Kobe Bryant se formou em teatro, não em matemática

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VICE Sports

Kobe Bryant se formou em teatro, não em matemática

Os 60 pontos no último jogo não representam muita coisa. Com a despedida do ala-armador, entra em extinção o artista da quadra de basquete – aquele capaz do espetáculo improvável.

Foto: Robert Hanashiro-USA TODAY Sports

Capaz que nunca mais exista um Kobe Bryant. Soa clichê, mas é porque é mesmo: tendemos a dizer a mesma coisa sempre que um grande atleta se aposenta. No caso de Bryant, a afirmação é verdadeira. E se você for um fã de basquete, é importante entender por quê. Bryant foi um talento raro e colossal. Jogadores com sua competência, habilidade atlética e impulso competitivo aparecem uma vez a cada década e, convenhamos, raramente passam duas décadas em quadra. Ainda assim, deixando o esplendor de Bryant de lado, há uma razão pela qual não veremos alguém como ele: a NBA não quer mais Kobe Bryants. Ah, claro, a liga precisa de estrelas do nível de Bryant, é um requisito. Isso oferece #conteúdo para venderem o basquete. Mas, quando se trata de estilo de jogo, provavelmente jamais veremos alguém dar uma de Bryant. Sessenta pontos em 50 arremessos do jeito que o ala-armador do Los Angeles Lakers, de 37 anos, fez quarta-feira à noite, em seu jogo final, no Staples Center? Não espere nada parecido tão cedo. Assim como a busca por economia em combustíveis acabou com o reino dos carros potentes em prol do híbrido esportivo, o foco contemporâneo do basquete em eficiência transformou o estilo de artilheiro proeminente de Bryant numa espécie de anacronismo, uma maluquice prestes a ser eliminada do ecossistema pela feitiçaria inovadora de um Steph Curry ou pelo cálculo analítico descarado de um James Harden. Veja bem, Bryant não é o último veículo da linha, nem faz parte da última tiragem produzida pela fábrica. A NBA está repleta de ases atléticos e empertigados que seguiram seu exemplo, que desenvolveram o que acreditavam ser o jogo legítimo. Um exemplo? Rudy Gay, cujo foco nas jogadas de isolamento aperfeiçoadas por Bryant fez dele um garoto-propaganda (e/ou saco de pancadas) da linha de raciocínio pré-analítica do basquete. De qualquer forma, as coisas estão mudando. E rápido. Diferente de, digamos, Dwyane Wade e Carmelo Anthony — provavelmente as últimas estrelas estilo Bryant —, os jogadores principais de hoje são incentivados a criarem espaço por meio da habilidade de arremesso de fora do garrafão. A evolução dos prospectos multidimensionais como Giannis Antetokounmpo, Andrew Wiggins e a provável escolha número um do próximo draft da NBA Ben Simmons dependerá, em grande medida, da capacidade deles de fazer cestas de três.

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Como eu me sinto quando não me preocupo com minhas estatísticas em arremessos. Foto: Robert Hanashiro/USA TODAY Sports

Quando Bryant ganhou a fama, no fim dos anos 90, em compensação, esse tipo de tarefa era relegado a especialistas na área — jogadores que não eram talentosos o bastante para, como dizia o linguajar da época, "fazer por onde". O sucesso de pontuadores que enfrentam a marcação, como Dominique Wilkins, Clyde Drexler e, sim, Michael Jordan, criaram um modelo de papel bem-sucedido como "O Cara" em um time competitivo. O fato desse tipo de jogada se encaixar direitinho no paradigma de marketing da NBA, focada em estrelismo — além de fazer jus à assistência de parceiros corporativos como Nike, Gatorade e McDonald's —, era mero bônus. Nesse quadro narrativo, a vitória era supostamente determinada tanto pela garra quanto pela habilidade. Os resultados dependiam da ousadia e da tenacidade da estrela ao conseguir "pontos difíceis" em "momentos decisivos". Não admira, então, que na temporada de 2000-01, 30% dos arremessos dos jogadores de perímetro que tomavam um quarto do tempo de posse do time — exceto por Antoine Walker, e palmas para sua rebeldia — saíam do meio do garrafão. Em comparação, apenas cinco dos 25 jogadores de perímetro costumam fazer isso na temporada de 2015-16. As regras de Daryl Morey para a seleção de arremessos eficazes — arremessar de fora do garrafão, ou levar a bola ao cesto de bandeja, dada a matemática — parecem ter sido abraçadas pela liga. Aqueles arremessos de "momentos decisivos" agora são tachados de "jogadas heroicas" e egoístas, e não são mais considerados provas de caráter e vontade de vencer. Além disse, a prática Bryantesca de um único jogador controlar o ataque do time e monopolizar a bola por longos períodos em busca de isolamento para o arremesso é quase um anátema. Há poucos insultos tão fortes hoje quanto chamar um jogador de "detentor da bola". Em muitos aspectos, essas mudanças são claramente boas: basta assistir ao compartilhamento da bola e troca de passes rápidos do Golden State Warriors durante um quarto que você não vai precisar de um tutorial analítico para entender por que os arremessos com salto do meio do garrafão hoje são considerados recursos de última instância.

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Um arremesso terrível, até a bola entrar no cesto. Foto: Gary A. Vasquez/USA TODAY Sports

Ou seja: a versão do jogo que fez de Bryant uma estrela está morrendo por iniciativa própria. A eficiência favorece arremessos de três pontos e arremessos diretos; a legalização da defesa na zona desencoraja o isolamento estilo anos 90 em prol da movimentação rápida da bola; e uma repressão mais forte das faltas deixou os armadores mais valiosos que um arremessador afobado. Quando os jogadores da defesa já não podem mais manter o atacante afastado da cesta com jogo de corpo, a habilidade de dominar o garrafão perde valor, não importa o quão raro ou impressionante isso pareça. E aí é que está o preço do foco numa eficiência responsável, fungível e quase metronômica no perímetro. Talvez Bryant nem sempre tenha jogado basquete do jeito certo, pelo menos na definição de hoje, mas era empolgante ou aterrador vê-lo jogar, dependendo do time para o qual você torcia. Isso também é importante! Afinal, a liga é, acima de tudo, um show business. Os times estão profundamente interessados em vencer jogos, mas também em vender assentos e espaços publicitários atrativos. Se o virtuosismo heróico de Bryant desaparecer, capaz que junto vá parte da variedade e expressividade individual que faz da NBA um jogo dramático e irresistível. É isso mesmo que queremos? Quando Bryant fez sua reverência de despedida com a glória de 60 pontos nas costas — roubando o palco dos Warriors, que, na mesma noite, venceram seu 73o jogo da temporada recorde —, não nos divertimos?

O último jogo de Kobe: muito, muito, muito divertido. Foto: Robert Hanashiro/USA TODAY Sports

Por favor, não pense que sou fã incondicional de Kobe. Cresci como torcedor assíduo do Boston Celtics e apoio o tal do "movimento analítico". O diagrama de Venn desse paradoxo me posiciona como hater obcecado pelo Kobe, onde exclamar "6 pontos em 24 arremessos" — desempenho de arremessos de Kobe no jogo 7 das finais de 2010 — é como citar capítulos e versículos da escritura. Ainda assim, reconheço que a NBA sai perdendo sem Bryant. Mesmo listando os aspectos problemáticos de sua personalidade e trajetória, a liga sentirá falta da ideia de Bryant. Uma linha de montagem de jogadores habilidosos, capazes de arremessar de três e fazer bandeja, pode ser ótima para uma tática ofensiva bem eficiente e fazer malabarismo com limites salariais, mas também é paralisante e diria que entendiante porque o basquete é, em parte, um exercício de imaginação. Análises nos ensinam a ter cautela com narrativas piegas e ocorrências improváveis; a paixão nos encoraja a curtir essas coisas sem pestanejar. Os números mostram — mostram meeeeesmo — que a reputação de Bryant como assassino devastador é, em grande parte, um mito. Mas será que isso diminuiria a sensação de pavor dos fãs e jogadores adversários quando ele se erguia sobre um uma defesa tripla em um momento crucial? Ou a alegria inebriante do último quarto de Bryant, quando, sozinho, ele marcou mais pontos que todo o Utah Jazz? A NBA precisa ir além de jogadores produtivos. Precisa de esforços e suspense. E precisa de estrelas que joguem conforme a dança matemática, claro, mas também precisa de estrelas que apresentem um espetáculo improvável — ou que fracassem espetacularmente enquanto tentam. Saber que Bryant estava tentando um arremesso terrível, mas que poderia acertar mesmo assim, e ansiar pelo resultado: essa antecipação, o momento logo antes da montanha-russa chegar ao topo, essa é a emoção que nos faz retornar ao jogo sempre.

Tradução: Stephanie Fernandes