Maconha Medicinal É Papo de Gente Grande!

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Drogas

Maconha Medicinal É Papo de Gente Grande!

Ainda na clandestinidade, o uso terapêutico da substância começa agora a ganhar espaço no território brasileiro.

Muda de Harle-Tsu, cêpa de canábis com alta concentração de Canabidiol, que pode gerar remédio para tipos raros de epilepsia.

O mês passado foi marcado pelo quebra-quebra das eleições, muita baixaria rolou nos debates, nas ruas e sobretudo nas mídias sociais, rinha favorita de ativistas de sofá e direitistas de plantão. Passada essa que foi uma das eleições presidenciais da história os ânimos não acalmaram como de costume, e por conta disso uma outra discussão igualmente inflamada que vem rolando durante o mês vem passando batida - a discussão sobre a regulamentação do uso medicinal de maconha.

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Alimentados pelo ​lançamento do longa-metragem "Ilegal" longos debates foram travados entre aqueles que defendem o uso unicamente medicinal da maconha e os que são a favor da legalização total da erva. Uma discussão temperada por representantes de laboratórios gringos, cultivadores de maconha que defendem a produção do medicamento aqui, ativistas paranoicos e pacientes desesperados. Ainda no inicio do mês o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) publicou uma ​resolução regulamentando a prescrição do CBD para o tratamento de alguns tipos de epilepsia, mais comuns em crianças. A reação contrária veio por parte dos senadores ultraconservadores Luíz Antônio Fleury Filho e Magno Malta que ​anunciaram na Comissão de Direitos Humanos do Senado o lançamento da "Frente Parlamentar Mista Contra a Legalização das Drogas", um grupo de 75 senadores e 400 deputados federais que defendem o endurecimento da lei de drogas. Em depoimento na CDH, o senador Fleury foi categórico em reconhecer as propriedades terapêuticas do canabidiol, desde que importado e fornecido pelo SUS. A notícia mais recente da tal frente é que seu vice será o deputado Federal Romário.

O CBD, ou Canabidiol, tem ganho notoriedade na mídia internacional desde a ​exibição de uma matéria na CNN, onde o neurocirurgião Dr. Sanjay Gupta explana várias propriedades terapêuticas da maconha, destacando o caso de Charlotte Figi, uma menina de 5 anos portadora de uma espécie rara de epilepsia chamada Síndrome de Dravet. Ela chegava a ter 300 convulsões por semana, após esgotarem outros tipos de tratamento, seus pais experimentaram o uso de um concentrado de CBD e conseguiram praticamente zerar o número de convulsões. O assunto teve repercussão mundial, a VICE mesmo fez um ​vídeo maneirão sobre o assunto, e pais de crianças portadoras da mesma síndrome em todo mundo começaram a buscar esse tratamento.

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Mães e pais de crianças com epilepsia na Marcha da Maconha do Rio de Janeiro em Maio deste ano.

Acontece que diferente dos EUA, que tem o uso medicinal da maconha regulamentado em 23 estados, na maior parte do mundo a maconha é expressamente proibida e seus usuários, e sobretudo seus traficantes, são tratados como o pior tipo de ser humano, responsáveis pela maioria dos problemas da sociedade. Ainda que a lei de drogas brasileira de 2006 diga que o uso terapêutico de drogas ilícitas pode ser autorizado pela Anvisa, um médico pode se dar muito mal ao prescrever essa droga, perdendo o registro e podendo até ir em cana. Motivadas pela repercussão do caso Charlotte, Katiele Fischer e Margarete Brito, dentre outras mães de crianças portadoras da mesma síndrome comprovaram a eficácia do Canabidiol utilizando seringas do remédio importadas clandestinamente. A história delas foi contada no curta-metragem "Ilegal" que seis meses após sua estreia tornou-se o longa-metragem em cartaz em cinemas por todo país que mostra não só a evolução do tratamento, como a angustiante batalha burocrática pelo remédio proibido. Diferente da maioria dos documentários nacionais recentes sobre maconha, "Ilegal" não se aprofunda nos motivos do proibicionismo, focando apenas numa de suas nefastas consequências - a privação de um remédio à pessoas cuja qualidade de vida depende dele. "É a chance do usuário recreativo levar a mãe ao cinema e mostrar como a erva que ele fuma pode ajudar muitas pessoas, todo mundo tem algum amigo ou familiar com alguma doença que pode se beneficiar da canábis" diz o jornalista Tarso Araújo, que com Raphael Erichsen assina a direção do filme.

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Assista ao trailer de "Ilegal, A vida não espera", filme que comprova os efeitos medicinais da maconha e mostra a árdua e muitas vezes frustrante jornada dos pacientes para conseguir seu remédio.

Hoje, para conseguir uma autorização de excepcionalidade junto a Anvisa e utilizar a canábis medicinal é necessário indicação ou receita médica, além de um laudo sobre a doença. Para entender melhor esse procedimento legal encontrei um dos personagens do filme, o Dr. Emilio Figueredo, consultor jurídico do Growroom desde 2010 e que recentemente conseguiu para uma paciente de dores neuropáticas a ​primeira autorização no Brasil para uso medicinal do THC através do medicamento natural Sativex. "Ela conseguiu uma prescrição do médico para usar o THC + CBD do Sativex e um relatório contando toda a luta dela. Como o Sativex é um medicamento registrado e reconhecido em vários países ela conseguiu uma prescrição mesmo, mas por conta das burocracias e dos preços proibitivos, mais de R$ 10 mil reais três frascos, ela ainda não conseguiu importá-lo." Segundo Emilio a resolução do Cremesp é um passo a frente, mas ainda um passo tímido - "Ela é muito restrita, além de não atender a todos que precisam de CBD, ela é redigida com termos que favorecem a indústria farmacêutica." Ele se refere aos parágrafos "CONSIDERANDO que a Cannabis sativa contém, dentre seus inúmeros componentes, ora designados canabinóides, o canabidiol (CBD) e que este pode ser isolado ou sintetizado por métodos laboratoriais seguros e confiáveis". E "CONSIDERANDO que formulações estrangeiras já disponíveis em veiculações para uso oral e com alto nível de pureza de CBD, apresentando teor de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) menor do que 0,6% da solução, tal como o recomendado pelo Food and Drug Administration (FDA/USA)".

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Além de outras condições médicas que podem ser tratadas com o CBD, a resolução ignora totalmente o uso terapêutico do THC. Tratado nessa história toda como o "primo feio do CBD", afinal é a substância que de fato chapa na "erva do capeta", mas a substância mais famosa da maconha também tem ​comprovados efeitos medicinais como confirma o farmacologista Fabricio Pamplona - "O THC sintético ​(registrado como donabinol)  já é utilizado nos Estados Unidos desde a década de 70 para combater os efeitos da quimioterapia e aumentar o apetite em pacientes anoréxicos. Também é analgésico, podendo ajudar a reduzir a dose de opiáceos e há evidências de que possa ​reduzir o tamanho de certos ​tipos de tumores. É muito estranho que a substância sintética tenha sido classificada como Schedule III (baixo potencial de dependência, com uso terapêutico), enquanto a substância natural ainda seja Schedule I (alto potencial de dependência e sem uso terapêutico). É claramente uma questão de interesse econômico." Fabricio também lembra que os potenciais efeitos adversos apontados pelos críticos do uso terapêutico da maconha são justamente os mesmos efeitos que os usuários recreativos acham prazerosos, descritos por quem vê "de fora" como sonolência, incoordenação motora e prejuízo cognitivo temporário. Quanto aos riscos de "paranoia e surto psicótico" sempre levantados pelos críticos da canábis o farmacologista lembra que "são raros, geralmente associados a concentrações altíssimas de THC e não acontecem da noite para o dia. É possível informar o usuário sobre a ocorrência de sinais como 'mania de perseguição' para que ele mesmo possa diminuir ou cessar o uso caso tenha sintomas dessa natureza."

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Como bem mostra "Ilegal", muitos pacientes da canábis medicinal jamais tinham tido contato com a erva, venceram seu preconceito para usá-la e foram conquistados pelos resultados. O maior desafio para elas hoje é, junto da burocracia, os preços proibitivos. No último mês, a Anvisa liberou 113 dos 167 pedidos de uso do CBD recebidos desde Abril, 39 estão sobre análise e 4 foram arquivados, um deles do menino Gustavo que faleceu com 1 ano e 4 meses enquanto aguardava liberação do remédio que estava preso na alfândega. Desses pacientes que tiveram o uso autorizado, pelo menos 80 estão utilizando o RSHO (sigla para Real Scientific Hemp Oil) da Hempmeds, empresa do grupo ​"Medical Marijuana Inc", por sua vez braço medicinal da multi-milionária ​"Hemp Inc", gigante no segmento mundial de cânhamo industrial. De tecido à material de construção, praticamente tudo não-fumável derivado de maconha que é produzido ou vendido no mundo, passa pelas mãos (e cofres) da "Hemp Inc". O custo de cada seringa do RSHO da Hempmeds varia entre 160 e 800 dólares de acordo com a concentração de CBD. Recentemente o grupo de estudos Project CBD, publicou um relatório intitulado ​"Hemp Oil Hustlers" (algo como "Vigaristas do Óleo de Canhamo") apontando várias criticas ao produto, que utiliza como matéria prima cânhamo industrial chinês e segundo o estudo tem elevado nível de contaminantes como arsênico e metais pesados. Dois dias depois da publicação dos estudos a Medical Marijuana Inc entrou com um processo de 100 milhões de dólares contra o laboratório que ​realizou os testes para o estudo.

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Uma rede de cultivadores de maconha fornece o óleo de CBD gratuitamente para alguns pacientes, o próximo passo é ensiná-los a tornarem-se auto-suficientes.

A esperança de uma alternativa para a custosa importação está nas mãos de uma ​rede anônima de cultivadores de canábis do Rio de Janeiro. A Rede é uma iniciativa informal de uma turma de amigos que plantam maconha com fins recreativos há anos e que por compaixão resolveram assumir um compromisso de separar a cada ciclo de floração uma planta de seu cultivo e doá-la para uso medicinal. A ideia é selecionar e perpetuar genéticas com alto potencial terapêuticos, produzir óleo a partir de suas flores e distribuí-lo gratuitamente para pacientes no intuito de estimulá-los e educa-los a produzir seu próprio remédio. Conversei com um dos fundadores da rede, que por motivos óbvios não posso identificar e por isso o chamarei de um nome bem ridículo, Ferdinando. "É uma inciativa totalmente sem fins comerciais, é simplesmente um objetivo de solidariedade, compaixão. Não temos grandes aspirações por enquanto de tornar-nos muito mais do que isso. Somos simplesmente um grupo de cultivadores se aprimorando e estudando para fazer esse óleo que chega tão caro no país. Se existe um objetivo é difundir a cultura desse remédio da planta, um remédio que pode ser feito em casa por qualquer um de uma forma bem simples." Ferdinando e sua trupe são realistas em assumir que por mais cultivadores que se solidarizem à causa, dificilmente vão conseguir atender a demanda de pacientes que chegam aos fóruns de internet atrás de informações sobre seu remédio proibido. "Apesar do nosso objetivo inicial seja dar remédio a realidade diz que hoje em dia isso é impossível, então temos de capacitar as pessoas a produzir o remédio. A ideia é dar o remédio e dizer, 'está vendo isto daqui que eu estou te dando? Eu fiz lá em casa, você pode fazer na sua casa também'. Já temos pessoas que estão fazendo isso.O que eu planto naquele meu cantinho, o que todo mundo planta aqui não vai sustentar a demanda de óleo, mas pode sustentar a demanda de plantas mães e mudas, entendeu? Ensinar a pescar a gente consegue."

Um dos colaboradores da rede trouxe da Califórnia sementes de Harle-tsu, uma cepa canábica que resulta do cruzamento de Harlequin e Sour Tsunami. É uma planta conhecida por ter uma taxa de CBD muito alta em relação ao THC, logo é muito apropriada para o tratamento da epilepsia e reza a lenda que foi usada pela Charlote. Os cultivadores da rede conseguiram criar plantas mães cujas flores passaram por exames num laboratório aqui no Brasil, lá o formato dos tricomas observado sugere que ela seja alta em CBD. Foi realizada uma extração de óleo dessa planta e uma amostra enviada ao Colorado aonde passará por testes mais específicos. Se os resultados forem satisfatórios e essa planta mãe realmente tiverem uma concentração alta de Canabidiol, ela gerará mudas que serão distribuídas a cultivadores da rede e mães de crianças portadoras de Dravet. "Tem uma mãe querendo abrir um processo para pode montar uma cooperativa de cultivo para fins medicinais nos moldes da legislação do Chile. Digamos que ela ganhe, pode plantar, e aê? Aê tem a nossa galera que pode ajudar, já temos as plantas mães, sabemos como cultivar, como produzir o óleo…" explica Ferdinando, que acredita na capacitação das mães para o cultivo - "Eu tive muito contato com essas mães, os filhos delas são relações que elas vão levar para o resto da vida, elas vivem aquilo todo dia, logo entendem tanto ou mais do que os médicos. Tem uma mãe com uma filha de 19 anos com Dravet, já foram muitos tratamentos que ela acompanhou. Uma faculdade de medicina são seis anos, a experiência dessa mãe é muito mais do que isso. Então, se essa mãe poder plantar o remédio do seu próprio filho…" A emoção fala mais alto, e após uma pausa Ferdinando conclui seu pensamento, "Nosso objetivo é esse, proliferar, semear."

As 113 autorizações expedidas pela Anvisa não chegam nem perto do número de pacientes de epilepsia que precisam do canabidiol no Brasil, estimados em centenas de milhares. Sem contar pacientes com HIV, esclerose múltipla, dores crônicas ou quimioterapia que podem se beneficiar do THC. O assunto ecoa em Brasília, mas corre o risco de estagnar graças a décadas de demonização do assunto. Enquanto isso, a maioria dos pacientes precisa recorrer a ilegalidade ou contar com a solidariedade de poucos que, diferente da turma de Brasília, topam correr o risco de perder uma licença médica ou ser preso como traficante pois se sensibilizam e entendem que quem está doente não pode esperar.