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Música

Primeiro texto sério sobre as reedições de Zeca Afonso na Orfeu

O Zeca tem toda uma história para contar.

Tudo o que é icónico cria muitas vezes uma ilusão traiçoeira na cultura popular. Quem olha para o Charlie Chaplin de uniforme, bigode curtinho e a dar toques num balão em forma de globo terrestre, provavelmente acredita já ter visto

O Grande Ditador

por inteiro. Aquele excerto emblemático do filme dá a sensação de um todo, porque a televisão desde cedo habituou-se a condensar carreiras artísticas e longos períodos de história em montagens de sete ou oito minutos. O que, na realidade, devia ocupar duas horas (a duração d’

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O Grande Ditador

), fica tantas vezes reduzido à sua forma mais assimilável de dois minutos especialmente simbólicos. Deve ser também por isso que a televisão hoje raramente passa filmes a preto-e-branco. Já os vimos a todos nas montagens dos Óscares e em documentários biográficos na TV por cabo. E, para ver filmes repetidos, mais vale que seja o

Sozinho em Casa

ou

O Assalto ao Arranha-Céus.

Se há em Portugal uma obra gigante em que a parte é geralmente tomada como um todo, então essa pertence a José Afonso, o homem que aprendemos a conhecer por Zeca Afonso. Haverá quem tenha assistido a alguns vídeos do seu concerto no Coliseu de Lisboa, em 1983, e formado a partir daí a noção de que Zeca Afonso era apenas aquele senhor de cabelo grisalho e lentes grossas, a cantar sobre uns que comem tudo e outros que comem nada. Outros terão escutado o coro de “tiririris” de “Venham Mais Cinco” e acreditado que as restantes canções seriam invariavelmente menos representativas e mágicas. O mais grave será ainda acreditar que a imensidão de Zeca Afonso pode sequer estar tangencialmente representada numa paródia tão sem graça como aquela que é feita pelos Homens da Luta. Zeca Afonso não é um tópico assim tão sério, mas também não é traduzível numa péssima piada de esquina.

Todas estas perspectivas sobre como encaramos Zeca Afonso não serão tanto acusações de desleixo, mas muito mais exemplos de como a dimensão icónica (e política) do músico ainda oculta o valor dos seus discos. É por isso especialmente relevante que a Orfeu tenha iniciado em Abril passado uma reedição faseada da discografia oficial de Zeca Afonso, começando em

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Cantigas do Andarilho

e

Contos Velhos, Rumos Novos

(pretextos desta primeira revisão na VICE) e continuando por outros tantos obrigatórios como

Cantigas do Maio

ou

Venham Mais Cinco

(lá iremos em breve).

Podíamos talvez atribuir o timing desta empreitada ao conturbado cenário político do país e de como este precisa do espírito interventivo de um Zeca Afonso, mas isso, sem ser errado, teria o seu quê de redutor. Se é por demais sabido que estas canções assumiram um papel determinante em todo o redor do 25 de Abril, uma escuta de dois ou três discos de Zeca é o que basta para perceber como os seus temas também podiam ser lúdicos, às vezes até mesmo engraçados (“A Acupunctura em Odemira” é um título que por si só faz rir).

De todas as revelações nesta série de reedições da Orfeu, salienta-se aquela que aponta a criatividade como um recurso essencial para encontrar um ponto sensível na opressão e corroê-la por dentro com jogos de palavras. Ao ver-se sob um intenso escrutínio por parte do sistema, Zeca Afonso codificava constantemente imagens e pequenas narrativas para denunciar o que tinha de ser denunciado, como acontece em “Era de noite e levaram”, momento especialmente intenso de

Contos Velhos

, que trata dos sequestros conduzidos pela PIDE. E o que não é um verdadeiro autor senão aquele que define e vai depois apurando a forma como comunica com o seu público? Nesse aspecto, terão sido poucos os autores mais complexos e sumarentos que Zeca Afonso.

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Todo o processo de reedição deste cancioneiro podia facilmente transformar-se num projecto faraónico sobrecarregado de inovações, mas a Orfeu não complica e tratou do legado com toda a dignidade possível. As novas edições surgem em CD, num digipack bonito e fiel aos vinis originais (sem o slogan “Música é cultura” e o “Estéreo” da altura). Cada disco vem acompanhado por um pequeno texto (mais afectivo) escrito por um músico e um ensaio assegurado pelo jornalista Gonçalo Frota. Aquele que o site da Discogs chama de Gonçalo Fleet (lol) trata o tema com um equilíbrio impecável de informação histórica, contexto, citações e trivialidades. Cinco estrelas.

Todo este conjunto não andará muito longe das melhores edições exclusivas do Japão, que não será apenas por acaso o país mais conhecido pelo valor dos seus discos. É um alívio olhar para esta série da Orfeu, especialmente depois do desastre que foi a colecção temática de Amália (em vinil) a cargo da Tugaland. A sério, escolher uma fotografia de uma mulher coberta de balões e tinta, numa piscina insuflável, pode ser uma forma arrojada de representar Amália, mas é igualmente assustadora. Algures, há um disco de

Amália Salero

a chorar por não encontrar um comprador com aquela capa horrível.

Contos Velhos, Novos Rumos

, por sua vez, dá-nos todos os motivos para sorrir logo que abre com uma trompa que parece anunciar um fabuloso mundo novo. De facto, aquele que era apenas o segundo álbum de Zeca Afonso, na Orfeu, é um documento tão à frente do seu tempo, que pequenas partes dele são capazes de fazer prever discos inteiros que marcariam a canção nacional a partir daí. Zeca está em toda a parte, é verdade, mas terá sido, por exemplo, decisivo para que “Eh! Meu Irmão (Ou Mais uma Canção de Medo)”, de Sérgio Godinho, fosse, três anos mais tarde (1972), uma fábula com um enganoso tom infantil e focada num assunto tão sério como era ser surpreendido pela opressão. Seria também pouco provável que o álbum

B Fachada é pra Meninos

fosse como é, sem ter havido primeiro um “Já o tempo se habitua”, e aquela repetição de marimba, que é África a entrar pela tradição portuguesa adentro. Tudo isso numa canção de três minutos e meio, que explica tanto em tão pouco tempo. Essencial.