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Os filhos da mãe dominam a sintaxe da lei

"Para serem mais honestos do que eu têm de nascer duas vezes."

Há leis que são gravadas em pedra, e há leis que têm um interface de auto-destruição. A semana passada até tinha começado bem, com um movimento cívico a entregar providências cautelares contra a recandidatura de sete autarcas do PSD. Este movimento, o Revolução Branca, terá muito provavelmente o apoio do aparelho de um qualquer partido da oposição, tendo até em conta a cor homogénea das escamas dos dinossauros escolhidos. Não seria, portanto, o tipo de acção genuína que caísse fora do jogo de cortes imundo que é o quotidiano da administração local. Mas pelo menos serviria para abalar alguns interesses estabelecidos e devolver alguma dignidade ao estado de direito. Porém, essa réstia de valor foi amplamente detonada e abortada na sexta, mesmo ao fim da jornada de trabalho. O Presidente da República, esse farol na montanha, detectou um erro na lei de limitação de mandatos. O olho clínico dessa sólida parede de silêncio detectou um “de” no lugar de um “da”. Não, não é piada. Se fosse uma piada, seria claramente uma piada demasiado fácil e teria o calibre de sátira que se encontra numa peça de revista em que um Zé Povinho dança no meio de dois bustos da república. Mas, pelos vistos, é a esse nível que opera o avatar da soberania portuguesa opera. Há muitos adjectivos que poderiam ser usados para colorir este esboço grosseiro de política. E as pessoas de bem à vossa volta de certeza que já foram usando alguns — pelo menos as que conseguiram manter o poder da fala perante um insulto deste género. A discrepância semântica entre dois artigos possessivos serve assim de móbil para remeter a lei para republicação, efectivamente desactivando as providências cautelares e deixando o caminho aberto para os tais dinossauros se candidatarem de novo e continuarem sentados a incubar os ovos do nepotismo. Foi uma jogada paralisante no seu descaramento. A mensagem que passa é a de que, claramente, não há medo da sociedade civil por parte da administração. Não há medo, e não há vergonha de assumir a natureza perversa do ofício deles. Não há vergonha, e não há remorsos de usar órgãos soberanos para atingir objectivos mesquinhos. É claro que a questiúncula da gralha é só o pretexto para suspender esta lei. Mas mesmo o pretexto não sobrevive a uma inspecção mais demorada. O argumento é o de que “Presidente de Câmara” se refere ao sentido lato de um cargo político, enquanto “Presidente da Câmara” se referiria a uma autarquia em particular. O então PR Jorge Sampaio assinou uma lei com um “da”, o Parlamento votou uma lei com um “da”, mas foi inscrito em Diário da República um “de”. Esta disputa é tão menor como soa, e é tornada minúscula pelo facto de ninguém considerar que o espírito da lei foi deturpado, já que ela foi originalmente pensada para sim, restringir recandidaturas a QUALQUER município para incumbentes. Os 60 dias limite para rever a lei já passaram há cerca de sete anos, daí ser necessário suspender esta lei e passar uma nova. Divina intervenção para Menezes, Seabra e companhia. Os factos, tais como eles são, ainda podem ser menos inquietantes do que as conjecturas: e se esta ambiguidade gramatical na lei já tivesse sido redigida a pensar num cenário onde fosse necessário suspendê-la, a bem do aparelho? As reacções das famílias partidárias dão a entender que sim: aqueles partidos que revezam entre si a administração do país apressaram-se a propor um “apurar de responsabilidades” imediato e uma defesa da atitude da presidência; aquele partido-parasita que depende de um partido maior para ganhar relevância mostrou o apoio reservado que seria de esperar; e toda a restante oposição, que sabe não poder almejar mais do que incómodos processuais no parlamento, sentiu-se mais à vontade para condenar o ridículo desta situação.