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Salvando o Sudão do Sul

O Colapso de Machot

Robert Young Pelton e seu companheiro de viagem, o ex-criança-soldado Machot, mergulham numa amostra representativa de toda a corrupção e a violência que marcam a nação mais jovem do continente africano antes de conseguirem transpor a fronteira da...

O jornalista Robert Young Pelton se tornou amigo e ajudou o ex-garoto perdido Machot Lat a resgatar sua família das mãos de sequestradores somalis. Depois de experimentar o melhor e o pior do Sudão do Sul, os dois seguiram de Nasir à Etiópia e, finalmente, de volta para casa.Foto:Tim Freccia. 

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Machot continua com a mania de desaparecer a maior parte do dia. Enquanto carregamos nosso veículo e nos preparamos para partir, ele aparece, vindo de lugar nenhum, para nos mostrar uma placa de metal e um cantil de plástico.

Ele tem recolhido diversas coisas do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) perto do rio, insistindo que o depósito da organização está transbordando de comida. Passou o dia inteiro se sentindo estranho até perceber que seu problema era a sede. No caminho até a margem, aonde foi buscar água, descobriu que não tinha onde colocá-la. Daí seu súbito interesse pelo depósito da Cruz Vermelha.

Ao se aproximar da margem pantanosa, se deparou com corpos e mais corpos, alguns empilhados uns sobre os outros. Machot fugiu, esquecendo-se completamente da sede.

Naquela mesma noite, depois de oito horas na estrada, voltamos a Nasir. Retornamos ao campo abandonado da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais e nos instalamos confortavelmente.

De manhã, o gerente do acampamento cobrou por nossa estada, embora alguns dias atrás tivessem dito que poderíamos ficar ali sem pagar. Pergunto o valor, mas ele se negou a falar em números. Após uma discussão, o gerente saiu na direção da cidade com Machot para chamar a polícia, deixando o portão trancado.

A “polícia”é um pequeno grupo de homens e crianças, todos armados. Não estávamos dispostos a enfrentar aquilo que se dizia “a aplicação da lei” em Nasir uma segunda vez, então partimos. Decidimos pagar um garoto para nos ajudar a carregar as coisas. Quebramos o cadeado barato com um pedaço de cano que pegamos no lixo.

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O garoto nos levou até o rio, onde nos sentamos à sombra de uma grande árvore. Pouco depois, Machot voltou com o gerente aborrecido. Acusaram a gente de ter enganado o homem. O comissário perguntou por que ele havia trazido esses brancos à cidade para arrumar confusão. Digo-lhe que oferecemos dinheiro ao gerente em diversas ocasiões, que ele não especificou quanto queria e que eu poderia até enviar o dinheiro diretamente a seu chefe na ONG se fosse o caso.

Irritado, Machot pediu que nosso cobrador fosse novamente chamar a polícia. Ele fala em nuer, mas isso até eu conseguia entender.

Sugeri que meu companheiro ficasse onde estava. Começo a suspeitar de que ele se faz passar por um homem correto enquanto se mete em todas essas pequenas fraudes. “Em vez de vir aqui ‘consertar’ seu país, você está do lado dos bandidos”, digo a ele. “Talvez seja melhor você ficar aqui e, quando estiver pronto, descobrir um jeito de voltar para casa”, lembrando que ele deixou o exílio no EUA para tentar salvar seu país, o Sudão. Essa é a razão de estarmos aqui.

Mas minhas palavras deixam Machot ainda mais enfurecido. Ele embarca num discurso completamente sem sentido pra mim. A polícia chega logo: um homem zangado com um pedaço de madeira e outros, ainda mais zangados, com metralhadoras AKs. Nesse momento, Machot se passaria facilmente por um deles.

Os guardas nos apontam suas armas. Digo, no verdadeiro estilo dos rebeldes, que se fizerem isso novamente, enfiaria aquelas armas e pedaços de pau em seus traseiros. Furiosos, descarregam sua ira em Machot, que logo se torna um de “nós” em vez de um “deles”.

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Amos fica no fundo, explicando-me em voz baixa o que se passa: “Eles querem te bater… Eles não vão te bater… Agora eles vão te bater…Agora eles querem atirar em você.”Quando peço a Amos que lhes explique que atirar em mim significaria que eles não seriam pagos, voltam à ideia de me bater.

Há quatro de nós e seis deles, embora eles tenham armas e eu não espere muita ajuda de Amos ou de Machot caso as coisas saiam de controle. Apesar de tudo, acabam não batendo em ninguém e decidem ir embora, retornando ao escritório do comissário para recrutar mais nativos furiosos e poder de fogo.

Enquanto as crianças nos observam, pergunto a Machot o que ele pensa de seu país e de seus conterrâneos agora. Nós viemos documentar o que está se passando e, embora seja verdade que muitas pessoas trabalharam de maneira dura para nos ajudar, algumas outras trabalharam tão duramente quanto para nos atrasar.

Ele tem um momento de definição. Então se abaixa, percebendo que é um cidadão americano e um alvo de abuso e extorsão. Segura a cabeça nas mãos enquanto repete: “Essa gente é louca, essa gente é louca”.

Eu aproveito para lhe perguntar o que ele pensou quando viu a matança nos campos de Malakal, os estupros, os incêndios, os tiros. Por que ele estava tão inclinado a acreditar no que alegavam os rebeldes, que “as mulheres e crianças tinham sido apanhadas no fogo cruzado”? O que ele pensa de toda a retórica com que o líder sul-sudanês Riek Machar encheu nossos ouvidos, sob as árvores. Essa retórica entra em alguma contradição com as matanças do Exército Branco? Machot não tem nada a dizer. Não hánada a dizer. Ele apenas continua sentado, segurando a cabeça entre as mãos. Isso me lembra da mulher shiluk, catatônica, para quem eu dei água e um pouco de dinheiro no outro dia.

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Os membros do grupo local, sempre dispostos a discutir, estão no meio do caminho atéa polícia quando percebem que nosso barco está se preparando para partir. Já estamos nos preparando para carregá-lo. Ao menos uma vez a lentidão desse país está trabalhando a nosso favor. Sabendo que seu tempo é finito, eles voltam correndo, com pedaços de pau e armas de fogo.

“Vocês não vão a parte alguma!”, eles gritam. “Vocês irão para a prisão”.

Eu digo a eles que não há nenhuma prisão nos arredores.

“Nós vamos espancá-los”.

Enquanto isso, o gerente da ONG se dá conta de que, o que começou com a sua falta de traquejo com a matemática simples, agora se tornou algo muito maior. Vou direto à turba revoltosa e ponho meu braço em torno do pescoço do gerente, cobrindo seu coração com a minha mão esquerda. Eu pergunto se ele consegue sentir seu próprio coração batendo. Ele está com medo demais para responder.

A força policial improvisada, reparando nesse pequeno relaxamento de tensões e temendo que o gerente - que as iniciou, na verdade - tenha se acalmado, começa a ameaçá-lo também. Nada disso faz sentido, pelo menos não além de um microcosmo de como funcionam as coisas no Sudão do Sul. Inimigos se tornam amigos num piscar de olhos, e agora o gerente durão da ONG precisa de mim para escapar de ser potencialmente espancado.

Eu ofereço a ele US$ 200 para resolver todos os nossos problemas e sugiro que ele faça uma grande cena para aceitar a minha oferta. Eu tenho certeza de que o grupo de encrenqueiros vai dividir tanto esse dinheiro que, no fim, o gerente não ficará com quase nada. Eu, então, conto o dinheiro de forma ostensiva, dando-lhe um sermão para que seja mais específico na próxima vez. Enjoado de nós, o grupo se dispersa.

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A viagem rio acima é divertida. Crocodilos, guindastes, pelicanos, peixes, garças e crianças pulam na água enquanto nos dirigimos à fronteira com a Etiópia. Não há muito o que se ver: alguns barcos, um depósito do Programa Mundial de Alimentos da ONU e ainda mais um bando predatório de nuer que ameaça os condutores de veículos e exige dinheiro por nenhum motivo em particular.

Uma vez cruzada a fronteira, os etíopes são uma história completamente diferente. Quando perguntamos quanto custa uma viagem atéa cidade mais próxima, eles fazem um orçamento justo. Quando os carregadores nuer os ameaçam e tentam bloquear sua saída, eles simplesmente olham para baixo e esperam.

Eu exijo que comecemos a nos mover. Os nuer respondem tentando subir em nossos veículos de três rodas. Os motoristas esperam que eles tentem novamente, e então arrancam pela estrada.

A loucura esmorece atrás de nós. Infelizmente, o Sudão do Sul não será salvo tão cedo.

Tradução: Pedro Taam

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