A sede de novos sons e novos artistas é, em boa parte, uma doença crónica que requer tempo e dedicação suficientes por parte do paciente. A condição da enfermidade conduz frequentemente a dois tipos de estados possíveis: 1) o da descrença em 90 por cento da produção musical e na falta de ideias realmente refrescantes (obviamente um estado de delírio passageiro, próprio da doença); 2) o encontro do Santo Graal quando se depara com algo que considera, por fim, recompensador. Para os mais cínicos, um aviso: não, não se trata de um desejo elitista de escutar antes que o resto do mundo — até porque nos dias de hoje, a velocidade da informação é tão rápida quanto a do nosso raciocínio — mas antes de, no meio de tanta informação, dar de caras com uma manifestação que nos apela no imediato e nos leva a entrar num quase modo de obssessão. E mais importante que isso: a vontade de partilhar com o próximo — só assim é que faz sentido.Posto isto, entende-se que o que se segue só pode ser fruto de uma boa descoberta que merece ser divulgada como palavra sagrada.40% Foda/Maneirissimopode já ter ganho o título de melhor nome nos últimos tempos, mas ainda há muito por ganhar no que este colectivo/editora traz consigo. Em pouco menos de um ano, a blogosfera mais atenta e plataformas como o Soudcloud ou Bandcamp viabilizaram a exibição do trabalho de gente como Epicentro do Bloquinho, DJ Guerrinha, Ilustradora Carme 'n' Alves's ou Seixlack. Sediada no Rio de Janeiro, a sua actividade é comandada por quatro jovens que sentiram necessidade de devolver um espírito lo-fi e caseiro ao universo da house e do techno, entre um eles, o português Nuno Valle. No seu processo de produção musical, a ideia de improvisação é uma forma de estar natural. A essa abordagem, junte-se um espírito DIY obviamente delineado por formatos ditos 'marginais' como a cassete ou o cd-r, curiosamente numa altura em que o vinil se assume como rei. Pela estética e filosofia, podemos traçar pontos comuns com outras casas como a 100% Silk, L.I.E.S; ou até as nacionaisPrincipe Discose One Eyed Jacks dos portugueses Photonz — que recentemente convidaram Seixlack para um set no seu programa de rádioO Princípio da Incerteza.Torna-se portanto claro que o compromisso com a música é genuíno, sem formalidades de maior, e talvez esse atributo seja influente no processo criativo. Prova disso poderão ser os títulos das faixas, frequentemente ou sempre, recorrendo a um tom nonsense, algo surreal, algo humorístico. Entre o brilhantismo de topo, ficam para a posterioridade: "Pra Que Ter O Alvará Se Você Cega Eles Com Luz Estrobo", "O Nuno Diz Que Está Heterogéneo" ou ainda "Estamos Cascateando Fraclassicos Com O Valor Comunal". O facto da maioria dos seus sets deixarem propositadamente de fora overdubs ou qualquer outro tipo de edição final, acrescenta esse tom de emergência, onde oagoranunca deve ser ultrapassado pelodepois. Na prática, celebrar e saber respeitar o momento; ou, noutra perspectiva mais abrangente, um valente pontapé no aborrecimento e na estilização que alguma (maior?) parte da indústria musical infelizmente nos habituou.
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Longe da efervescência mediática do funk de favela, e mais ainda de casos pop efémera como Cansei de Ser Sexy ou Tetine, a 40% Foda/Maneirissimo simboliza o maravilhoso lado b no que diz respeito à nova música brasileira. Em certa medida, um fenómeno local em plena marcha para a escala global, mas mantendo-se fiel ao seu pensamento e público. Diz-nos o bom senso que entrar em profecias é má ideia, contudo é muito difícil não imaginar horizontes altos para esta boa gente carioca. Se pensarmos que não atingiram sequer o primeiro ano de vida, o feito torna-se ainda mais grandioso. De resto, o reconhecimento vai-se multiplicando de semana a semana, inclusive em sites influentes como a Spin ou NPR. Todavia, e pela quantidade e variedade de faixas que a crew vai deixando nesse maravilhoso viveiro online que é o Soundcloud, esta acaba por ser a melhor das introduções ao seu ainda curto legado.
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Como tal, a existir uma expressão chave no cosmos 40% Foda/Maneirissimo, terá de ser liberdade criativa. Tantas vezes aplicada, replicada e levada ao perfeito desgaste, ganha aqui um significado justo. Já se percebeu como isso se materializa e se expõe, mas é no essencial — isto é, na música em si — que tudo nasce e contamina em seu redor. Nesse ecosistema analógico-digital onde a margem de erro pode resultar em mais-valia, as melodias enigmáticas cobrem os ritmos mecânicos sem, no entanto, nunca se assumir como electrónica maquinal e fria, desnutrida de sentimento ou toque orgânico. Na verdade, a abordagem de visão caleidoscópica e de coração apurado caracteriza, de modo transversal dir-se-ia, o espírito de cada interveniente da editora. Pairam detritos e rastos de referências à melhor escola techno de Detroit, mas também à estratosferakösmichealemã. Em todo o caso, o encanto vital recai mesmo na sua saudável indefinição identitária. Algo bem patente nos dias de hoje, em que uma parcela considerável da música electrónica (e não só) recorre a um corpo híbrido — vejam-se os exemplos de Oneohtrix Point Never, James Ferraro ou Shackleton, para nomear alguns. Vagamente tropical e vaporoso, respira um flow de leveza contínua, sempre inspirado e inspirador, rumo às estrelas. Não há como errar, é muito foda mesmo.