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Identidade

O escândalo de abuso sexual na Igreja Católica está prestes a ficar muito pior

“Acho que vamos ver isso no futuro como um momento Martinho Lutero.”
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Foto por Massimo Valicchia/NurPhoto via Getty Images. 

Semana passada, na esteira de um relatório do grande júri que concluiu que pelo menos 300 padres abusaram de algo entre mil crianças na Pensilvânia desde os anos 1940, as promotorias de Nova York e Nova Jersey anunciaram investigações sobre abuso sexual na Igreja Católica. Missouri, Nebraska e Illinois lançaram inquéritos também – e mais deles provavelmente virão. Nova York chegou a emitir intimações civis para oito de suas dioceses – Nova Jersey criou uma força-tarefa especial para investigar sete delas – pedindo a produção de documentos internos da Igreja relacionados com como a entidade lida com casos de abuso. As dioceses, de sua parte, prometeram transparência no trabalho com os investigadores.

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A onda de escrutínio oficial veio depois do que só pode ser descrito como um desastroso verão de escândalos para a Igreja Católica. Além das descobertas chocantes na Pensilvânia, Theodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington, DC, foi removido do ministério e renunciou do Colégio de Cardeais depois de ser acusado de abusar sexualmente de um adolescente, outros menores de idade e seminaristas adultos. O Papa Francisco ainda não se pronunciou oficialmente sobre a saga, mas vem sendo acusado por arcebispos rivais, que afirmam que o pontífice sabia do comportamento de McCarrick e pedem que ele renuncie do papado.

Mesmo que o Papa provavelmente nunca encare um processo criminal sobre se sabia ou não e quando, parece que a instituição está no meio de um momento sem precedentes. Francisco deve se encontrar com os líderes da Igreja Católica americana na quinta-feira, e está bem claro sobre o que eles vão falar: com essas investigações recém-formadas vem uma nova era de conscientização sobre a amplitude da má conduta sexual, e os EUA quase com certeza vai descobrir mais nas próximas semanas sobre casos acobertados, ações de má fé e o funcionamento geral da hierarquia da Igreja.

Mas onde isso tudo vai levar? Qual é o cenário no pior dos casos para a Igreja Católica nos EUA, além de mais notícias negativas e um punhado de padres de alto escalão perdendo o emprego? Para ter uma noção desse terreno legal, liguei para John C. Manly, advogado especializado em casos de abuso sexual de Los Angeles, que já representou dezenas de pessoas abusadas pelo claro Católico e outros, e viu a capacidade espetacular da Igreja de resistir ao escrutínio das autoridades.

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A entrevista foi levemente editada e condensada para melhor entendimento.

VICE: Depois do relatório bombástico na Pensilvânia, a promotoria do Missouri anunciou que vai lançar uma investigação similar, e a Arquidiocese de St. Louis, por exemplo, prometeu colaboração total. Aí as promotorias de Nova York e Nova Jersey começaram investigações similares. O que estamos vendo agora é algo novo – múltiplas investigações e a aparente cooperação das dioceses?

John C. Manly: O escândalo teve algumas evoluções. O primeiro caso foi o de Gilbert Gauthe, no final dos anos 80. Ele era um padre na Louisiana que molestou dezenas de crianças. Essa foi a primeira exposição. E depois tivemos o caso de [Joseph] Bernardin em 92. Depois [Rudolph] Kos em Dallas – foi um veredito importante. Aí tivemos o veredito de Stockton sobre [Oliver] O'Grady em 97, que recebeu muita atenção da imprensa. E [Ryan] DiMaria, meu cliente, uma vítima que conseguiu um acordo de US$ 5,2 milhões, no começo dos anos 2000. Depois, claro, veio Boston, em 2001 e 2002. Esse caso desencadeou o de Los Angeles, e o caso do Cardeal Roger Mahony também recebeu muita atenção da imprensa.

"Se você acha que o que aconteceu na Pensilvânia foi ruim, espere até saírem os resultados de Nova York e Nova Jersey."

O que é diferente agora, desses outros casos que mencionei, é que não houve realmente um esforço nessas evoluções para fazer qualquer coisa fora processar padres predadores. Por exemplo, as autoridades tinham Mahony em vista – eles podiam ter indiciado ele. E Steve Cooley, que era promotor distrital de Los Angeles na época, não fez isso. E acho que ele não indiciou porque a Igreja – a hierarquia da Igreja – ainda tinha uma influência significativa. O que aconteceu com o tempo é que os indivíduos eleitos para esses cargos tiveram cada vez menos exposição à Igreja que tinha o tipo de poder político de 30 anos atrás. A Igreja, agora, tem menos influência política e não pode mais impedir as investigações.

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Francamente, se você é o promotor geral da Pensilvânia e começa a receber essas ligações, e vê o escopo desses casos, por que não investigar? É um crime numa escala inédita. Na Califórnia, a Igreja pagou US$ 1 bilhão em acordos nos casos do meio dos anos 2000. A diocese faliu. E não é só o número de perpetradores. A conspiração criminosa real, o crime real, é o esforço para acobertar esses casos, esconder isso como política e prática interna. Acho que muita gente ainda quer acreditar que algo como o que aconteceu na Pensilvânia é uma anomalia. Não é. É a norma. Toda diocese é igual – e a razão para isso é que a Igreja é uma organização hierárquica, gerenciada de cima para baixo.

O que você acha que deve acontecer agora nos EUA? Você espera que mais e mais estados comecem suas próprias investigações?

Sim. Sabe, os promotores conversam, e acho que as pessoas finalmente estão reconhecendo isso como uma questão de saúde pública. Em prisões, espaços de reabilitação de drogados, reuniões de alcoólatras anônimos – você vai encontrar vítimas de abuso infantil por padres. O sistema escolar da Igreja Católica é o maior sistema de escolas particulares dos EUA. Instituições católicas possuem mais imóveis que qualquer instituição privada neste país. É uma organização gigantesca. E temos relações diplomáticas com o Vaticano.

Acho que o próximo passo – que acho mesmo que vai acontecer – é investigação federal. Instituições católicas não são apenas religiosas, elas recebem muita ajuda financeira federal, estadual e local através de caridade e outras organizações. E, mais importante, eles são uma organização isenta de impostos. Se a Cientologia, que é uma seita pequena, [eventualmente perdesse] seu status de isenção por causa de criminalidade, então não é justo que isso aconteça com a Igreja Católica? Você pode imaginar, digamos, se você descobre que 300 comissários de bordo da United Airlines estão molestando crianças, o que aconteceria com a United Airlines? E não temos 300 – temos muito mais padres sendo removidos por causa de seu comportamento desde o começo dos anos 2000. A única razão para a Igreja não ser considerada sob o mesmo padrão é por causa de seus trabalhos religiosos.

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A verdade é – ninguém quer dizer, mas é a verdade – temos, basicamente, um governo estrangeiro permitindo que seus agentes molestem crianças.

Mas a Igreja Católica conseguiu se manter praticamente intacta por mais de 2 mil anos. Se uma investigação federal for iniciada, isso vai realmente ameaçar a Igreja como instituição de base nos EUA?

Acho que isso é diferente. Eu dizia que a Igreja estaria aqui muito depois que eu morresse, e tenho certeza que vai – mas será como uma instituição diminuída. Vejo o alto escalão da hierarquia indo para a cadeia. O que é preciso aqui é uma investigação federal e de vários distritos. A Igreja tem recebido o benefício da dúvida – e teve chances – como nenhuma outra instituição do mundo. E o que eles provaram é que não vão abordar o problema subjacente que causa isso, o que acho que é o celibato. Isso não funciona; nunca funcionou. Você não houve eles debatendo sobre nada disso.

Mas em grande parte dessas situações, os crimes já terão prescrito, certo?

Sim. Essa é a única defesa deles na verdade. Te digo uma coisa: um caso sobre isso agora é na Califórnia. Jerry Brown, na minha opinião, sempre foi contra vítimas, desde quando foi governador nos anos 70. Ele também é ex-seminarista jesuíta. Uma reforma dos estatutos de prescrição foi colocado na mesa dele anos atrás, e ele vetou – e quando falavam com ele sobre a importância dos estatutos de prescrição, ele basicamente imitava a fala dos bispos. Mas ele é de uma geração que nunca faria nada para prejudicar a hierarquia da Igreja. Em contraste, Gavin Newsom, que provavelmente será eleito na próxima eleição [para governador], é de uma geração completamente diferente.

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Quanto tempo investigações como a de Nova York podem durar?

Se eles conseguirem levar isso para o grande júri, como aconteceu na Pensilvânia, tipicamente menos de um ano. Sabemos que o que aconteceu em Nova York foi ruim, porque tivemos algumas revelações. Mas as revelações até agora não serão nada comparado com o que eles vão descobrir. E o que acho que eles vão descobrir é que os cardeais da era moderna – [Cardeal Edward] Egan e outros – e bispos estavam fazendo tudo que podiam para manter isso escondido, porque eles sabiam quanto a situação era ruim. Se você acha que o que aconteceu na Pensilvânia foi ruim, espere até saírem os resultados de Nova York e Nova Jersey. Essas paróquias italianas, digamos, especialmente no meio do século 20 – e isso é muito similar para imigrantes latinos hoje – eram o centro da comunidade. E acontece que muitas delas estavam alimentando predadores.

O que pode acontecer, criminalmente ou de outra maneira, com o pessoal de alto escalão – os cardeais, digamos – que são diplomatas estrangeiros, e muitas vezes são chamados de volta para o Vaticano quando seus escândalos são revelados?

É uma pergunta interessante. Eles geralmente têm cidadania dupla, então podem fugir para o Vaticano. Nelson Mandela dizia que você pode julgar a alma de uma sociedade pelo jeito como ela trata suas crianças. Não estamos fazendo um bom trabalho.

Como os EUA se compara com as respostas do resto do mundo? Sei, por exemplo, que a Austrália aprovou uma lei polêmica que exige que padres divulguem o que ouvem nas confissões – o que críticos dizem ser problemático porque os padres muitas vezes não sabem quem está do outro lado do confessionário. Abordagens assim fazem sentido?

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As confissões podem ser usadas como arma, e uma ferramenta para acessar crianças. Acho que há espaço para confidencialidade na medicina, na psicologia e na espiritualidade. Se alguém quer se confessar, e confessa um crime sério, fico em conflito sobre isso, honestamente – porque acho que as pessoas deveriam ter o direito de fazer isso. Também me preocupo que os padres possam simplesmente inventar coisas.

Eu gostaria de discutir o escândalo da Igreja Católica no contexto do movimento #MeToo. Os sobreviventes da Igreja são diferentes de outros sobreviventes de abuso de poder?

Posso te dizer que acredito que tem acontecido um longo atraso, em se tratando da Igreja. É complicado, mas – você cresceu como católico?

Sim.

Eu também. Então a diferença entre o catolicismo e basicamente todas as outras ramificações protestantes é que o único modo de salvação na Igreja Católica é através da vida sacramental. E o único jeito de participar realmente da vida sacramental é passar pelos sete sacramentos, um deles sendo se tornar padre. E as vítimas geralmente visadas por padres sempre são as crianças mais devotas, que realmente acreditam na fé.

E, lembre-se, o padre na missa tem o poder de transformar pão em Deus através da transubstanciação. E nesse momento, como aprendemos no catecismo, o padre é Deus. Então, dito isso, essas crianças foram molestadas por um homem Deus. E para muita gente isso é difícil de aceitar, mas se você realmente acredita, o impacto que isso tem na sua psique é profundo. E o nível de vergonha – tendo representado vítimas de treinadores, professores, diretores – é de longe muito pior. Há uma certeza no catolicismo que você sente que mais ninguém tem. A maioria dos sobreviventes de padres que conheço não conseguem frequentar uma missa, mesmo querendo. Esse atraso, e a incapacidade de articular isso, é algo único da Igreja Católica.

Em termos do movimento #MeToo, vamos responsabilizar pessoas poderosas não importa o que aconteça – e isso é algo muito útil para os sobreviventes. Acho que vamos ver isso no futuro como um momento Martinho Lutero, onde alguém vai pregar esses documentos nas portas. Acho que a Igreja destruiu a si mesma. Ela vai existir numa forma muito menor do que costumava ter.

Não sou mais católico. Sei que isso te choca. Mas a parte triste de tudo isso é que a teologia boa e decente da Igreja – ajudar os pobres, os presos, os fracos – se perde. Precisamos dessa voz na nossa sociedade agora.

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