Surfando no esgoto na África do Sul
Foto: Ryan Miller/Red Bull Content Pool

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Surfando no esgoto na África do Sul

O mar da Cidade do Cabo, um dos principais pontos de surfe do mundo, não está para peixe. Menos ainda para humanos.

Esgoto sem tratamento, carcaças flutuantes – a qualidade da água no Rio de Janeiro tem sido alvo de muitas críticas, testes e atenção midiática com a proximidade das Olimpíadas. Mas a Cidade Maravilhosa não é a única em que a poluição ameaça a saúde e o ganha-pão dos atletas aquáticos. Do outro lado do Atlântico, um cenário similar pode ser visto na costa da África do Sul. Situada abaixo da magnífica Table Mountain no extremo oeste da África do Sul, a Cidade do Cabo abriga algumas das praias e pontos de surfe mais populares do país. Eles trazem milhares de turistas à cidade todos os anos. "Eu definitivamente diria que as praias são um dos principais fatores que fazem da Cidade do Cabo o que ela é", diz Jordy Smith, um surfista profissional que vive no bairro Camps Bay na cidade. "Você tem belas montanhas e casas maravilhosas, mas o que atrai as pessoas é a areia branca das praias e a água bonita." Essa imagem perfeita foi ameaçada em junho do ano passado, quando um piloto local e fotógrafo conservacionista tirou uma foto aérea que mostrava uma grande mancha cinza de esgoto na Baía Hout, na Cidade do Cabo. Ele publicou a imagem no Facebook com a legenda "Mais um dia de merda na Cidade do Cabo!" O público e a mídia locais reagiram com surpresa e choque, mas não devia ser assim: a Cidade do Cabo despeja esgoto no oceano legalmente há quase 30 anos. "Houve situações em que deixei de surfar por causa da poluição", disse Smith. "É uma grande pena, porque a água é meu escritório, meu trabalho, minha vida." A Cidade do Cabo despeja o esgoto usando um sistema de descarga de um estágio, que conta com as fortes correntes locais para diluir e espalhar o efluente, ou esgoto, que chega ao oceano por meio de canos subaquáticos. Na região da Cidade do Cabo, cerca de 5% do esgoto passa por um filtro simples antes de ser mandado ao oceano – os outros 95% são tratados e reaproveitados para irrigação e outros usos. Há cinco locais de descarga de esgoto ao longo da costa da Cidade do Cabo, bombeando mais de 10 milhões de galões [45 milhões de litros] de esgoto por dia – em alguns casos, a apenas alguns quilômetros de distância das praias e pontos de surfe. Camps Bay, construído em 1977, é o mais antigo. A prefeitura da Cidade do Cabo assegurou ao público que Camps Bay e outras praias locais são seguras para surfar e nadar. A cidade realiza testes diários das bactérias E. coli e Enterococcus spp. nas praias mais próximas aos locais de descarga e semanais nas praias mais afastadas, incluindo Llandudno, uma praia de surfe deserta há alguns quilômetros de Camps Bay. "A combinação de diluição inicial, difusão oceânica e mortalidade bacteriana reduzem a quantidade de bactérias a níveis muito baixos e seguros", diz Ernest Sonnenberg, conselheiro municipal da Cidade do Cabo e membro do comitê de serviços da prefeitura. Mas essa ciência pode estar ultrapassada, como alerta Jo Barnes, professora da Universidade Stellenbosch cujos objetos de pesquisa incluem a poluição aquática e doenças relacionadas à água. "Havia uma fé quase inabalável na capacidade de diluição ou dispersão como um processo para purificar efluentes ou pelo menos fazê-los 'desaparecer'", escreveu ela, numacarta à prefeitura da Cidade do Cabo durante uma audiência pública sobre os locais de descarga de esgoto em julho. "O excesso de confiança na diluição ignora o fato de que a descarga contínua terá um efeito cumulativo numa massa de água semi-restrita como a Baía da Mesa." Além disso, segundo ela, tanto a E. coli quanto a Enterococcus spp. morrem mais facilmente do que vírus e parasitas na água do mar, o que significa que elas podem não sobreviver o suficiente para aparecer em testes. Ela também ressalta que mesmo uma pequena quantidade de alguns tipos de bactéria é suficiente para infectar uma pessoa.

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Uma pequena quantidade de disenteria, por exemplo, pode fazer alguém adoecer, principalmente se o sistema imunológico da pessoa estiver enfraquecido. De acordo com a UNAIDS, quase 13% dos sul-africanos vivem com HIV/AIDS, o que os coloca sob um risco ainda maior de infecção por água contaminada. Até pessoas com um sistema imunológico saudável podem estar em risco. Um estudo de 2005 da Organização Mundial da Saúde reconhece que cientistas sabem relativamente pouco sobre as potenciais consequências da interação recreativa com água contaminada, embora pesquisadores estimem que o custo humano de infecções causadas por organismos patogênicos em águas costeiras é de cerca de três milhões de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade [DALYs, da sigla em inglês] por ano. Basicamente, água poluída pode encurtar a sua vida. Edda Weimann, uma pediatra e especialista em saúde pública da Universidade da Cidade do Cabo, acredita que o atual sistema de descarga de esgoto local levou a um alto nível de E. coli na água e um aumento no risco de hepatite, febre tifoide e diarreia. A causa dessas doenças, porém, pode ser difícil de determinar já que os sintomas demoram dias para aparecer. Seu palpite de que a água contaminada está causando o aumento no número de casos dessas doenças é, de certa forma, uma tentativa de ligar os pontos.

Ela também diz que deixar de melhorar a qualidade da água na costa sul-africana é uma atitude míope. Os oceanos contaminados poderiam não somente prejudicar a lucrativa indústria do turismo da Cidade do Cabo, como também provocar um número elevado de casos de doenças relacionadas à água, causando um grande aumento nos gastos relacionados à saúde.

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Baía da Mesa e Cidade do Cabo. Foto: Ian Barbour (via Flickr)

Não é nenhuma surpresa que o esgoto sem tratamento também cause efeito negativo na vida marinha. Megan Laird, que trabalha numa empresa de consultoria ambiental na Cidade do Cabo, diz que grandes volumes de efluentes orgânicos podem diminuir os níveis de oxigênio na água. Menos oxigênio pode levar a "marés negras", que, em casos extremos, podem provocar uma enorme quantidade de mortes de organismos marinhos. "Uma quantidade suficiente de oxigênio dissolvido na água do mar é fundamental para a sobrevivência da maioria dos organismos marinhos", disse ela. Embora certamente ninguém queira remar no meio do esgoto sem tratamento ou numa maré negra até chegar à linha onde se formam as ondas, os produtos químicos de uso doméstico que entram no oceano pelo esgoto podem ser um problema igualmente grande. De acordo com a Zigzag Magazine, em julho do ano passado, Leslie Petrik, uma professora de química da Universidade Western Cape, coletou dez ouriços-do-mar, quatro ofiuroides, uma estrela-do-mar comum e dois panos de limpeza na área ao redor do ponto de descarga de esgoto Green Point, localizado vários quilômetros ao norte de Camps Bay. Entre as substâncias tóxicas que ela encontrou nas amostras estava o bisfenol (BPA) e o acetaminofeno, assim como produtos químicos presentes em pesticidas, removedores de manchas e revestimento de utensílios de cozinha. Petrik também descobriu que a concentração de produtos químicos e outros compostos era até 70 vezes maior nos animais marinhos que nos panos. A população selvagem de peixes marinhos na África do Sul tem caído há vários anos, e Petrik aponta para esses resultados como uma evidência de que a pesca predatória pode não ser a única causa dessa queda. Tanto o bisfenol quanto o acetaminofeno, por exemplo, são disjuntores endócrinos poderosos, o que significa que, em doses altas, podem levar à feminilização dos peixes, reduzindo a quantidade de peixes machos para fertilizar as fêmeas.

O despejo de esgoto no oceano é algo que acontece em todo o mundo. Ilhas do Pacífico estão há muito tempo às voltas com eflorescências de algas, mortes de corais, contaminação de água potável e surtos de doenças provocados pelos sistemas de descarga de esgoto sem tratamento. Mas na maioria dos países desenvolvidos que usam esses sistemas de descarga, como nos Estados Unidos, a água é tratada antes de entrar no oceano. De acordo com Les Kaufman, um professor de biologia marinha da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, a maior parte das instalações de tratamento de esgoto na costa norte-americana armazena o esgoto em tanques antes de despejá-lo no oceano ou em outras massas de água. Isso permite que o lodo se deposite no fundo e os óleos subam até a superfície. Os dois podem ser removidos do esgoto facilmente, manualmente, e ele então é tratado com bactérias que desintegram materiais orgânicos no esgoto restante. Isso é conhecido como nível secundário de tratamento de esgoto. Quando o esgoto é tratado até esse nível, segundo especialistas, ele não deve oferecer risco a humanos, embora partículas sólidas de produtos químicos prejudiciais à vida marinha ainda possam estar presentes. A Cidade do Cabo usa um nível de tratamento de esgoto: uma grade de barras de metal distribuídas igualmente, desenhada para segurar coisas grandes. O conselheiro municipal Sonnenberg diz que o Departamento Nacional de Assuntos Ambientais da África do Sul vai aconselhar a cidade sobre a necessidade de alterar suas políticas de tratamento de esgoto com base em pesquisas atuais. E ainda que Sonnenberg diga que a cidade reconhece abertamente que qualquer poluição é ruim, mudar as práticas usuais, especialmente num país em desenvolvimento, pode ser um desafio. "Para cidades costeiras de países em desenvolvimento, assim como muitos países desenvolvidos, o consenso científico é que essa estratégia de descarga de esgoto por meio de um despejo efetivo com tratamento preliminar é uma solução econômica, eficiente e confiável que é fácil de operar e tem impactos mínimos ao meio ambiente e à saúde", diz ele. Pessoas que usam e curtem a água com frequência, como o surfista Jordy Smith, torcem para que isso seja verdade. "Como surfista, eu realmente respeito a vida marinha e a natureza, e como seres humanos, precisamos tratá-las com respeito", diz Smith. "O oceano é tão bonito. Se você tivesse acabado de se casar, você não iria querer sair e jogar lixo em sua linda esposa."

Tradução: Danilo Venticinque

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