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Viagens

S. Jorge é um paraíso

Um paraíso para quem acha que o mundo devia ser uma árvore e duas barras de tofu.

A ilha de São Jorge é famosa por duas coisas: o queijo São Jorge, aquele grandalhão de dez quilos à venda em todo o lado, e as fajãs. Perguntam vocês: “O que é uma fajã?”, ao que eu respondo “meu, estás na internet, procura”. Curioso por saber como é viver numa, vi na Semana Cultural das Velas, o pretexto ideal para visitar a ilha.

Chegado ao Cais do Pico para apanhar o barco até São Jorge deparei-me com um cenário que já antes me tinham descrito. Como cá não há Sudoestes, nem Milhões de Festas (juro que não tive ninguém da VICE a apontar-me uma arma para falar no MdF) os jovens açorianos adoptam o modo festivaleiro, armam-se de armas e bagagens (que é como quem diz tendas e aquelas calças de pano que os betos da linha compram aos ciganos) e percorrem as festas das outras ilhas. Na verdade estas festas são, basicamente, festas de aldeia, mas um bocado mais sofisticadas, ainda que o adjectivo “sofisticado” tenha aqui o mesmo rigor de um orçamento grego. Aquilo ao fundo é Velas. Agora imaginem pterodáctilos. Como cheguei tarde fui logo para a festa, mas o impacto da ilha é imediato. É alta, verde e cheia de arribas, e se tivesse sido atacado por um dinossauro não ficaria surpreendido. Já na festa sentei-me numa tasquinha para jantar, a comida não foi nada de especial mas valeu pelo ambiente. As outras mesas estavam quase todas ocupadas por terceirenses, o que significa animação garantida. Há até quem diga que os Açores são oito ilhas e um parque de diversões, e depois de uns copos de vinho e umas canções improvisadas aos berros sobre gajas, sexo, ilhas, festas e mais gajas, aquilo da Terceira é bem capaz de ser verdade. Para o que vinha a seguir é que ninguém me preparou. Chegado à zona dos concertos ouvi uma música sobre um cavalo de corrida e de repente o meu bom gosto pediu licença para esfregar uma bala na têmpora. Andei mais um pouco, virei-me para o palco e confirmou-se o pior: um concerto dos UHF. Depois do choque bebi mais umas cervejas e uns gins e lá recuperei. Estando nos Açores o bom tempo nunca é garantido mas no meio da chuva e de um techno estupidamente agressivo que veio depois dos UHF — melhor transição de sempre — a festa continuou. Sei que no fim nadei todo nu numa piscina natural e tentei comprar um leitão assado, mas se estou a escrever isto é porque deve ter corrido bem. Na manhã seguinte, sem ressaca e cheio de sol na cara, acordei para o principal motivo da minha ida à ilha: visitar a Fajã da Caldeira de Santo Cristo. Da vila das Velas até à Serra do Topo (o ponto de partida da caminhada) ainda demora um bocado e durante o caminho deu para apreciar a paisagem da ilha. Sobre isto não há muito a dizer, a ilha é uma amálgama de vales e montes verdes, uma espécie de paraíso para quem acha que o mundo devia ser uma árvore e duas barras de tofu. A certa altura comecei a ver filas de hortências a dividirem grandes campos cheios de vacas e, não sei por quê, passei o resto do dia a pensar na Elsa Raposo. Como nesta altura já devem saber o que é uma fajã (se não sabem é porque são estúpidos e preguiçosos) também podem imaginar que ir até uma não é para meninos, muito menos meninos paraplégicos. Pouco antes do local da descida o tempo mudou radicalmente, parecia que tinha ido parar a Silent Hill e a qualquer altura ia ser atacado por um bicho com dez braços, mas afinal a coisa mais estranha que vi foram uns enormes pingos de bosta. Olha que bonito. Se calcares dá sorte. Lá comecei a descida. Tudo muito bonito com vales e cascatas de água doce, viva a natureza, vacas, bosta, pequenas alamedas floridas, paz & amor, mais vacas, mais bosta, e uma hora e meia e uns quantos recalcamentos hippies depois estava na Fajã da Caldeira de Santo Cristo.| Pronto, isto é que é uma fajã. Não se vê ninguém nas ruas que dividem as cerca de 50 casas que ali existem, a electricidade é pouca e só com gerador, rede telefónica nem vê-la e carros muito menos — a maioria das pessoas chega a pé ou de moto 4, mas acreditem quando digo que para conduzir nestes trilhos, além de experiência, é preciso um grande par de tomates. Esta fajã é conhecida pela caldeira que forma uma lagoa famosa pela temperatura da água e por ser o único sítio dos Açores onde há amêijoas. Algumas pessoas comem-nas cruas, mas isso não tem jeito nenhum, por alguma razão o Bulhão Pato ficou mais conhecido pela receita do que pelos poemas. Como eu sou um tipo cheio de sorte, nem água quente nem amêijoas, nesse dia a lagoa estava cheia de alforrecas. Como não podia deixar de ser, nos Açores, por mais ermo que seja um lugar, por mais fundo que tenhamos o braço enfiado no cu de Judas (numa espécie de fisting insular), também na fajã de Santo Cristo há uma igreja. Mas eis o twist: no lugar do padre há uma televisão que só é ligada ao Domingo para transmitir a missa e tele-evangelizar os gatos-pingados que ali vivem. Al-ta-men-te. A tal lagoa onde não tomei banho. Mais fajãs Ao que parece esta fajã também é uma espécie de Meca do surf açoriano, mas para além das ondas e de um ou outro tipo com cara de quem ouve Natiruts, não vi surf nenhum. Antes de partir descansei no único café que existe, onde ouvi o empregado a falar orgulhosamente sobre a sua moto 4 e que aproveitou a atenção (acho que já não falava com pessoas há algum tempo) para mostrar um retrato que fez. O desenho era uma porcaria, gosto de pensar que só o desenhou para passar o tempo ou que estava drogado. Terminada a visita à fajã era tempo de voltar às Velas e descansar para a noite. Sobre esta só vos digo que o que descansei não chegou, que choveu como provavelmente irá chover no fim do mundo, e que a banda principal era nada mais nada menos do que o segundo baixista dos Ramones a tocar em loop uma compilação qualquer da banda. O concerto foi quase tão deprimente como o dos UHF, mas sempre deu para bater o pé com um ou outro la-la-la. No dia seguinte tive uma patuscada onde enchi o bandulho de lapas, vinho e aguardente, para durante a tarde dar mais um passeio pela ilha. Fui até o farol da ponta dos Rosais que está desactivado desde o terramoto de 1980 e que por isso mesmo tem um aspecto abandonado e decadente que lhe fica bem. Ponta dos Rosaiso sítio ideal para casais ou suicidas solitários. Outra coisa porreira que descobri neste passeio é que os coelhos são uma praga em São Jorge. É incrível! Nos Açores não é habitual comer coelho, mas nesta ilha estão em todo o lado (a sério, em todo o lado, mesmo) e é na boa atropelá-los porque a cada um que morre nascem vinte e se isso não é o milagre da multiplicação então não sei o que vos dizer. Ah, quase que me esquecia, enquanto estive em São Jorge vi dois arcos-íris ao mesmo tempo e à vinda no barco vi golfinhos, mas ainda me sinto demasiado gay para falar sobre isso.