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"Não, Cara"

Sam McPheeters é um escritor freelancer que vive em Pomona, Califórnia. Ele é o ex-vocalista das bandas Born Against e Wrangler Brutes, membro fundador do Men's Recovery Project e dono da extinta Vermiform Records.

Sam McPheeters é um escritor freelancer que vive em Pomona, Califórnia. Ele é o ex-vocalista das bandas Born Against e Wrangler Brutes, membro fundador do Men’s Recovery Project e dono da extinta Vermiform Records. Além de escrever para a Vice, seus textos também já apareceram no Chicago Reader, OC Weekly, Stranger e no Village Voice. Sam nos disse que este conto foi inspirado por “a) a perseguição de Dog the Bounty Hunter a Andrew Luster, herdeiro da marca de cosméticos Max Factor e b) num trabalho de um dia em que ajudei a administrar o reembolso de impostos sobretaxados por uma concessionária de veículos”. Em onze anos como um caçador de recompensas, Keith nunca aprendeu a arrombar fechaduras. Ele arrombou algumas portas, mas somente aquelas ocas, de armários e banheiros onde seus fugitivos se escondiam como animaizinhos de estimação. Agora, chegando ao fim de uma estrada de terra isolada do Caribe, ladeada por folhagem com a largura exata do seu sedan, Keith parou numa rotatória sombria, e identificou, em meio a uma clareira isolada, um casarão de estilo colonial como o típico lugar que ficava destrancado. Um Mercedes escuro estava parado debaixo dos beirais suntuosos do pátio superior. Ele bloqueou a única saída de veículos.  Suas narinas úmidas chiavam, anunciando que uma sinusite surgiria junto com a chuva. Enquanto se rastejava até a porta principal, lhe veio à cabeça a discussão que havia tido com a sua esposa, Jenni, horas atrás, enquanto atravessava o terminal do aeroporto. “Carreira sem futuro” era a estranha acusação que ela lhe fazia no momento em que ele desligava o telefone em sua cara. Seu telefone via satélite se parecia com um telefone sem fio antigo, com uma espessa antena empinada a mais de 30 cm de altura. Ela tinha ligado para esse telefone ao invés do seu celular comum, mesmo ele ainda estando em Miami, humi-lhando-o em público a $1,59 o minuto.  Sua carreira, de fato, o havia levado aos piores lugares que a América poderia oferecer—escadarias de cortiço cobertas de lixo e fraldas usadas, becos imundos com cacos de vidro e seringas. Mas, ao abrir a porta daquele casarão e entrar silenciosamente na sala de estar, percebeu que sua carreira tinha acabado de avançar. Um tapete turco vermelho cobria o assoalho de madeira nobre. Ao lado da porta, uma mesa estreita, em forma de semicírculo, servia de apoio para um abajur de cobre aceso. Sentiu que o estavam esperando. Inclinou-se para observar a edição atual da revista Diver World, a etiqueta de assinante colada na capa destruía a foto de uma praia não identificada de um mar azul-safira. As letras pontilhadas impressas na etiqueta revelavam o nome falso de sua presa: STEVEN STEEL. Subindo os degraus acarpetados em três longos e silenciosos passos, ele parou por um instante em frente a uma porta fechada e ouviu conversas, ou burburinhos, de dentro do quarto. Ele fechou os olhos para saborear a minúscula pausa que antecede o caos. Ele invadiu o quarto gritando.  “Ei! Ei! Ei! Mãos na cabeça!”  Percebeu se tratar de outra sala de estar. O homem de perfil paralisado, de meia-idade e feições indianas—segurando uma taça de bebida, e não uma arma—era de fato o seu homem.  “Mãos na cabeça! Agora! Agora! Agora!”  O indiano sorriu enquanto levava as mãos à cabeça, ainda segurando sua taça, “Eh merda”.  Keith segurou o outro braço do suspeito e o torceu por trás de suas costas. Havia uma passividade familiar na reação lenta do sujeito. Em algumas pessoas, o impulso de lutar é subjugado pelo choque. Em outras, esse impulso ficava adormecido por horas ou minutos.  “Bipin Nuwara?”  “Steven Steel.”  “Bipin Nuwara de Long Beach, Califórnia”, ele continuou, radiante, “considere-se preso”.  Ele tirou a bebida da mão do homem e baixou seu outro braço, empurrando o prisioneiro contra a parede enquanto pegava as algemas com dois dedos e a trancafiava em torno dos seus pulsos roliços submissos. Bipin virou sua cabeça com a atitude desleixada de um bêbado.  “Tome cuidado com a minha pulseira de alerta médico, por favor.” Um bafo de bebida revirou o estômago de Keith.  “Vou revistar seus bolsos. Tem algo em seus bolsos?”  “Agasalho esportivo”, murmurou Bipin Nuwara.  “Agulhas? Seringas?”  “É um agasalho esportivo. Não. Não tem nada disso.”  Os bolsos estavam limpos. Keith virou seu novo prisioneiro e encarou-o de frente, assim como um pai encararia seu futuro genro—uma mão em cada ombro.  “O que você vai precisar? Escova de dentes?”  “Não. Isso não será necessário.”  Atrás do homem, através de uma janela se via uma paisagem distante, Keith teve, por um instante, a fantástica visão de uma praia. Talvez o mesmo litoral deslumbrante, de areias finas e brancas, estampado na capa da revista que havia visto no andar de baixo. Metade do céu era de um violeta carregado.  Ele conduziu seu prisioneiro escada abaixo e através da rotatória, onde o vento soprava forte, e inclinou a cabeça de Nuwara acomodando-o no banco traseiro do sedan policial. Keith, antes da perseguição, havia organizado com uma dupla de policiais de Antígua a locação desse carro.  A presença de Keith pareceu divertir os policiais, como se ele fosse o ponto alto de uma piada particular deles. O carro custou $625 por dia, mais barato do que normalmente pagava por um carro policial no México. Ao sentar-se ao volante, Keith mais uma vez se sentiu grato pela grade que o separaria do prisioneiro. Ele contornou com cuidado a rotatória de pedregulhos, no mesmo instante em que as primeiras gotas enormes de chuva caíram, através das folhas gigantes, sobre o parabrisa do carro.  Do banco de trás, Bipin disse: “Você parece com o Don Imus. Por acaso alguém já te disse… que… você parece com o Don Imus?”  A chuva começou a cair mais forte agora, despencando sobre a copa das árvores de uma só vez.  “Benvindo a Antígua, aliás. Fiz questão de escolher um país que começasse com a letra ‘a’. Assim você não iria precisar me procurar em tantos países antes de me achar.”  O carro entrou numa estrada de terra que parecia ter estreitado de repente. A chuva se agravava.  “Vejamos… tem o Afeganistão, Algéria, Angola…”  “Nuwara, tem duas coisas que eu não suporto. Mau hálito e pessoas que falam demais. Sabe como resolver esses dois problemas?”  “Abro a porta e corro pra diabo?”  A estrada era estreita demais para que Keith parasse o carro para esmurrar seu prisioneiro. Ele tensionou suas mandíbulas, antevendo a longa jornada que teria pela frente.  “Mas não valeria a pena”, continuou Bipin desanimado. “Você me pegaria de qualquer jeito. Eu sabia que você iria acabar me pegando. Desde que li na internet você anunciando que me pegaria pensei…”, ele suspirou. “Esse cara vai me pegar.”  Keith olhou no retrovisor, sem dizer nada.  Bipin perguntou, “Quais são seus planos para nós?".  “Dirigir de volta a St. John’s. Pegar um táxi para o aeroporto. Colocar nós dois num voo para San Juan. Pegar o voo noturno para Los Angeles. Entregar você para as autoridades de Los Angeles. Pegar meus 10% pela sua recompensa. E ter uma vida tranquila enquanto você cumpre de 15 a 25 anos de prisão.”  “Putz! Isso é tempo demais! Não cheguei a estuprar nem a matar ninguém.”  “Você roubou muito dinheiro.”  “Bom, tecnicamente… tecnicamente… outras pessoas roubaram esse dinheiro. Na verdade, OK… sim, eu roubei um dinheiro da importadora de veículos Lafferty Luxury, de Cerritos. Mas eles roubaram dos seus clientes. Eles é que são os verdadeiros ladrões. Quando você vir a figueira ali na frente já estaremos quase na metade do caminho.”  Uma dor de cabeça tinha realmente começado a latejar atrás dos olhos de Keith. A adrenalina tinha desencadeado a dor. Bêbados faziam sua sinusite piorar.  “Como foi em Baja Califórnia?”, perguntou Bipin.  Keith revirou os olhos. Semanas atrás, ele havia passado quatro dias miseráveis em Baja Califórnia, à procura de Nuwara, sofrendo de mais uma crise de sinusite, impotente em meio a hotéis, carros e policiais sacanas querendo arrancar seu dinheiro. Todo esse contratempo por causa de uma placa-mãe encontrada numa moita próxima ao escritório de Nuwara. Keith havia pago $600 a um especialista em computação em Van Nuys para recuperar os dados da memória cache desses pedaços de eletrônicos, e acabou encontrando links de páginas sobre Baja Califórnia. Mas foi somente em sua última noite de aventuras no México, confinado num banheiro com uma disenteria amébica, que Keith se deu conta de que estava sendo enganado.  “Mas sério, cara”, Bipin disse. “Sério. Não é justo dizer que eu roubei aquela grana. Não fui eu. Não fui eu que fiquei repetidamente cobrando impostos a mais dos meus clientes, fui? Eu não fiz isso. Fui só o cara que ficou atolado de trabalho, administrando os reembolsos que a justiça os fez devolver. Sou o mocinho.” A estrada desviou bruscamente para a esquerda no momento em que folhas gigantes de árvores tropicais despencavam sobre o parabrisa. A chuva era torrencial, um pesadelo infantil de lava-carros.

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