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Crônicas de um Médico Aborteiro

Os dois textos a seguir foram escritos por Marco Ferrari, um "escritor, pesquisador, historiador e crítico de Literatura membro da União Brasileira dos Escritores" nascido em Buenos Aires no dia 7 de setembro de 1944.

Foto por Autumn Sonnichsen

Os dois textos a seguir foram escritos por Marco Ferrari, um "escritor, pesquisador, historiador e crítico de Literatura membro da União Brasileira dos Escritores" nascido em Buenos Aires no dia 7 de setembro de 1944. Fazem parte do livro Tesão Recolhido -- Crônicas de Um Médico Aborteiro e Outras Crônicas Verídicas, que, segundo ele, será lançado em breve. "Este livro diz respeito a acontecimentos onde fui protagonista principal, coadjuvante circunstancial ou (em três oportunidades unicamente) relator de fatos de pessoas do meu círculo, feitas crônicas configuradas de forma de mais e melhor entender", explica no prólogo. "Não é, pois, seu título, (como em princípio alguém poderia pensar) uma manobra apelativa ou argúcia para tentar chamar a atenção de leitores incautos ou inadvertidos amantes do gênero que o título em princípio conjectura. Na totalidade das minhas crônicas aparece esta circunstância, (o tesão recolhido) que centralizado é a matéria prima onde se fundamentam seus acontecimentos. Resgato, pois, através do título deste livro -- sem nenhuma temeridade gratuita --, a afirmativa de ser a expressão 'tesão recolhido' a única figura que, com sua intenção de ilustrar um sentimento (a castidade forçada por força das circunstâncias), não difere de nenhum matiz regional da nossa língua vernácula." Ah, ele é o cara da foto, sim.

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O PADRE

O sacerdote, pároco da igreja de …, compungido, envergonhado, cambaleante de atalhos e rodeios no seu circunlóquio interminável, puxava repetidas reminiscências de conduta e disciplina no seminário, de sua repentina vivência secular com espaço sem tempo, de tantas e inevitáveis tentações apagadas na flagelação do cilício, em razão do alto e constante número de propostas amorosas que o procuravam até no confessionário e, por fim, da única fraqueza de "pecado carnal" que o havia conduzido até o meu hospital.

-- É, doutor, é -- diz-me com repentina firmeza em encarar os fatos. Chovia torrencialmente e, no seu ritmo monocórdio e persistente, começou sem mais prelúdios.

-- Tudo começou numa tarde de julho muito semelhante a esta. Estava eu na casa paroquial, só, ensimesmado, evadido no rumor da chuva que persistente batucava o zinco. Em certo momento, percebi, tentando penetrar o rumor da chuva, um som diferente, repetido, que a superpunha. Agucei o ouvido. Sim, sim, era um bater de palmas anunciando seu dono. Fingi não ouvi-lo, mas a insistência de sua chamada e o pensamento de quem seria seu emissor desde a tempestade fez que eu invadisse a chuva correndo ao portão da entrada. Era uma mulher ainda jovem, assegurando algumas tiras de bilhetes de loteria, preservadas do naufrágio encapotadas num saco plástico.

"Oi", me disse a mulher. "Dá para o padre aí me comprar a sorte grande?" Procurei dissuadi-la, mas ela insistia, insistia, insistia. Diante da circunstância, solicitei-lhe que entrássemos.

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Na sacada, a mulher agitou três ou quatro vezes a capa dos bilhetes e, ato seguido, seus longos cabelos para desprender a chuva. A esta altura dos acontecimentos, eu não havia compreendido bem onde se encaixava o tamanho do seu solilóquio. Acontece que, mesmo que eu quisesse fugir dele, às minhas costas estava a parede e, na frente, a sua inquebrantável resistência de frases e gestos. "Então", prosseguiu, começando a falar assim:

-- É isso aí seu padre. O meu marido trabalhou vinte e dois anos de sua vida e quase morremos na miséria. Sofreu um derrame. No hospital não havia médico. Quando chegou, sabe Deus de onde, o examinou de forma curta e lhe passou uma receita de forma longa, assim, deste tamanho. Em casa não tínhamos nem para remédios. Ao fim, morreu. Depois de várias tentativas e outras tantas desistências na forma de sobreviver com dignidade, entrei no ramo da venda de bilhetes de loteria; estava-me saindo bem, se não fosse o plano Collor.

Quando concluiu a pausa dos seus longos suspiros, ofereci-lhe café. Os bilhetes não me interessavam. O persistente monólogo da bilheteira que eu escutava e não ouvia com a chuva que aninhava o teto me cercavam de ausências. Bz, bz, bz, biz, biz. "O dinheiro, bz, bz, juízes corruptos do INSS, aposentados miseráveis, bz, bz, inflação, biz, biz, relação sexual."

Aí doutor -- me disse o padre -- pulei do ensombro me inquirindo se o que havia ouvido por último tão diferente do habitual não era pesadelo. Foi quando ela, notando o me abrupto sobressalto, esclareceu-me assim:

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-- Sim, padre, sim, como o senhor ouviu. Há quase quinze anos que morreu meu marido e nunca mais, até hoje, tive uma relação sexual -- confirmou.

-- Mas, a senhora não sentiu jamais vontade -- lancei numa atitude indagatória e repentina que nunca deveria haver sido pronunciada por um padre.

--Vontade, vontade mesmo, no princípio senti, e muita, já que, na realidade, sempre fui uma verdadeira égua no cio. Com o meu marido. Repare bem, seu padre, égua no cio só com o meu marido -- enfatizou. Depois de sua partida, sempre o respeitei, mesmo com muitos sacrifícios. Assim -- prosseguiu -- afoguei as minhas carnes quentes, macias e trêmulas na palavra de Deus Nosso Senhor, Seu Exemplo de castidade e em severa penitência.

“Carnes quentes, carnes trêmulas… égua no cio… O quê eu estava ouvindo, meu Senhor e Santa Madalena Rainha da Castidade? -- clamei em silêncio”. Nesse momento, a chuva intensificou sua queda, os trovões pipocaram nos céus, e o látego dos raios lançou cúmplices sombras e luzes por sobre os nossos corpos repentinamente tensos. De pronto, algo em mi transmutou -- se em poesia e num sôfrego e doloroso… Desculpe-me, doutor, tesão.

O resto, oh meu Deus, o senhor, imagina. Está lá fora, na sala de espera, grávida de um mês meio.

Minha cabeça parecia um bumbo.

Não se preocupe, padre -- lhe disse no meu último gesto de desespero. Cristo já orientou seus discípulos mais exaltados de amor: "melhor casar-vos que vos queimar". Agora, padre, por favor, aguarde na sala. Peguei o interfone dizendo à enfermeira: Nesta, "taca" anestesia geral.

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- Local, que está de pouco?

Não, não, geral mesmo, local seria um pecado.

JOÃO "PRAÇA REPÚBLICA"
POR MARCO FERRARI

Era minha terceira paciente esse dia. A enfermeira anunciou seu ingresso. Duas mulheres.

A primeira, que ocupava quase toda a largura da porta, era uma mulata (mais puxando para negra) de pouco mais de 120 quilos de peso e aproximadamente 1,90 de altura. Camisa de flanela xadrez com suas mangas arregaçadas ao redor de seus bíceps, calça tipo jeans surrada, calçando coturnos número 44-45. Sua cara era larga e redonda, barba feita, beiços tomando-lhe grande parte do rosto e cabelo carapinho esticado à gomalina.

A segunda, de feições de adolescente, muito bonita, magra como um pássaro, teria uns 20 anos, se tanto.

Sentaram-se ante meu convite, na minha frente, num movimento sincronizado. A mais robusta tomou a palavra.

-- Doutô – começou. Meu nome é João, João “Praça Repúbrica”, e esta aqui é a Dorores*, a minha muié. Não sei se o sinhô sabe, eu sou o mais famoso macho da Praça Repúbrica, -- prosseguiu -- o cafetão mais comedô de muié. Aliás, o que mais cumia muié, porque, de quando conheci a Dorores aqui -- voltou a apontá-la -- faiz treis méis que arrispeito ela; nóis mora junto no apartamento que deu os pais dela e não me deixa faltá nada -- descansou de falar, ofegante, fazendo uma pausa. O probrema não é com ela, é comigo -- suspendendo aqui sua fala olhando fixamente minha face como quem aguarda capturar surpresa.

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Não se equivocara. Recobrando o fôlego e aguardando com ansiedade minha resposta facial, continuou detalhando-me com sua voz grossa:

-- Desde que nasci sempre fui home, memo tendo ute* *. Toda a vida tive nojo dos homePra gozá, só gozo co muié. Pintou que uma noite nóis foi até a casa de uma artista prástica que havia casado cuma aeromoça prima da Dorores. Adipois da cirimunha, tudo os convidado, home, muié e viado, começou a encher a cara e se adrogá. Pouco adipois ninguém era mais de ninguém. Era transa em tudo quanto era lado, fudeno na sala, nos quarto, banheiros, cuzinha, piscina dentro e fora dágua.

Adipois de tanto grito, gorois, geme-geme e fungada, comecei a catá uma muié para gozá eu também. Peguei uma dentro de um banheiro, mandei embora ao macho que estava fudeno ela as patada e usei ela.

Cansado de tanto gozá, durmi. Despenquei nu na banheira, boca abaixo, engatado na beirada pela barriga metade e metade.

Não sei, não sei quanto tempo se passou. Só sei doutô que acordei a não sei quantas horas com um bruto dó no… no… cu.

É doutô, bem diz o ditado que “cu de bebo não tem dono”. Adiscurpe douto que neste momento não me alembro como os bacana chamam o cu. Estou muito arretado

Ânus, filho. Ânus é o nome -- ajudei a sua preocupação de entender haver me faltado o respeito.

-- Eu doutô, eu, João “Praça Repúbrica tinha sido arrombado?! Cá?" -- deu um grito exaltado de revolta, incredulidade e indignação. Uns tempo adispois notei que o meu bucho tava cresceno.

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Pensei que fosse o intestino preso ou alguma espécie de rolha solta de alguma carne modi o arrombamento o entupino.

-- Mais aí o bucho seguiu cresceno e ai pensei que fosse o figo*** Passei a tomar tudo quanto era chá e reméio, mais não adiantou. Uma noite a Dorores que durmia ao meu lado, diz que eu, durmino e sonhano gritava de dor. Adispois chamou uma amburância. O médico me arrevisou e me disse que estava grávido.

??!!

-- Não quis acreditá. Aqueles fios das puta não só havia arrombado o meu cu! Me perdoe dotô os palavrão (gemeu queixando-se desolado) por isso é que nóis tá aqui; o meu cartaiz de macho não pode cair… Quem iria a arrespeitá a Dorores – queixou-se -- finalizando num tom de voz decrescente de exigências.

Dolores, de seu lado, sem lhe soltar a destra, olhou-me ruborizada pedindo-me com seus olhos.

Por favor -- disse eu -- aguardem no corredor, sentados, enquanto mando preparar o centro cirúrgico.

Tomei o interfone.

-- É para tacar anestesia geral; 8 ml de Ketalar e três ampolas de Valium 10. O quê?… É, sim, K  e  t  a  l  a  r,  8 ml. Morrer?… Não vai nada! Essa é a medida anestésica que usam os veterinários do zoológico quando têm de operar ou extrair dentes de hipopótamos

*       Dolores
**    útero
***  fígado