Como a cena independente está revitalizando o centro de Vitória
André Prando no Festival Casa Verde. Foto: Rafael Segatto

FYI.

This story is over 5 years old.

Radiografia Urbana

Como a cena independente está revitalizando o centro de Vitória

O melhor do rock alternativo, da MPB e do hip hop no Espírito Santo se descobre nos cômodos de antigos casarões ocupados por coletivos artísticos e espaços independentes.

Este conteúdo é um oferecimento Natura Musical.

A região central de Vitória é um cristalino exemplo de como arte e música podem revitalizar espaços urbanos. Depois de uma fase de abandono em que a região era considerada violenta e o circuito notívago, insipiente, de meados de 2010 para cá alguns coletivos e iniciativas culturais ocuparam os casarões do bairro, pintando outra tela. Construídos entre 1894 e 1940, alguns desses imóveis viraram espaços com programação de shows, exposições, saraus e oficinas. Essa nova movimentação veio se somar à resistência que nunca arredara pé dali, como o Pagode da Zilda, a Casa da Stael e a escola de samba Unidos da Piedade.

Fundada há dez anos pela produtora cultural Stael Magesck, a Casa da Stael, construída em 1940, fica na Rua Sete. Ao lado da Catedral de Vitória, o público alternativo encontra acolhimento na Casa Verde, que funciona numa construção de 1894. Daí, têm endereço por perto o pessoal do coletivo/produtora de filmes Expurgação, que funciona como espaço multicultural, e a Casa da Barão, do rapper Edson Sagaz. Esta última, de 24 cômodos, foi erguida em 1923 e sua laje virou palco de shows musicais e do Sarau da Barão, evento mais bombado do lugar, que também serve de moradia para artistas.

Publicidade

Casa da Stael. Foto: Tati Hauer/VICE

Já a casa do Expurgação data do início do século 20. Fica no Corredor Criativo Nestor Gomes e, desde 2010, realiza eventos como o Ensaio Aberto, para até 500 pessoas. "Acho que as ocupações artísticas e culturais se deram por questões práticas", explica Gil Mello, um dos responsáveis pela Casa Verde ao lado do parceiro Heitor Righetti. "O aluguel de qualquer imóvel está num preço bem em conta em relação ao resto da cidade. Tem também a questão do fácil acesso à região. Praticamente todas as rotas de ônibus da Grande Vitória passam por aqui. Junta isso tudo com a vontade e disciplina de artistas e produtores culturais que querem viver de arte. Só sei que de uns anos pra cá são muitas iniciativas, institutos, coletivos, produtoras e gravadoras ocupando essa região."

No caso específico do Expurgação, tudo começou com um grupo de estudantes da Universidade Federal à procura de lugar pra morar e trabalhar. "Como trabalhamos com cinema, publicidade e projetos culturais — documentários, livros, fotografias de natureza, uma série de coisas — acabamos emplacando alguns projetos praquele local", conta Raphael Gaspar, um dos integrantes do coletivo. "Decidimos comprar essa briga do Centro aí, requalificar o bairro, revitalizar, e pegamos um casarão lá, onde estamos até hoje. Fizemos o Cineclube e o Ensaio Aberto. Começou pequeno, e depois expandimos para parcerias com outros coletivos, realizamos o festival Tarde no Bairro, do Assédio Coletivo, e o Grito Rock, entre outras coisas."

Publicidade

Casa da Barão. Foto: Tati Hauer/VICE

O êxito de tais propostas vem provavelmente do fato de que são empreendidas por gente da cena, para a cena. O Heitor e o Gil eram donos do selo Subtrópico antes da Casa Verde, que no começo era usada apenas como moradia. Não é difícil imaginar o que aconteceu. Pense numa casa de amigos artistas que recebe frequentemente vários outros amigos artistas e aquilo virando ambiente criativo. A trinca de shows da banda gaúcha Apanhador Só, em setembro de 2015, do conjunto local My Magical Glowing Lens, no mês seguinte, e dos portugueses do Lavoisier foram os responsáveis por dar a largada à rotina de eventos que perdura até hoje. Nos últimos dois anos, já rolaram cerca de 90 shows no pico. Isso deu um gás no selo, que se desmembrou em produtora cultural.

Não é exagero dizer que a Casa Verde reflete o que tem acontecido de quente na música capixaba alternativa autoral. O Gil e o Heitor, por serem bem envolvidos no cenário, conseguem reunir bandas e públicos de nichos diferentes, mas que dialogam e constroem relações entre si. Um exemplo é o Festival Casa Verde, onde eles reuniram no mesmo dia shows da Preta Roots, dupla de rap das minas da quebrada, do Katze, projeto que faz um R&B delícia total, com a potência do FingerFingerrr. As festas assumem diferentes formatos. Além do festival, rolam o Frita Jazz, o Subtrópico Apresenta, Morro da Casa Verde e Mangue Fuzz, entre outros projetos.

Preta Roots no Vem Com As Minas, na Casa Verde. Foto: Tati Hauer

"O Centro tem um recorte interessante que reúne iniciativas independentes da cultura e da arte contemporânea. Posso citar uma lista delas, do cinema à música, de políticas culturais a bloco de carnaval. Das abduções da galera do Ufo.Dub, passando pela Casa da Barão, o Espaço Hip Hop e o Coletivo das Pretas, até o Estúdio Éta e o Quintal da Cidade. Enfim, não acaba", elenca Gil Mello. E acrescenta: "No mesmo lugar existe um bloco de carnaval que coloca 20 mil pessoas na rua e também uma horta comunitária. A cultura popular do Espírito Santo de forma geral é bem inexplorada. Você se surpreende se procurar direito."

Publicidade

Toda essa movimentação acabou por revelar uma emergente cena musical capixaba, que desponta com o já citado My Magical Glowing Lens, Fepaschoal e André Prando, nomes que contam com bastante público dentro e fora do estado. Daí pros lados do rock-pop, tem também Mean Mustards, que faz um som meio indie inglês, Raw Power, Colt Cobra (Vila Velha), Fernando Zorzal, Juliano Rabujah, Fabríccio Oliveira, no momento trabalhando em seu novo álbum, e o trio feminino Whatever Happened To Baby Jane (Vila Velha), que acabou de lançar um EP. Pros lados do rap, além do Preta Roots tem as meninas do Melanina MCs e mais Vão Vão Vão e Conteúdo Paralelo, entre outros. "Essa galera aqui, além de ser todo mundo brother, sempre se fortalece e conversa musicalmente", diz o músico Fepaschoal. "Comecei a produzir agora o disco do Melanina MCs, grupo que eu já era fã."

Fepaschoal. Foto: Manu Galindo

A carreira do Fepaschoal na música teve início na mesma época em que ele entrou para o coletivo Expurgação, em 2007, atuando com áudio para cinema. Suas primeiras canções eram bem lo-fi e desaguaram pela primeira vez no MySpace. Não demorou para que ele começasse a tocar em festivais e a ganhar espaço na mídia local. Em 2011 lançou, com ajuda da Läjä Records, de Vila Velha, seu primeiro álbum, Comando Guatemala. "Esse disco foi gravado numa imersão de quase um mês em um estúdio adaptado dentro de um paiol de madeira em um sítio", revela. Depois de ficar entre os mais tocados e baixados no site da Trama, vieram os convites para duas turnês no nordeste e alguns shows no Rio de Janeiro e em São Paulo. Seu trampo mais recente, O Canto do Urbanóide Parte I, influenciado pelo tropicalismo de Tom Zé, saiu ano passado.

Publicidade

Algo evidente nas iniciativas da galera é o lance de que ninguém fica esperando as coisas acontecerem. Assim como os casarões viraram o próprio palco das bandas e trouxe à superfície uma geração inteira de músicos, a origem da banda Raw Power mostra como tal filosofia se desdobra pelo interior. "Quando a banda surgiu, antes de virmos pra Vitória, nós éramos de Cachoeira de Itapemirim e, por lá, a cena alternativa andava meio morta", desenrola o guitarrista Carlo Schiavine. "Então, nós mesmos produzimos alguns eventos e, de certa forma, criamos uma cena. Assim, passamos a tocar com vários nomes atuantes do estado, como Muddy Brothers e My Magical Glowing Lens, e organizamos algumas gigs com grupos da capital para o público de lá."

Trio Raw Power na festa Mangue Fuzz. Foto: Tati Hauer/VICE

Ainda fora da capital, o município de Vila Velha espelha a mesma energia criativa a seu próprio modo e guardadas as proporções. Cidade conhecida de longa data pela sua tradição no punk rock, continua forte nesse segmento, mas nos últimos anos tem dado origem a ótimas surpresas como o Muddy Brothers, trio de rock pauleira psicodélico. Os shows por lá geralmente têm rolado do Correria Music Bar e no Prego Espaço de Arte – o primeiro, um clube comercial de médio porte, o segundo, um reduto alternativo dedicado à música, aos quadrinhos e à arte urbana.

Símbolo do rock canela verde, a gravadora Läjä Records segue na ativa há 19 anos e seu fundador, o Fabio Mozine, afirma que a cidade anda numa ótima safra de novidades legais, apesar dos poucos lugares para tocar. "Fizemos um concurso de bandas novas no Läjä Festival e consegui me inteirar um pouco mais", diz. "A maioria dos shows são de cover, e esses eventos lotam. Pela arquitetura em si, Vila Velha não tem muito esse tipo de imóvel [os casarões de Vitória]. Então a coisa fica entre o Correria e a Prego mesmo. Creio que na Barra da Jucu tenha alguns centros culturais, mas não vejo a mesma movimentação", comenta ele.

Publicidade

Colt Cobra mandando sua blueseira venenosa na Casa Verde. Foto: Tati Hauer/VICE

Uma vez que nem sempre dá pra fazer shows que lotam tanto quanto os de cover, muitas das bandas locais acabam sendo salvas pelo espaço Prego, que nasceu como revista independente em 2007, funcionou primeiramente num posto de gasolina e, agora, é uma loja que abre para eventos sem bilheteria. "Começamos a fazer alguns shows esporádicos, e a galera está pedindo pra tocar na Prego, essa que é a treta agora. Só que existem algumas limitações: não temos sistema de cobrança de entrada, vendemos bebidas, a aparelhagem vai fazendo aqueles cata-cata. Agora está rolando até com regularidade. Em agosto tem três eventos com banda", descreve o idealizador Alex Vieira.

"Vila Velha é um celeiro de bandas boas. Três gerações de pessoas que fizeram e ainda continuam fazendo um som massa, sejam bandas do passado ainda ativas ou coisas novas que surgiram influenciadas por essa galera", contextualiza Alexandre Brunoro, baixista e vocalista do Colt Cobra. "Eu e Boi [guitarra] já estamos na cena musical do Espírito Santo tocando em bandas há uns 15 anos. Sempre que podemos, tentamos trazer músicos de outros estados e já organizamos duas oficinas na Prego", orgulha-se ele do espírito engajado que não deixa a música autoral morrer.

Casa Verde. Foto: Tati Hauer/VICE

Colt Cobra. Foto: Tati Hauer/VICE

Corredor Criativo Nestor Gomes. Foto: Tati Hauer/VICE

Fachada do Expurgação. Foto: Tati Hauer/VICE

Gil Mello e Heitor Righetti, da produtora cultural Subtrópico. Foto: Tati Hauer/VICE

FingerFingerrr no Festival Casa Verde. Foto: Rafael Segatto

My Magical Glowing Lens, lançamento do selo Subtrópico, 2014. Foto: Felipe Amarelo