Será o Manana Festival o estopim da revolução musical em Cuba?
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Música

Será o Manana Festival o estopim da revolução musical em Cuba?

Entre festival pra gringo ver e intercâmbio cultural, o evento que uniu música eletrônica e cultura afro-cubana marca a abertura cultural do país socialista — mas ainda não se sabe o reflexo disso no público cubano.

Fotos por Reeve Rixon

Quando o trompetista Jeffrey Valdez, o produtor de música eletrônica Pouya Ehsaei e o percussionista Mililian Galis subiram ao palco em um show comemorativo em Santiago de Cuba, no começo de maio, ninguém sabia ao certo como o público reagiria. Os três músicos receberam de última hora uma vaga entre as atrações, numa tentativa de atrair a atenção local para o primeiro festival Manana — uma pioneira criação cubano-britânica que mescla música eletrônica de vanguarda com a cultura afro-cubana de raíz — que teve sua primeira edição entre os dias 4 a 6 deste mês.

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Usando filtros digitais, Ehsaei transformou as sombrias notas musicais do trompete de Valdez, e também o seu batá, um tambor de duas faces — instrumento básico da música religiosa afro-cubana — em irregulares pontas metálicas. Essa fusão entre sons novos e antigos foi uma experiência inédita para uma cidade impregnada em uma longa história de música ao vivo. Então, quando o público aplaudiu e gritou um entusiasmado "bravo!" ao final da apresentação, os três músicos abriram sorrisos aliviados.

A recepção calorosa da plateia foi um bom sinal na estreia do Manana. Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país, está situada na extremidade leste da ilha. Sua posição no invejável ponto de encontro entre a África, Caribe e América Latina permitiu à cidade absorver novos sons no decorrer dos séculos. Mas ainda que nesse momento inaudito de colaboração entre cubanos e estrangeiros — hoje possível graças ao abrandamento das restrições de viagem ao país socialista impostas pelos EUA —, realizar um festival dessas dimensões não foi algo fácil.

Jam sessions improvisadas em casas com a participação de artistas como Obbatuké são parte da magia do Manana.

O turismo de festivais não é nenhuma novidade no Caribe. Desde festivais all-inclusive na República Dominicana até saraus de techno que duram uma semana em St. Martin, o fascínio de ir embora para ouvir batidões em ilhas tropicais ideais para passar férias é evidente.

Mas o Manana tem um conceito totalmente diferente. Para início de conversa, não espere os anúncios infláveis de bebida alcoólica ou o público de St. Tropez que você pode encontrar em outros festivais caribenhos voltados aos turistas. O Manana, ao contrário, dá ênfase à colaboração entre os artistas estrangeiros e locais em suas atrações. Artistas como A Guy Called Gerald, Quantic, Nickodemus, Dengue Dengue Dengue, e Nicolas Jaar não estão vindo só para se apresentar e voltar para casa, mas também para gravar com músicos cubanos em estúdios locais, e estrear as faixas que fazem juntos durante o próprio festival. Até mesmo o nome do evento faz referência à ideia de reciprocidade — "manana" é como os cubanos descrevem a ligação espiritual entre artista e público.

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Sim, o Manana não é o primeiro festival cubano de música eletrônica. O Rotilla foi criado em 1998, surgido da pequena cena de rave de Havana, cresceu desde então e hoje é um evento realizado na praia e conta com um público de 20 mil pessoas. O festival anual Proelectrónica começou em 2010, e tem apresentações de música experimental em espaços fechados — dá para dizer que é a versão de Havana para o Mutek. Em Holguín, província do centro de Cuba, o Electrozona, criado há três anos, atende o público da EDM.

Um pintor local contratado para criar as placas e os elementos decorativos do festival

Todos esses festivais, porém, contam com DJs cubanos e têm como alvo somente o público local. O Manana inova com seus artistas e público vindos de fora, com ingressos para visitantes estrangeiros vindos junto com os vistos de entrada em Cuba, necessários para contornar o embargo, vigente há 56 anos, feito às viagens e ao comércio entre os dois países. Para os cubanos, enquanto isso, os ingressos são vendidos a US$4 — um preço ajustado de acordo com a realidade local, onde o salário mensal médio aqui é de US$24.

Ainda assim, fazer com que os locais se interessem no festival é um desafio. Os taxistas e os aleatórios bons de papo com os quais puxei conversa nos bares e cafés de Santiago de Cuba se mostraram circunspectos — não sabiam o que exatamente era o Manana, e se ele valia gastar os suados pesos, sendo que a música gratuita abunda nas ruas. O virtuosismo instrumental floresce nessa cidade em que há música sete noites por semana. Depois do show comemorativo de sábado, por exemplo, contei uma meia dúzia de bandas de alto nível tocando em palcos improvisados em ruas pequenas.

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Will "Quantic" Holland, o cantor local Diógenes y su Changüí, don Frankie Francis, da Sofrito Records, gravando música em um pequeno estúdio de Santiago.

"Existe uma grande divisão", disse o musicologista Ned Sublette, autor de Cuba and Its Music e membro do comitê consultivo do Musicabana, outro festival que ocorre na mesma semana (de 5 a 8 de maio) em Havana. "[Os músicos cubanos] não precisam de uma elaborada produção eletrônica, porque eles sabem tocar [seus próprios instrumentos]." A música eletrônica é muitas vezes associada exclusivamente a DJs de EDM como Major Lazer, que se apresentou diante de um público de 400 mil cubanos no centro de Havana, em abril deste ano. Assim, os organizadores tiveram dificuldades em prever se a ideia de combinar a música afro-cubana com as produções eletrônicas e artistas estrangeiros teria sucesso. Se o Manana atrair os moradores de Santiago de Cuba, será um crescimento de público baseado no boca a boca, no decorrer de três noites de festival.

"Háuma grande divisão. Os músicos cubanos não precisam de uma elaborada produçãoeletrônica porque eles sabem tocar os próprios instrumentos" – Ned Sublette,autor de Cuba and Its Music

Mas, se uma avassaladora onda de mudanças está chegando à cena musical cubana, faz todo sentido que ela comece em Santiago de Cuba. A cidade tem história como ponto de partida de novos começos. A luta pela independência de Cuba no século XIX começou lá, e o exército maltrapilho de Fidel Castro disparou os primeiros tiros da Revolução Cubana quando atacou o quartel Moncada — que se situa a menos de dois quilômetros de Heredia, o espaço onde rolou o Manana. Até mesmo o fenômeno raggaetón que hoje toma Cuba de assalto teve seu primeiro sucesso aqui. "Os ventos da revolução em Cuba sopram do leste para o oeste", comenta Sublette.

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Alain Garcia Artola, um rapper com o grupo cubano de hip-hop TnT Rezistencia, teve um papel essencial em fazer o Manana acontecer em Santiago.

O cofundador britânico do Manana, Harry Follett, veio a Santiago de Cuba em 2014 para estudar percussão com o mestre do batá Mililian Galis. Follett logo fez amizade com Alain Garcia Artola, um agitador da cena musical da cidade e membro do grupo de hip-hop TnT Rezistencia, muito famoso no local. Os dois abriram um estúdio temporário para gravar músicos folclóricos locais, e perceberam que, se conseguissem trazer músicos de selos como a Warp Records para colaborar com esses artistas imensamente talentosos da cidade, alguma parada incrível poderia acontecer.

A dupla concebeu a ideia de um festival que tiraria proveito da glasnost cubana que está se desenvolvendo atualmente. Os músicos não só encontrariam seus equivalentes do exterior; eles aprenderiam uns com os outros e formariam relações duradouras.

Harry Follett e Jenner Del Vecchio trabalharam na cena musical londrina para trazer pesos pesados para a estreia do Manana Festival.

Garcia Artola trabalhou junto a seus contatos para que abrissem as portas às importantíssimas autorizações governamentais. Como muitos aspectos da vida na Cuba socialista, instituições do governo controlam a indústria da música de Santiago, mantendo seus teatros, espaços dedicados à música e estúdios de gravação — e tendo até músicos locais em sua folha de pagamentos. Garcia Artola e Follett venderam os festivais às autoridades pondo ênfase na colaboração artística. "Reforçamos o fato de que, na nossa opinião, não havia uma cultura muito desenvolvida de gravação e produção em Cuba, e que essas coisas na verdade não eram vistas como uma forma de arte", explicou Follett.

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De acordo com Follett, o Manana sequer chega a ser um festival — em termos oficiais, é uma "troca cultural" entre músicos cubanos e estrangeiros, administrada pelo Cultura, a Secretaria de Cultura da Província de Santiago de Cuba. Quando o Manana conseguiu obter sinal verde do Cultura, em fevereiro de 2015, Follett, já de volta a Londres, correu com a boa notícia, recrutando seu amigo Jenner Del Vecchio, que prontamente largou um emprego que detestava na área de marketing, e se tornou o terceiro cofundador do festival.

Janner Del Vecchio, cofundador do Manana, se encontra com Indira Gamez, da Empresa de la Música, a companhia de agenciamento de artistas comandada pelo governo.

Para intermediar os contatos com a comunidade da música eletrônica como um todo, Follett e Del Vecchio buscaram de imediato o Soundway e o Sofrito — os dois principais selos na Inglaterra dedicados a tudo que é afro-latino-caribenho. As duas equipes fecharam contrato imediatamente, com o presidente da Soundway, Miles Cleret, e Frankie Francies, da Sofrito, se apresentando no Manana, assim como também os chefões da música latina em Nova York da Fania Records, que fizeram a curadoria de um palco próprio.

Uma campanha no Kickstarter lançada em outubro de 2015 ajudou a intensificar ainda mais a empolgação no exterior, conseguindo arrecadar o suficiente para pagar cerca de metade dos custos do festival. O governo cubano se encarregou do restante da conta, fornecendo espaços controlados pelo estado — incluindo o Teatro Heredia, o palco principal do evento, que tem capacidade para duas mil pessoas — e músicos locais, que na prática são funcionários públicos. O Manana também depende de contribuições pro bono dos que acreditam na causa. Duas empresas inglesas, a No Nation e a Event Production Management, doaram sua experiência em questões logísticas e milhares de dólares em equipamentos de som, sem cobrar nada.

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Artistas da banda Plaid, do selo Warp, no estúdio, junto com Obbatuké, de Santiago

O festival obteve um destaque internacional ainda maior graças a uma invasão do Boiler Room que aconteceu em novembro de 2015. Ehsaei, o diretor de som do Manana, juntou-se ao trio cubano Ariwo e aos músicos locais Yelfris Valdés, Orestes Noda e Hammadi Valdés, para dar um poderoso exemplo da fusão de sons entre a música afro-cubana e a eletrônica. O show no Boiler Room foi decisivo. Depois dele, conta Follett, "muita gente veio nos procurar."

Um deles foi o mito britânico A Guy Called Gerald. "O Manana Cuba me dá a oportunidade de preencher uma parte do meu quebra-cabeças musical", disse ele ao THUMP. "As raízes musicais cubanas são as minhas raízes. Estou ansioso para tocar, investigar, e trocar novos sons e ritmos com os músicos cubanos."

Enquanto as coisas ganhavam embalo no exterior, os organizadores do Manana tiveram dificuldades para navegar pela complexa teia que é fazer negócios em Cuba. A comunicação entre os dois lados da equipe binacional foi atravancada pelo fato de que os telefonemas para números cubanos custam mais de um dólar por minuto, e os habitantes da ilha têm de pagar US$2 por minuto em troca de um irregular acesso à internet em pontos de acesso públicos.

Da esquerda para a direita: os cofundadores do Manana Jenner Del Vecchio, Harry Follett e Alain Garcia Artola ajustam os detalhes finais com Adam Isbell, do No Nation, no Centro Cultural Heredia.

A comunicação não foi o único obstáculo enfrentado pelo Manana. Compreender o que fazem todas as instituições governamentais e como elas interagem também foi complicado, diz Follett, balançando a cabeça em negação. "Há pressões para que os serviços do governo sejam usados [em tudo, desde vendedores de comida até a produção audiovisual], em vez de se recorrer a empresas privadas que também são capazes de fazer um ótimo trabalho", explicou ele.

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"Ogoverno está buscando ativamente trazer mais turistas para cá. Culturalmentecom certeza há mais possibilidades — mais potencial." — Harry Follett,cofundador do Manana

Obter o selo oficial de aprovação também implicou em abrir mão de parte do controle criativo. A cultura cubana é uma questão de orgulho nacional, e os poderosos têm interesse em que ela seja representada. Então, embora o Manana esteja enfatizando o seu foco afro-cubano, o governo estava acostumado a promover a música local como salsa e sua predecessora, o son, nascida em Santiago. Ambas as partes acabaram chegando a um acordo. "Eles entenderam como nós estamos vendendo a ideia para um público internacional", disse Follett. "Nós estamos ouvindo o que eles têm a dizer, mas também avançando em termos criativos."

Alain Garcia Artola se apresentando nas ruas.

Em última análise, foi o recente degelo nas relações entre EUA e Cuba que tornou possível o Manana. "O governo está buscando de forma muito mais ativa dar apoio a esses tipos de evento, buscando trazer mais turistas para cá", disse Follett. "Culturalmente com certeza há mais possibilidades, mais potencial."

Mas, se há uma revolução em curso, ela ainda não chegou às massas. Em uma úmida noite de domingo, no mínimo mil santiaguenses se reuniram na Plaza Marte, no centro da cidade, para curtir as últimas horas do Dia de Maio, o maior feriado nacional. Uma banda começou a se apresentar, e o público — cuja faixa etária ia dos oito aos oitenta anos — absorveu com gosto o entretenimento, com os casais se formando para gingar e balançar ao som da música que eles escutam desde o útero. Garcia Artola, cuidando freneticamente dos preparativos de último minuto para o Manana, me encontrou em um lobby de hotel perto da praça para uma conversa rápida. Dando uma olhada na multidão que dançava lá fora, ele parecia nervoso, mas decidido. "Nós convencemos as instituições", disse. "Agora precisamos convencer o povo."

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Tradução: Marcio Stockler