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Tecnologia

O Julian Bleecker fala para os humanos do futuro

Alô Terra do ano 3012.

Enquanto continuamos, no presente, a babar-nos para cima dos nossos fantásticos iQualquercoisa e a ficar admirados por uma máquina de expresso conseguir expelir café só de ver a fotografia de um grão, Julian Bleecker e os seus colegas tecnólogos estão ocupados a brincar com o nosso futuro próximo. Bleecker é o fundador do Near Future Laboratory, um espaço onde conceitos e ideias provocantes se materializam em temas de conversa. Ao olhar de relance para algumas das suas criações, pode-se pensar que estão só a gozar connosco. Mas, ao criarem estes protótipos, eles esperam mesmo que as pessoas comecem a pensar sobre os processos e estratégias por detrás dos produtos comerciais que o Pai Natal coloca no pinheirinho todos os anos. Claro que os protótipos podem não encher uma chávena de café com o clique de um botão, mas deixam-te vaguear por uma cidade a seguir instruções que estão num baralho de cartas (Drift Deck), ou então enviar uma mensagem para ti mesmo muito, muito lentamente (Slow Messenger). Como tenho interesse por tudo o que é futurístico e inútil, decidi investigar. VICE: Vocês no Near Future Laboratory parecem ser design provocateurs. Por que é que as pessoas precisam de ser estimuladas?
Julian Bleecker: Ser provocado faz bem à alma. Obriga-te a olhar para o mundo de forma diferente. Somos acima de tudo seres conservadores. É difícil pensar na mudança e muito mais difícil passar por ela — interrompe as nossas rotinas. As provocações são como lentes que viram o nosso mundo ao contrário, mesmo que só por um momento, de modo a fazer-nos pensar como as coisas podiam ser diferentes. Somos todos uns preguiçosos?
Não diria isso. Aqui no laboratório consideramos que as coisas nem sempre foram como são agora. As coisas mudam. Assim, a pergunta é normativa: de que forma é que podemos criar mudanças que tornem o mundo mais habitável? Mesmo que seja só uma parcela pequena do mundo. Já alguma vez encontraram designers zangados com as coisas que vocês fazem?
Não, isso não costuma acontecer. Mas, se calhar, nunca ninguém nos disse isso na cara. Acho que as pessoas podem não entender a nossa motivação e ficar chocadas pelo facto de medirmos o sucesso de forma invulgar — será que o produto vai dar que falar? Será que vai chocar as pessoas e conduzir as coisas para uma direcção diferente e inesperada? Quem dirias que são os guardiões da inovação, se é que existem?
Os contadores de histórias, apesar de não conseguir definir inovação com muita precisão. Se conseguires contar uma história longa com uma narrativa convincente, podes deslumbrar as pessoas e, por vezes, se ficarem mesmo entusiasmadas, levá-las a criar coisas e a auto-avaliarem-se em milhões de dólares. Conta-me uma história.
O cloud computing é uma. Não é particularmente boa, mas espalhou-se o suficiente para que muita gente ficasse interessada e começasse a tornar tudo compatível com esse paradigma, que está cheio de falhas e tem uma probabilidade enorme de se tornar um falhanço de proporções épicas. Mas o pessoal entusiasmou-se porque a história foi contada de forma a que pessoas minimamente inteligentes acreditassem. Então, mas é uma mentira?
Se para ti inovação é a nuvem ou a realidade aumentada, então prefiro inovar com almofadas de peidos. Tens escrito e falado sobre como a ficção pode ser o acelerador daquilo que se irá tornar real. Entre a ficção e os factos, o que ganha na vida real?
Mas qual é a diferença entre factos e ficção? Se um engenheiro ou programador escreve algo sobre uma coisa que ainda vai ser construída ou programada, isso é facto ou ficção? Se um jornalista de ciência do The Guardian escreve um artigo sobre aquilo que um cientista qualquer pretende desenvolver num laboratório de uma grande empresa, isso é ficção científica ou é um facto científico? Hmm.
Não quero ser pedante com isto, mas a influência é pré-determinada arbitrariamente ao dizer-se que existe uma distinção clara entre facto e ficção. É como pedir desculpa por um filme fantástico de ficção científica por não ser real. Isso não acontece. Aceitam-se as coisas como são e deixamos que elas nos moldem, influenciem e eduquem sobre como e aquilo que pensamos. É tão simples quanto isso. Não devemos fazer de conta que sabemos a diferença entre factos e ficção, mas sim adoptar ambos como forma de tentar explicar o mundo em que vivemos e o mundo em que queremos viver no futuro. Como é que as tecnologias digitais afectam a nossa noção de realidade?
A tecnologia é uma coisificação da cultura. É a materialização dos nossos rituais, práticas e aspirações. Não é tanto uma ferramenta ou algo de apenas instrumental como a cultura em si mesma. Criamos tecnologia não só para fazer coisas por nós, mas também como expressão da nossa cultura, mas isso acaba por ser expressado em coisas que precisam de pilhas, que têm um ecrã ou que precisam de especificações técnicas, padrões industriais, regulação e ferramentas de produção. Entendo.
A propósito, tudo isto de que falei são maneiras de esconder as formas como essas coisas fazem parte da nossa cultura. Na verdade, um padrão industrial é o árbitro entre um bando de engenheiros humanos que concordam unanimemente, como se estivessem num parlamento, sobre como uma determinada coisa deve funcionar. Isso é cultural. As tecnologias, desta forma, constroem a realidade da mesma forma que qualquer cultura. Seria o mesmo que perguntar como é que a dança irlandesa, os cereais ou qualquer parlamento constroem a realidade. Li recentemente sobre o teu projecto de um animal poder controlar, ainda que com algumas limitações, um avatar do World of Warcraft. Gostavas de ver, algures no futuro, jogos de vídeo para animais?
Não sei bem. O que o laboratório queria mesmo era perguntar que coisas poderiam interagir connosco na internet. A ideia de um cão poder jogar World of Warcraft foi a nossa forma de colocar esta questão numa altura em que esse jogo era um fenómeno de sucesso. Nessa altura — isto foi para aí há quatro ou cinco anos —perguntámo-nos como é que a internet seria se outros actores, talvez não-humanos, conseguissem estar na rede. Carros, animais, sapatos, planetas, qualquer coisa. O que eles diriam e como seria a sua interacção connosco. Os cães provavelmente diriam "au au”.
Acho que essa questão evoluiu agora que temos a certeza que as coisas podem ser ligadas ao computador e partilhar dados úteis. Para além das coisas vulgares, como frigoríficos ou o trânsito automóvel, são formas inesperadas de “coisas” ou “animais” que poderiam estar entre nós, ligados em rede. O que é um terrier ou um peixe dourado “ligado” à rede? É que de certeza que surgirá um. Um diagrama de Venn desenhado por Bruce Sterling sobre a forma como os produtos são pensados. Existe um elemento absurdo ou irónico em alguns trabalhos vossos como o Slow Messenger , que recebe mensagens de forma muito lenta. O que é que se ganha com este tipo de design?
A inversão é uma forma de design. Virar as coisas ao contrário para levantar questões e começar discussões. Em vez de ser sempre mais rápido, assumir, por um pouco, que nem sempre mais rápido significa melhor. E depois? Chegámos à conclusão que mais lento é o nosso objectivo. Podes fazer algo deste género como uma experiência, mas, claro, é melhor fazer as coisas e encarar os problemas que surgiriam ao tornar a tecnologia mais lenta. Se algumas pessoas preferissem um menor bombardeamento de informação e dados, as coisas mudariam em termos do seu design.   Como?
Tornam-se potencialmente mais baratas. Gastam menos bateria porque os processadores são mais lentos e o interface não precisa de estar ligado tanto tempo, etc. Podes ter um aparelho ligado durante meses porque não te importas de receber a informação de forma mais lenta. Mudas as coisas de forma radical porque ignoras e invertes uma suposição e, nesse processo, aprendes algo e até te convences que o conceito de “rápido” nem sempre é o melhor. Se no futuro próximo não existirem restrições e a imaginação correr livremente, como será o futuro distante?
Está muito longe para se poder imaginar e pode também ser tarde demais para o planeta. Somos um laboratório impaciente. Gosto de materializar uma ideia rapidamente. Mas, antes de mais, quero contar histórias e provocar discussões. É isso que fazemos. Imaginar o futuro é uma forma de o viveres?
Não é só imaginar, mas também materializar um pedaço dessa imaginação em objectos funcionais. Imaginar não chega. É como fazer um render 3D muito fixe. Não conta uma história nem aprofunda suficientemente questões relacionadas com o que o futuro próximo nos reserva como com o Slow Messenger ou outras coisas que já criámos. Temos que sujar as mãos um pouco e descobrir como criar coisas para além das suas especificações. Nesse processo de fazer as coisas — e pode ser uma curta metragem, um qualquer software/hardware, tanto faz — todas essas questões são inevitáveis para nós. Responder a essas questões por repetição e refinamento é a alma do design, ou, pelo menos, daquele que fazemos aqui no Near Future Laboratory.