Há Solução para a Crise da Água em São Paulo?
Retrato da seca no Sistema Cantareira em 2014. Crédito: Helena Wolfenson/ VICE

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Há Solução para a Crise da Água em São Paulo?

A escassez hídrica foi assumida ano passado, mas os problemas, escondidos por anos da sociedade, continuam. Pesquisadores dizem o quão grave é a situação e o que pode ser feito para melhorar.

"A gente precisa ficar de olho para saber quando a água chega para ligar a bomba", conta Márcia Paganele, de 31 anos, moradora de Paraisópolis, na zona sul da cidade de São Paulo. "Se ela fica ligada o tempo todo, queima." A empregada doméstica comprou o aparelho como solução provisória no ano passado e desde então costuma usá-lo quando a água não escorre em sua casa.

Ficar com a torneira seca não é novidade para a população de uma das maiores favelas paulistas. Desde o ano passado, porém, a situação anda mais crítica. Além de enfrentar longos períodos sem abastecimento, os moradores não conseguem encher as caixas d'água porque a água chega muito fraca para percorrer os canos. A solução de boa parte dos moradores foi adquirir bombas de água. O aparelho mais simples custa em média R$ 280 e, para a instalação, é preciso desembolsar no mínimo R$ 200. O uso da gambiarra, movida a energia elétrica, tem grande impacto na conta de luz e se tornou, para muitos habitantes, um gasto pesado dentro de seus limitados orçamentos.

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Hoje um cenário de casas rodeadas por bombas de cores vivas, Paraisópolis é abastecida pelo Guarapiranga, sistema que, em fevereiro, ultrapassou o Cantareira e se tornou o principal produtor de água em São Paulo. Enquanto este último entrou em colapso e teve a retirada de água reduzida, Guarapiranga recebeu a missão de abastecer regiões do antigo maior reservatório. Para a missão, passou por ajustes como a implantação de membranas ultrafiltrantes – tidos como equipamentos de alta tecnologia – e obras de recuperação de tubulações desativadas.

Assim, o Guarapiranga deixou de abastecer somente partes das regiões sul e sudoeste e, hoje, na teoria, alcança lugares como Vila Olímpia, Campo Belo, Vila Mariana, Ipiranga, Cursino, Sacomã, Brooklin, Jaguaré, Pinheiros, Avenida Paulista e parte de Osasco. Cerca de 5,8 milhões de pessoas dependem do sistema capaz de suportar 171 bilhões litros de água. É, para não dizer pouco, uma margem arriscada. Trata-se de 17,4% da capacidade total do antigo Cantareira, que hoje agoniza entre a terra seca e os equipamentos que sugam o líquido do seu segundo volume morto.

Crédito: Helena Wolfenson/ VICE

Com capacidade para 982 bilhões litros de água, o Cantareira atendia 8,8 milhões de pessoas nas zonas norte, central, Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, Osasco, Carapicuíba, São Caetano do Sul e, parcialmente, as zonas leste e oeste, Guarulhos, Barueri, Taboão da Serra e Santo André. Devido ao socorro de outros sistemas, o Cantareira passou a ser responsável pelo abastecimento de um número menor de pessoas: 5,2 milhões. Os relatos no mapa colaborativo da ONG Aliança pela Água dão conta de que, mesmo com menos gente para abastecer, faltou água em várias das localidades sob responsabilidade do Cantareira nos últimos 90 dias.

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Na zona leste, as reclamações também borbulham. A consultora Edna de Paula, moradora da Vila Alpina, relata ausência diária de água. "É difícil ter água depois do meio-dia e ela costuma chegar por volta da meia-noite", diz. Ela conta que precisa realizar as atividades domésticas logo cedo para aproveitar a água da rua e poupar a da caixa.

Questionada sobre as reclamações, a Sabesp, responsável pelos serviços públicos de saneamento básico no Estado de São Paulo, afirmou por meio da assessoria de imprensa que não está fazendo rodízio, e sim reduzindo a pressão para retirar menos água das represas e conter perdas nas tubulações. A empresa argumenta que as diferenças de relevo em São Paulo impactam na locomoção da água em baixa pressão e por isso pode não chegar a algumas residências.

Não é segredo que, além de diminuir a pressão, a crise hídrica fez com que o governo paulista investisse em novas obras nos últimos meses. Uma das mais recentes é a interligação entre o sistema Alto Tietê e o Rio Grande, um dos braços menos poluídos da represa Billings. A ligação permite que Rio Grande transfira 4 mil litros de água por segundo para o Alto Tietê. Oito dias após a inauguração de 30 de setembro, porém, a obra de interligação causou a inundação em ruas de Ribeirão Pires, no ABC Paulista. A falha ocorreu porque o bombeamento da água transferida provocou o assoreamento do rio Taiaçupeba-Mirim. Com o aumento do nível da água, foi necessário um desassoreamento para a transferência ser reativada.

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E mais obras estão a caminho. O governador Geraldo Alckmin assinou em 2 de outubro o contrato para a construção da interligação entre as represas Jaguari, da Bacia do Paraíba do Sul, e Atibainha, do sistema Cantareira. Mas seria isso o suficiente para acabar com a ameaça de falta de água?

Para os pesquisadores, não. Segundo Luis Antônio Bittar Venturi, professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em recursos hídricos, ações para conter o problema da água deveriam ter sido realizadas ao longo do tempo desde a grande crise hídrica de 1963. Ele também chama a atenção para o fato de a crise hídrica atual ser gerencial, não natural. "Crise hídrica natural não existe. Água tem, mas nós poluímos", diz o geógrafo.

Mesmo que a falta de chuva fosse a única responsável pela crise, os sinais de que algo deveria ser feito foram enviados muito antes de 2014

A fala de Venturi vai de encontro com a de outros especialistas ouvidos por Motherboard. A falta de água, dizem pesquisadores, não é culpa de fenômeno climático, de má sorte. "A escassez de água está muito mais relacionada à falta de qualidade da água do que a falta de água", diz a urbanista Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, coalizão de mais de 40 organizações e movimentos da sociedade civil para enfrentamento do colapso hídrico em São Paulo. "Então são problemas de gestão, alta degradação dos recursos hídricos, eventos climáticos extremos e falta de participação e controle social."

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Para Marussia, a crise hídrica que enfrentamos continua em estado crítico. "Já temos um pouco mais de controle, mas ainda estamos longe de superar", diz. Uma das preocupações é que, ao que tudo indica, estamos repetindo os erros do passado: não há medidas de longo prazo para uma política inteligente de uso e reuso de água.

Agonia hídrica de longa data

Para entender o quão grave é a situação e o quão distante estamos de um futuro tranquilo quanto ao abastecimento de água, é preciso olhar para a gestão das últimas décadas e as características naturais dos reservatórios.

A região metropolitana de São Paulo é abastecida por nove produtores: Alto e Baixo Cotia, Alto Tietê, Guarapiranga, Rio Claro, Rio Grande, Ribeirão da Estiva, Embu Guaçu e Cantareira. O último é o que apresenta situação mais delicada. Cantareira opera no nível negativo e já está no segundo ano de uso do volume morto. Adentrou novembro com -13,2% de volume armazenado.

Crédito: Helena Wolfenson/ VICE

Outro que está em estado de atenção é o Alto Tietê. No primeiro dia de novembro, o sistema em degradação apresentava apenas 13,7% do volume armazenado, enquanto o Rio Grande possuía 87%. A questão é que, para auxiliar o Sistema Cantareira, o Alto Tietê passou a abastecer outros bairros de São Paulo e alcançou 5 milhões de pessoas atendidas. Já o Rio Grande beneficia 1,2 milhão de pessoas em Diadema, São Bernardo do Campo e parte de Santo André. Ou seja: o que abastece mais gente está em situação muito pior.

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A decadência dos reservatórios não é recente. Em 2004, o documento de renovação da outorga do Sistema Cantareira apontava no artigo 16 que a SABESP deveria providenciar, no prazo de até 30 meses, estudos e projetos que viabilizassem a redução da dependência do Cantareira.

Já o documento produzido pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) em 2013 aponta que, no período de 1998 a 2004, a região das bacias que alimentam Cantareira e Alto Tietê enfrentou uma intensa estiagem que provocou queda nos níveis dos reservatórios. O momento mais crítico foi o fim de 2003, quando os níveis do Cantareira e do Alto Tietê atingiram 1,6% e 18,5% do volume armazenado, respectivamente. Logo, mesmo que a falta de chuva fosse a única responsável pela crise, os sinais de que algo deveria ser feito foram enviados muito antes de 2014.

Há também outras três questões que contribuem para a crise hídrica e que, segundo os estudiosos, não podem passar despercebidas: a perda de produção natural de água (por causa do desmatamento que ocorre em todos os mananciais metropolitanos), o processo de assoreamento (que faz com que os reservatórios minimizem a capacidade de armazenamento) e a poluição.

Cantareira tem pouca quantidade de mata ciliar. Em alguns trechos, a ausência é completa. Guarapiranga é similar, com o agravante de receber grandes quantidades de esgoto in natura e ser cercado por ocupações irregulares. A Bacia do Alto Tietê tinha, até novembro de 2006, segundo registros da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, 959 áreas contaminadas. E 37% das regiões contaminadas estavam em locais de alta vulnerabilidade à poluição de aquíferos.

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"Você tem uma grande metrópole na iminência de ficar sem água e com uma represa do tamanho da Billings, cheia até a tampa, que não pode ser utilizada porque está poluída."

Por fim, a Billings, um gigantesco reservatório, tem a maior parte da água inutilizada. "A Billings tem mais água que o Cantareira. Se o Cantareira estiver a 100% e a Billings a 100%, a Billings tem mais água. Mas ela abastece pouco porque só se pode tirar água de alguns braços que não estão muito poluídos", comenta Venturi. Os braços limpos, prontos para uso, são o Rio Grande e o Taquacetuba – que repassa água para o Guarapiranga desde o ano 2000.

A Billings é prejudicada pelo bombeamento de águas dos rios Pinheiros e Tietê, lançamento de esgoto in natura, poluição acumulada no fundo da represa, presença de metais pesados e habitação irregular nas margens. A reportagem do Motherboard navegou pelo local e viu a degradação do ambiente e as diferenças entre os níveis de poluição. Na área próxima à estação de Pedreira, a tonalidade do verde da água é muito forte e o odor, desagradável.

Para Whately, a Billings é um dos símbolos da falência do nosso modelo de cuidado dos recursos hídricos. "Você tem uma grande metrópole com problema sério, com uma iminência de ficar sem água e com uma represa do tamanho da Billings, cheia até a tampa, só que não pode ser utilizada porque está poluída."

O futuro pode estar no tratamento do esgoto

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O caso de São Paulo não é isolado na história. Durante os anos 2007 e 2008, a cidade de Barcelona, na Espanha, precisou importar água da França e reduziu o consumo da população ao máximo. Califórnia, nos Estados Unidos, enfrenta uma crise pelo quarto ano consecutivo e, para lidar com o problema, transforma esgoto em água potável, autoriza racionamentos e aplica pesadas multas para quem consome em excesso, entre diversas outras medidas.

São Paulo não tem necessidade de importar água como Barcelona, mas precisa dialogar com a sociedade para lidar com um leque de medidas efetivas que permanecem tímidas, como a recuperação da água que já temos. A Califórnia pode ser um exemplo quanto à questão do reuso. "Era o caso de o governador chamar uma discussão com a sociedade, com a academia, com as universidades para adotar planos de recuperação dos mananciais, proteger os reservatórios e proteger a qualidade da água", diz o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM).

Diante da crise, trazemos água de cada vez mais longe e esquecemos os problemas que isso pode causar. A transposição de água entre bacias hidrográficas pode gerar grandes impactos no meio ambiente e conflitos entre regiões. De acordo com o Relatório sobre a Vulnerabilidade Hídrica da região metropolitana de São Paulo produzido pelo PROAM, isso é visível na disputa por água entre São Paulo e os municípios da Bacia Hidrográfica dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. O documento ilustra a questão com o caso atual da transposição do Sistema Produtor São Lourenço, que drenará água da bacia hidrográfica do Alto Juquiá, região de Ibiúna. A obra está prevista para ser entregue em outubro de 2017 e substituirá o Cantareira em alguns municípios.

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Além disso, estamos ampliando a produção de esgoto, o que implica em mais investimentos em saneamento básico. O professor da Escola Politécnica da USP Ivanildo Hespanhol é referência em reuso de água e afirma que São Paulo tem condições de investir em tecnologia para tratar todo o esgoto e produzir água potável a partir dele.

A ação pode parecer assustadora para algumas pessoas, mas é algo rotineiro em alguns países. A produção de água de reuso potável acontece, além dos Estados Unidos, na Austrália, Cingapura, Bélgica, África do Sul e Namíbia, que possui esse sistema há 40 anos.

"São Paulo é uma metrópole poderosíssima. Como ficamos assim? Existem países com muito menos água disponível, como a Síria, que não enfrentam falta de água"

Hespanhol comenta que apresentou ao governo do Estado de São Paulo um projeto de reuso potável com duração de 20 anos, mas não teve retorno. O plano da equipe de Hespanhol é dividido em três fases:

- Reuso potável indireto: durante os primeiros cinco anos, as estações de tratamento de esgoto devem passar por melhorias com sistema de membranas que produzem água de qualidade muito boa. Depois de tratada, a água é diluída nos reservatórios.

- Reuso potável direto: os cinco anos seguintes devem completar mais a rede de tratamento para que a água tratada seja enviada direto para a rede de distribuição em vez de ser diluída nos reservatórios.

- Despoluição dos rios: os últimos dez anos estão designados para a limpeza dos rios. A ideia é fazer interceptores de esgoto em todos os rios de São Paulo. Assim, todo o esgoto é tirado da cidade e vai direto para as estações de tratamento bem equipadas.

Hespanhol diz que o plano não é caro para investirmos. "Temos capacidade para produzir água segura e temos tecnologia para certificar a qualidade da água", afirma.

A Sabesp já investe em algumas ações que tratam o esgoto para o reuso destinado a fins industriais, refrigeração de equipamentos e outras aplicações não potáveis. O que o projeto do professor defende é o tratamento de toda a rede de esgoto para o reuso potável.

Os estudiosos ressaltam também que a crise hídrica não é de responsabilidade apenas do governo estadual e da Sabesp. As esferas municipais e federais também estão envolvidas. Por isso, dizem, todos os responsáveis necessitam pensar e executar ações sustentáveis que driblem o problema e, tão ou mais importante, agir com transparência perante a sociedade – questão que permanece deficiente conforme aponta relatório da Artigo 19, ONG que defende a liberdade de expressão e informação.

Para a sociedade, fica o aprendizado da necessidade de consumo consciente, de questionar e de cobrar as autoridades responsáveis e refletir sobre as razões para falta de água. "Não somos povos primitivos que se chover tem água para beber e se não chover não tem. São Paulo é uma metrópole poderosíssima. Como é que ficamos assim? Existem países com muito menos água disponível que não falta água. A própria Síria que eu morei", relata Venturi, que visitou países do Golfo Pérsico e realizou pós-doutorado em Recursos Naturais no Departamento de Geografia da Universidade de Damasco antes da eclosão da guerra civil na Síria.

Para ele e os outros professores ouvidos por Motherboard, enquanto não se investe em tecnologias e políticas públicas necessárias para um futuro de prosperidade hídrica, seguimos cautelosos e, como os moradores de Paraisópolis, improvisando soluções de curto prazo.