentativa de contornar os canais tradicionais de mídia, que são majoritariamente controlados pelo governo (logo antes de Morsi ser derrubado, os canais de TV islâmicos foram tirados do ar). Mohamed Zain e mais outros 15 simpatizantes da Irmandade criaram o passeio semanas atrás, juntamente com uma página do Facebook que traz vídeos e fotos dos manifestantes e que continha o slogan “Já ouviu o suficiente? Hora de ver por si mesmo”.

Um homem segura um cartaz defendendo Morsi e pedindo a morte do General Abdel Fattah el-Sisi, o comandante das forças armadas egípcias.

“Muitos rumores estão se espalhando pela mídia, principalmente na mídia local”, Mohamed me disse. “[Eles dizem] que o protesto tem armas, que somos violentos e que o governo está em guerra contra o terrorismo, o que não é verdade.”

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Mohamed estava muito distante da aparência e da atitude estereotipada de um membro barbado da Irmandade. Quando falei com ele, o jovem de 27 anos, que estava estudando para ser farmacêutico, vestia uma camiseta xadrez, jeans e nunca tirava o fone do celular de uma das orelhas. Ele disse que nem era tão interessado em política, mas que era a favor dos protestos porque não podia apoiar o golpe militar não democrático que derrubou Morsi. Ele também insistiu que a maioria no acampamento era como ele: mais contra o golpe do que a favor da Irmandade. Ele estimava que só um quarto das pessoas reunidas ali eram membros da Irmandade Muçulmana.

“Muitas das pessoas que estão dos protestos não são ligados à política, eles não vêm de uma perspectiva política”, ele disse. “Eles vieram de uma perspectiva de direitos humanos, para praticar a democracia.”

Tive a oportunidade de andar pelo acampamento sem acompanhamento antes de falar com ele, e me pareceu que Mohamed estava subestimando a presença da Irmandade. Nem todo mundo de barba era da Irmandade, mas o acampamento também não estava povoado por defensores progressistas da democracia secular. Cartazes pedindo a execução do chefe do Exército do Egito, General Abdel Fattah el-Sisi, eram segurados no alto, assim como faixas afirmando que o golpe tinha sido orquestrado por sionistas e norte-americanos. (Esses tipos de acusações e exigências também não eram incomuns nos protestos anti-Morsi.)

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Os arredores do acampamento tinham sido fortificados com barricadas improvisadas de tijolos, sacos de areia e até concreto em antecipação ao confronto futuro com os militares. Vi muitas mulheres e crianças e, o mais bizarro, um enorme pula-pula inflável e uma piscina infantil próximos da entrada principal. As crianças pareciam estar se divertindo, mas o parquinho inflável junto às barricadas não ajudava muito a conter os rumores de que as mulheres e crianças estavam sendo mantidas ali como escudo humano. No entanto, não vi nenhuma arma ou sinais de salas de tortura, e para ser honesto, os caras da Irmandade foram realmente amigáveis e simpáticos. Todo mundo que entrava era revistado, mas o cara barbado de meia-idade que me revistou pediu desculpas dizendo que isso era necessário e apertou minha mão quando acabou.

Exceto pelas faixas, a maior parte do acampamento poderia passar por uma feirinha de rua muito deprimente. Havia barraquinhas de bebida e comida nas calçadas e muitas tendas de lona e plástico montadas para proteger o pessoal do calor do meio-dia – onde a maioria dos manifestantes ficava. As crianças corriam por toda parte espirrando bolhas de sabão pelo ar. Jogos improvisados de futebol e vôlei, juntamente com marchas contínuas, geralmente divididas por gênero, pareciam ser as principais atividades do lado de fora das barricadas. Era difícil acreditar que aquele era um acampamento cheio de terroristas, como os oponentes da Irmandade e o governo alegavam.

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A tenda que servia como quartel general da Rabaa Tour, coberta com ilustrações dos mártires.

Quando cheguei ao acampamento para participar da Rabaa Tour, disseram-me para encontrar Mohamed na “grande tenda branca coberta com os rostos dos mártires”. Eles disseram que seria fácil encontrá-la, mas não foi bem assim – o lugar estava cheio de tendas brancas cobertas com os rostos dos mártires. Quando, finalmente, achei a tenda certa, entrei num espaço cheio de bancos alinhados em frente a uma TV de tela plana usada para mostrar vídeos das injustiças dos militares. Os retratos ensanguentados dos mártires mortos e feridos pelas forças do governo estavam pendurados dos dois lados da tenda, juntamente com um par de tênis coberto de sangue de uma das vítimas baleadas.

Mohamed me apresentou a Omaima Halawa, 21 anos, e Noha El Eraki, 22, duas egípcias que viviam e estudavam na Irlanda, mas que voltaram ao Egito para participar dos protestos. Omaima disse (num inglês perfeito, com sotaque irlandês) que estava ali por sua própria vontade e que não era um escudo humano, e acrescentou que teve que enfrentar os pais quando insistiu em vir. Para ela, protestar na Rabaa al-Adawiya não era apenas um direito, mas um dever.

“Praticamos a democracia na Irlanda, então, quando soube da ideia de não poder praticar isso aqui, pensei tipo: 'Meu Deus, temos que acordar, isso é realmente sério'”, ela me disse. “Mesmo para quem não se interessa por política, isso é sobre uma situação democrática agora… é sobre nossos direitos como humanos.”

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Noha também reforçou a tese de Mohamed de que os acampamentos não eram exclusivamente para apoiar a Irmandade.

“Não quero dizer nada de ruim sobre [a Irmandade Muçulmana], mas nem sempre concordo com eles. Todos nós temos pequenas discordâncias; não estou disposta a me comprometer com eles”, ela disse. “Não sei por que eles vincularam isso a Irmandade Muçulmana – é muito mais do que isso.”

Mural com fotografias dos mártires mortos e feridos pelas forças do governo na tenda da Rabaa Tour.

Depois que saí da tenda, me disseram que eu podia ir para onde quisesse, mas que eu não devia deixar de passar pelo centro médico e pela área do palco principal. De acordo com o guia do passeio, os críticos do acampamento afirmavam que as armas e as celas de tortura estavam escondidas sob o palco principal. Claro, não havia armas lá, pelo menos não quando visitei o lugar, só pessoas dormindo. Um dos homens lá dentro me disse que as histórias sobre armas eram uma piada; na verdade, era o acampamento anti-Morsi na Praça Tahrir que tinha armas, ele disse. Respondi que já tinha ido até esse acampamento também e que não tinha visto nenhuma arma. Ele deu de ombros. Como as faixas sobre os sionistas, esse tipo de acusação parece fazer parte do ambiente de desconfiança geral no Egito de hoje.

Em seguida, visitei o hospital de campo improvisado e falei com Ahmed Abu Zeid, um médico que estudou na Inglaterra e que me contou sobre os horrores dos tiroteios com a polícia. “O primeiro paciente que atendi era uma garoto de 16 anos que levou um tiro no meio dos olhos… isso não foi acidente, foi um sniper”, ele disse. Ele apontou para a cabeça, depois para o peito, e disse que todos os ferimentos que tratou eram nesses lugares, prova de que a polícia estava mirando para matar.

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“Não pude salvá-lo, ele morreu”, disse Ahmed sobre o garoto de 16 anos. “Voltei da [sala de operação] e encontrei mais outros cinco ou seis pacientes esperando por mim, todos com ferimentos na cabeça provocados por tiros diretos. Isso estava muito além de nossa capacidade.”

Crianças brincam num gira-gira. Alguns alegavam que a Irmandade Muçulmana tinha mulheres e crianças no acampamento para servirem como escudos humanos.

A maior parte das outras paradas do passeio foi inócua, um pouco boba até. Mohamed me levou a um homem que estava criando galinhas e patos no acampamento. Ele fez uma declaração dizendo que cada um dos pássaros era contra o golpe. Os egípcios que estavam por perto acharam isso hilário, mas a graça meio que se perdeu para mim.

Minha visita coincidiu com o final do jejum do Ramadã e fui convidado para participar da refeição de iftar naquela noite. Me empanturrei de frango e carne de cabra junto com os voluntários do Rabaa Tour, suas famílias e amigos. Muitos deles tinham morado e estudado na Irlanda e Inglaterra; uma multidão amigável, jovem e intelectual. Eles me pareceram cidadãos preocupados com o fato de que a democracia que lhes foi prometida em 2011 e o governo no qual votaram em 2012 foram varridos por um golpe militar. Se esses eram os mercenários torturadores que o governo alegava, instigadores tão perigosos que precisavam ser enfrentados com força máxima, eles esconderam muito bem suas verdadeiras identidades. Espero que todos estejam bem.

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Mat Wolf é um jornalista freelanceque trabalha atualmente no Cairo e se foca em temas culturais, de conflito, religiosos e políticos. Ele é originalmente do noroeste dos Estados Unidos.

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