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Salvando o Sudão do Sul

Consertando o Sudão do Sul

O ex-criança-soldado Machot deixou sua lojinha em Seattle para mergulhar de volta no Sudão do Sul.

Foto por Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Em 2011, Machot – uma ex-criança-soldado, agora gerente de uma empresa de varejo norte-americana em Seattle – foi convidado para ir a Juba, capital do Sudão do Sul, onde passou seis meses trabalhando no texto da Constituição que solidificaria a independência louca da região.

Como um membro da etnia nuer, de Bentiu, ele viu a oportunidade de pôr seu conhecimento e sua experiência na formação dessa Constituição. Machot ajudaria a salvar o Sudão do Sul, pensou, ao ligar a criação de um novo país à diáspora nuer e dinka ainda em conflito.

Embora diga da boca pra fora não ter afiliações tribais, sua afiliação é tão notável quanto as cicatrizes em seu rosto. Durante a elaboração do texto constitucional, havia sempre comentários do tipo: “Bem, nosso porta-voz é dinka.” Aos quais Kiir ou um de seus apoiadores responderia apontando que seu general de mais alto escalão era nuer. Mas a realidade era que a guerra havia fraturado o país de Machot por muito tempo – não só na questão tribal, mas de forma mais profunda: entre os clãs. Cada “lado” confiava apenas em seus irmãos, em sua família imediata.

Enquanto estávamos em Nairóbi, ele nos advertira para não pedirmos uma entrevista por meio do porta-voz oficial de Machar, Taban Deng Gai, “porque ele vai nos bloquear”.  A animosidade com Deng Gai era profunda, não obstante o fato de nosso novo amigo, Amos, ter trabalhado diretamente com ele. Também se tornou claro que Machar não fazia ideia de quem Machot era, supondo que ele fosse um empresário e “ficasse à vontade para voltar e investir nesse país”.

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Em vez de culpar as facções beligerantes de Machar e de Garang, Machot responsabiliza a ONU por muitos dos problemas no sul, reclamando que o suprimento de farinha e grãos doados não serviu para seu povo, cuja dieta consiste sobretudo de carne e peixe. Ele também é profundamente sensível à disparidade entre aqueles que vivem fora dos campos da ONU e dentro deles, insistindo que a comunidade internacional fique alerta à calamidade da situação para que se possa fazer algo a respeito. Nada disso faz muito sentido – e daí? Aqui é o Sudão do Sul.

“Eu me sinto no meio”, explica a ex-criança-soldado. “Vejo meu povo morrendo com nada para comer. Não quero voltar, porque isso ficará na minha mente todos os dias. Não posso acreditar que isso esteja acontecendo. Eu estava animado ao vir para cá, mas as pessoas aqui parecem que estão mortas… Isso é causado pelo Salva Kiir”, diz.

A complexidade e a grandeza dos problemas em questão o frustram. Quando lhe pedimos para procurar formas de resolver o que aconteceu, ele balança a cabeça.

“Isso até pode ser consertado, mas não em breve”, constata. “Levará muito tempo para as pessoas confiarem umas nas outras. Eles podem ter paz, mas o problema não está resolvido. De geração em geração isso vai ressurgir. Eles darão a cada geração os nomes das pessoas que foram assassinadas.”

A observação acertou na mosca. Quantos órfãos do sul rastejaram indignadamente de uma árvore para a outra para morrer de fome ou sede? Ninguém sabe. Quantos Garotos Perdidos nunca foram encontrados? Ninguém sabe. Quantos morreram no Sudão do Sul desde meados de 1950 por causa de facções rebeldes brutais e dos interesses de governos estrangeiros em busca de petróleo? Ninguém sabe. Quantos morreram entre 1983 e 2005 durante a Segunda Guerra Civil Sudanesa? Alguns estimam 2 milhões. Mas isso é só uma conjectura. A verdade é que ninguém tem certeza, e apenas poucos fora da região se importam em saber: jornalistas, agências do governo e ONGs. Todos quantificam atrocidades, fome, inanição e a fúria da guerra apoiando-se numa ciência inexata.

No caos da guerra, homens e mulheres tribais, gente alta e negra do Sudão do Sul, simplesmente suportam a dor até não poder mais andar. Então eles desmontam sobre o chão de terra. Tudo o que resta são seus ossos bicados por animais e pedaços de trapos palpitando ao vento.

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Traduzido por: Julia Barreiro