Apesar de ser baptizado e ter feito a primeira comunhão, nunca tive nenhuma sensação de ligação espiritual com nenhum destes rituais. Fi-lo porque era o que tinha de ser. Tenho de fazer a ressalva de não saber bem o que a palavra espiritual significa, segundo o dicionário, refere-se ao que não é material, ao espírito (?), à alma (?), quer dizer, é algo que ninguém sabe exactamente o que é , nem sequer se existe. O que me interessa explorar não são os significados, mas sim a razão pela qual, colectivamente, vivemos num mundo em que sujeitamos tudo ao pensamento crítico, menos a religião. Entendo que diferentes épocas, diferentes experiências, possam moldar as crenças de cada um de maneira distinta, mas é preciso tripar um bocado com a malta das fábulas, que cresceu num tempo e contexto com acesso a informação, e não tem desculpa. Mais cedo ou mais tarde esta conversa vai ter que acontecer .Há uma minoria que acredita que as histórias da bíblia são factuais, que são escrituras sagradas. Estes são os casos em que não há abertura para questionar o assunto. Invariavelmente a resposta será "é a minha fé", e acaba a conversa. Parecem uma personagem do "Monkey Island" em que, bloqueado num cenário qualquer do jogo, temos de encontrar o objeto que o "gatekeeper" precisa, caso contrário, a interação tem sempre a mesma resposta. Diz-se que se deve respeitar a fé dos outros, mas isto só se aplica à fé institucionalizada, a que é socialmente aceite. Enquanto que uma fé só minha, com o mesmo grau de absurdo, não o é. Se numa entrevista disser que acredito no Ziggy Stardust não consigo trabalho nem a partir calhau. Uma característica comum às grandes religiões monoteístas é que todas elas afirmam ser detentoras da única verdade e ter o monopólio da salvação das almas. Portanto, segundo estas religiões o inferno está cheio de crentes. Já agora, salvação de quê? Da morte?Os alegóricos são mais cautelosos no que toca à veracidade das escrituras, dizem que os textos sagrados não devem ser interpretados de maneira literal. Se os anteriores são um beco sem saída, estes são um labirinto. Como tudo é uma questão de interpretação, tudo é relativo, justificável, é um jogo de semântica sem interesse nem fim.Depois, os utilitaristas, são crentes não-crentes. São religiosos por pertencer. Porque para além de ser uma tradição, transmite valores éticos e morais positivos que guiam a vida e formam o carácter. Este tipo de "bullshit" é fácil de desmontar. Se é uma ideia utilitária não está já na altura de adaptá-la ao conhecimento científico e técnico de hoje? Perguntei. Não, pelos vistos, a melhor maneira de determinar como se deve viver no mundo e interpretar a realidade é através de literatura da interpretação de antigas escrituras.A boa notícia é que parece que as grandes instituições da religião organizada vão tendo cada vez menos capacidade de recrutar, pelo menos no ocidente. Isto não quer dizer que o negócio da alma está a ir abaixo. Parece que está a adaptar-se, que começa a diversificar e a descentralizar-se como tudo o resto. Começam a surgir cada vez mais seitas. É normal, uma vez que o mercado está mais aberto. O jogo é o mesmo, os clientes é que mudaram. Não aprofundei muito estas seitas "new age", mas a olho nu parece que eliminaram os rituais carnavalescos e substituíram a mitologia por "slogans" de livros de auto-ajuda misturados com conceitos de física-quântica, os quais não consigo perceber muito bem, mas tenho a sensação que eles também não. De qualquer maneira já é um começo, pelo menos não é um monólogo. Mas mais importante que isso é não haver argumentos com pensamento mágico, que já sabemos o que pode acontecer num cenário com a capacidade destrutiva como o que temos no século XXI."Sim, vive, junto a Deus" disse Mikkel à sua mulher Inger, no final de Ordet (1955), quando esta lhe pergunta se o filho sobreviveu ao parto.Compreendo que a religião seja uma bengala útil em muitos casos, que acalme medos, esconda vazios. Compreendo a necessidade de transcender, e acredito que o cerimonial dos rituais possam oferecer experiências que transcendam o ego. Nesse contexto percebo que possa levar essas experiências a serem interpretadas numa linguagem religiosa. Compreendo também, a sensação de ser um viajante no nosso corpo, uma entidade a experimentar o tempo e o espaço através da matéria. Essa sensação de que nós somos os autores dos pensamentos e das intenções é, segundo o que a neurociência sabe hoje sobre o cérebro, uma ilusão.A ciência não pode provar a existência de nada para além da experiência material, mas diz que a noção de que nós somos algo que "cavalga" a parte física, de que somos uma entidade por trás da máquina, é uma ilusão. Se o que pensamos e sentimos são descargas elétricas do cérebro, (que é apenas um orgão a operacionalizar ), e é tudo o mesmo programa a ser corrido por diferentes sistemas operativos em máquinas biológicas, podemos concluir que o livre arbítrio é também uma ilusão? Se está tudo determinado e não há ninguém ao "volante", podemos concluir que não existe tal coisa como a consciência de cada um? E será que se poderá vir a prever todas as acções e decisões de toda a gente em todos os cenários possíveis?É fácil confundir esta hipótese com a ideia de que o destino está traçado à partida, mas não é disto que se trata. Mesmo que seja impossível prever o futuro, uma vez que a componente aleatória da experiência joga um papel importante, não implica que haja uma consciência decisiva. Ou seja, se o que determina tudo é uma mistura de genética com o que se aprende ao longo da vida, junto com a componente aleatória, isso significa que tudo é uma questão de computação. É uma massa de cálculo, de sinapses, que dirige a coisa. Sem querer usar metáforas matrix do "nhelves" das conspirações internet, se conseguíssemos correr a nossa vida em vários universos idênticos, ao mesmo tempo, e as nossas decisões, intenções, pensamentos e acções fossem sempre iguais, queria dizer que não existe livre arbítrio, que ninguém está a decidir nada e que isto é só espaço onde a matéria comunica e faz cálculos. Queria dizer que não há responsáveis, ninguém tem culpa, e a ideia de consciência é apenas desejo. Um truque do ego."Tu não és o que pensas" disse-me quando perguntei o que o tinha trazido à meditação. Interessou-me e quis saber mais. Não há dogmas, não há milagres, não assume interpretações místicas. Simplesmente treina-te a prestar atenção sem ser de dentro da tua cabeça. Tu não és a tua cabeça, é só uma cabeça e não estás lá porque não estás em lado nenhum. Provavelmente não tenha sido a melhor maneira de explicar a meditação, mas ri-me sozinho. Basicamente, a experiência é a mesma mas distanciado do que se está a pensar ou a sentir, passa-se a ter experiência sem um ponto central, sem ego. Ao distanciares-te dos pensamentos, apercebes-te que são apenas isso, pensamentos e emoções que a tua cabeça está a produzir. E quando o ego se dissolve perdemos esse ponto central, e a experiência mostra-se pelo que é: espaço onde acontecem coisas.Achei irónico a meditação ser a prática com uma conotação mais místico-esotérica quando é a que assume menos coisas, e a que está mais perto do conhecimento científico.Vou fazer.Segue o Carlauns no Twitter.
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