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Viagens

A típica recordação russa

Não foi uma matrioska. Foi um murro no meio da cara, claro.

Evolução na continuidade. Deixei para trás uma carreira promissora no meio televisivo, de forma a poder realizar um dos maiores sonhos da minha vida: dar uma volta ao mundo, apanhando toda e qualquer boleia e ficando em casa de pessoal estranho. Durante um mês e meio, atravessei a Europa e cheguei ao Círculo Polar Ártico, no Norte da Rússia, no carro/carrinha/camião de mais de 40 pessoas: modelos, seminaristas, mafiosos, agricultores, maçons, militares… As coisas correram bem. Acreditava, firmemente, na bondade dos desconhecidos. O estilo de vida hippie tinha tomado conta de mim. Mas, em um dia e meio, experimentei o melhor e o pior da Rússia. Fiquei preso num posto de gasolina fantasmagórico quando o sol se pôs — sentença de morte certa. Estava a conhecer melhor a minha companheira de cama (um tanque de Super 95), quando uns autoproclamados “pequenos mafiosos” se ofereceram para me dar boleia. Ao se aperceberem de que eu era espanhol, contaram-me que tinham conhecido um marciano e, nesse momento, o salvamento tornou-se num rapto amigável. Passei uma tarde agradável com eles e com o seu colega, um ex-presidiário (condenado por homicídio), recém-saído da prisão. Tudo na boa, mas matem-me de forma rápida, por favor. Como bons mafiosos tradicionais, os gajos eram homens de família que temiam a ira das respectivas esposas. Um deles levou-me até à sua casa, onde conheci a sua família idílica. A esposa empanturrou-me de comida e o filho cedeu-me, gentilmente, a sua cama. Achei que nada podia correr mal e que tinha atingido o nirvana dos backpackers. 24 horas depois, o meu queixo tremia como se não houvesse amanhã. Tinha passado as últimas 15 horas a pedir boleia. Nesse dia, avancei 800 quilómetros. Um camionista deixou-me em Petrozavodsk, uma cidade industrial e estudantil. Eram duas da manhã, mas estava relaxado: conhecia o sítio porque já lá tinha estado antes. Andei entre bêbedos e mendigos, enquanto corria a cidade em busca de abrigo. Não demorou muito até dar de caras com uns néones horrorosos de um hostel. Só que, para lá chegar, tinha de atravessar um beco perigoso, sujo, mal-cheiroso e vazio… O meu interior ganhou vida própria e comecei a caminhar até à luz (de néon), mas encontrei um muro que me separava de minha cama. Escalei-o e tentei levantar a minha mochila enorme, até que alguém me repreendeu à distância. Expliquei que era um turista, que não era um ladrão e aproximei-me da pessoa. Pensei que o desconhecido me iria ajudar a atravessar a cerca, mas essa ideia desapareceu com um murro nas trombas. Senti os meus dentes a descarrilar. A minha boca a partir-se. O peso da carne morta na minha barriga. Não sabia bem o que dizer. Provavelmente, balbuciei qualquer coisa em inglês e inventei muito em russo. Mas fui pacíficoe conciliador, do estilo por-favor-não-saques-da-naifa-que-tens-no-bolso. O gajo sacou do telemóvel para ligar aos amigos e temi, nesse momento, que o pior ainda estivesse para vir. Continuei os meus trabalhos diplomáticos, qual agredido muito agradecido. Acho que até lhe dei todo o dinheiro que tinha. Ele guardou o telefone, mas não estava satisfeito e revistou-me. Encontrou o meu telemóvel, mas nem o quis. Tinha ali à disposição um buffet de todos os meus pertences, mas parecia, estranhamente, saciado. Acabou por me pedir desculpa. O que o devia preocupar era o facto de eu saber onde é que o gajo morava (no beco) e queria resolver tudo sem grande violência, para evitar a minha queixa à polícia. Deixei o beco. Ninguém merece. Dirigi-me, final e oficialmente, para o hostel. Esperava que, depois de ouvirem a minha história, as recepcionistas me oferecessem a suite presidencial. Mantiveram-se imperturbáveis. Aparentemente, uma boca toda fodida é um rito de passagem comum por ali. Depois de muita merda, foi-me dito que o hospital mais próximo abria às oito da manhã. Na minha cabeça, pensei que talvez existisse um serviço de urgência. Mas, com metade do meu queixo a fazer equilibrismo no meu lábio, não quis discutir mais. Segurei o queixo durante quatro horas, a alternar as mãos, e fui directo para o Facebook. Às sete e meia da manhã, saí dali com tudo o que necessitava, escrito na minha melhor caligrafia cirílica. Isto doeu-me mais a mim do que a vocês. O médico usou o Google Translate para comunicar comigo. (não, a sério) Trouxe um monte enorme de metal e começou a usar um arco de arame em volta de cada dente. Atou tudo e amarrou os laços a uma barra de metal espessa. O meu queixo retorcia-se em direcções opostas com dores. Para me animar, comecei a pensar sobre o meu mano Kanye West. Ele também partiu o maxilar e, durante a sua convalescença, gravou esta canção (a minha banda-sonora no hospital). Podia ter acontecido. Passaram-se cinco semanas desde então. Tive de reaprender a fazer as coisas mais básicas. Ingiro alimentos a uma velocidade de caracol. Quando não estou a comer papas. Abracei este novo desafio da minha vida e comprei um triturador e muita comida de bebé. Falar é complicado. No início, dizia umas coisas incompreensíveis, por isso desenhei uns rabiscos que retratavam o acidente com toda a objectividade. Por agora, sou um ventríloquo bastante proficiente e estou a preparar um futuro número com alguém famoso.