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Entretenimento

Filmes-Catástrofe Brasileiros Pt. 1

Pensou filme-catástrofe, pensou tranqueira.

Nem ligamos que esse cartaz tá com marca d'água da Cinemateca, baita troço fálico, combinou

Pensou filme-catástrofe, pensou tranqueira. A gente logo lembra do Aeroporto, ondas gigantes ou qualquer outra desculpa imbecil pra fazer um monte de filme de ação. É um gênero complicado. Mais complicado ainda foi inventar de fazer uma compilação do gênero no cinema brasileiro. É óbvio que dinheiro pra simular um alagamento no Rio de Janeiro ninguém nunca teve, e na época da paranóia nuclear os milicos queriam saber era de desenvolvimento. Quanto às mentes mais sãs, convenhamos que era mais urgente tratar de arranjar logo um cinema nacional antes de começar a imitar os espetáculos de castástrofes de Hollywood. Foi por pouco, mas feliz ou infelizmente não passamos sem essa. Apesar da falta de tradição de ficção científica – que dirá seus subgêneros em nosso cinema, está aqui a primeira parte da lista dos meus achados prediletos.

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SANGUE DE TATU (1986)
Direção: Marcos Bertoni / Roteiro: Marcos Bertoni

Sangue de Tatu é um filme que você só vai conhecer se for um nerd desesperado por catástrofes no cinema brasileiro. Como é um curta em Super-8 com cópia única, você terá de ir atrás do diretor e implorar para que ele arme uma sessão ali mesmo pra você – o que, preciosismo a parte, é quase necessário para pegar a bad vibe por completo. O lance é que existe todo um mistério sobre os filmes de super-8 que tem tudo a ver com a atmosfera do curta de Marcos Bertoni. A história é de um clássico das ameaças de catástrofes que rondavam nos anos 70, quando gloriosamente conseguimos meter uma usina nuclear em Angra dos Reis: o pavor da contaminação atômica. Após um vazamento de Angra I, anunciado com uma imagem documental de uma matéria de capa d’ A Folha de São Paulo, um técnico da usina resolve sair fora em seu Gurgel - minúsculo carro brasileiro de design “futurista” da época militar - e acaba perdido e alucinado no meio das montanhas. Uma mistura foda de documentário e ficção, o curta tem uma das melhores personagens de resistência aos delírios medrosos da classe média: um preto velho que, banhado em Sangue de Tatu quando nasceu, segundo o mais style dos rituais escravos, não está nem aí para o vazamento atômico por ter o corpo devidamente fechado. A esposa grávida do piloto de Gurgel, que fica para trás enquanto ele foge, acaba dando a luz a vários tatuzinhos – o que talvez seja a própria redenção da raça, caso tenham a manha e a esperteza de se banhar no sangue dos bebês da catástrofe. O filme é bom de verdade – merecia ser um longa, e a única catástrofe que realmente ameaça é a tosqueira dos gringos que comandam “a bosta” da usina e as cabeças dos presidentes militares que o protagonista encontra pelo caminho.

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AS NINFETAS DO SEXO SELVAGEM (1983)
Roteiro: Older Costa, Wilson Silva e M.A Borges / Direção: Fauzi Mansur e Wilson Silva

Então está lá um casal rico e apaixonado, curtindo o verão em seu barco, quando ele explode e o casal morre, talvez por causa da explosão nuclear que aparentemente acontece ao mesmo tempo. O rádio do casal avisa sobre o protesto latino americano contra a decisão das superpotências em incluir bombas de nêutrons em seus sistemas orbitais de defesa, então a catástrofe está anunciada. Sobram as filhas do casal na ilha deserta, numa vibe perfeitamente “A Lagoa Azul”, comendo siris e descobrindo as belezas de seus corpinhos nus. Se há algo de erótico com essas cenas das crianças, a gente prefere ignorar, já que a câmera não é lá um primor de expressividade. É durante um banho de cachoeira enrolado pra cacete, depois de um plano que mostra só um pé, que as curvas da maturidade física das meninas finalmente aparece. No corte seguinte, elas já são duas brasileirinhas delícia prontas pro abate e abandonas à própria sorte lá no fim do mundo. Não dá cinco minutos até que o primeiro tarado do filme e apareça, estuprando outras duas personagens desavisadas.

No mundo peladinho e inocente das crianças órfãs, aparece um astronauta. Antes de comer as duas, ele explica que o problema com o mundo lá fora são as máquinas e a obsessão dominadora do homem. Mas aqui, a verdade catástrofe é a falta de saída – de um lado, temos os brutos, estupradores e canibais; do outro, duas retardadas e um astronauta loiro. Ou seja, ninguém com o menor cacife para reorganizar a parada. A aparição de uma lésbica (note-se que neste filme todo mundo aparece do nada) entre os bárbaros, negando ceder o rabo a eles, até inspira uma possibilidade de redenção pela revolução sexual. Mas ela se prova tão tosca quanto os outros e fica tudo por isso mesmo. Caso o título não tenha deixado claro o suficiente, o filme inteiro é um pretexto para as cenas de sexo explícito – numa abordagem genuinamente pornô do lado bárbaro e tendendo a filminho erótico com o astronauta e as irmãs, que transam pelas lindas praias do fim do mundo trocando juras de amor. Depois de deixar os atores famintos por mais de uma hora, o diretor enfia um carneiro no filme. O bicho rende uma morte e uma das cenas mais ridículas do cinema – a disputa pelo cadáver peludo. Depois de o devorarem cru e cruelmente, os bárbaros adoecem e morrem. É um final moralizante, onde os maus são eliminados pelas próprias práticas e o mundo sobra na mão dos puros de coração. Pena que, tentando salvar os bons, o diretor/roteirista ignora que, àquela altura, já estaria tudo afogado em radiação.
Não à toa, esta “pornochanchada” atípica – sem gags visuais – é sucinta e precisamente descrita como “o mais bizarro xxx brasileiro”.

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QUEM É BETA? (1973)
Direção: Nelson Pereira dos Santos/ Roteiro: Nelson Pereira dos Santos

Este é um filme de Nelson Pereira dos Santos, o que inspira respeito. O cenário é um futuro apocalíptico. Sem tempo nem lei, o filme já larga avisando: "A história deste filme se passa num período indeterminado, depois de acontecimentos que modificaram o mundo e destruíram a sociedade humana.” Aí vai caber a você descobrir o que ele quis dizer com isso, mas a história é mais ou menos a seguinte: Um casal vive entrincheirado no meio do nada e passa os dias atirando em “zumbis” que reclamam “água, comida”. O casal também passa o tempo assistindo às próprias memórias através de uma engenhoca que materializa o passado em fumaça. Some a isso que que a mulher do casal é americana, os zumbis parecem ser hippies e Beta, a personagem misteriosa, confirma que há mesmo uma tensão entre os vendidos e os resistentes (chamados “contaminateds”): são os franco atiradores contra os hippies, no meio de Paraty, em 1973. Vale lembrar que, era o meio da guerra do Vietnã, e aqui dentro, com o AI-5, não eram os tempos mais amigáveis para se fazer cinema. Então não é de se estranhar que os filmes de Nelson Pereira dos Santos tenham ficado bem, digamos, “metafóricos” nesta época, dada a violência da censura. Também fica óbvia a oposição do “verdadeiramente popular” (no caso, a menção aos hippies e ao candomblé) e as taras erradas da burguesia – como o consumo da violência, as armas, a namorada americana e a hipocrisia da vida doméstica enquanto o mundo desaba lá fora.

No que parece ser o comentário sobre “cinema” no filme - o projetor de memórias - são cenas supérfluas da vida do casal que se materializam. É Beta quem se revolta contra a limitação imaginativa do casal e sua incapacidade de entender “outras memórias”. Com todos os cinemanovistas exilados na Europa, Nelson continua buscando uma maneira de interpretar a realidade brasileira, mesmo que tivesse de enfiar suas críticas em situações ficcionais absurdas como esta. A solução pessoal de nosso diligente diretor, responsável por lanças as bases do cinema novo e por fazer o primeiro nu frontal masculino do cinema brasileiro, foi se exilar em Paraty, onde rolava uma cena de resistência, com uma galera muito louca de ácido. “Quem é Beta?” foi filmado ali, sem dinheiro e com resultados praticamente ininteligíveis. Em tempos de catástrofe, cada um faz o que pode pela própria sobrevivência.

Continua…

POR NATASHA FELIZI VICE BR