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Edição Papel Para Bunda

Todo Mundo Sabe que o Sistema Tá Fodido

O fato de o Occupy Wall Street ter começado com manifestantes de esquerda e ter se tornado um movimento global é, ao mesmo tempo, previsível e surpreendente.

O fato de o Occupy Wall Street ter começado com manifestantes de esquerda acampando no Zuccotti Park, em Nova York, e ter se tornado um movimento global é, ao mesmo tempo, previsível e surpreendente. Previsível porque a crise financeira mundial, os subsequentes planos de resgate dos bancos financiados com dinheiro público e as rigorosas medidas de austeridade que se seguiram foram o equivalente político a jogar gasolina em todo o mundo ocidental. Surpreendente porque ninguém imaginaria que um protesto feito com barracas instigado pela revista Adbusters e pelo Anonymous seria a faísca que colocaria tudo em chamas.

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Conforme o movimento Occupy foi se espalhando por 2.400 cidades ao redor do mundo, ele foi ficando mais organizado e agora está tentando chegar num consenso sobre o que seus participantes querem mudar através de zilhões de assembleias gerais tediosas acompanhadas por batuques de bongôs. Até que eles consigam fazer um resumo eloquente adequado, vamos ter que compilar o que der das incontáveis reformas sugeridas nas centenas de fóruns, painéis e feeds de Twitter sobre o Occupy.

Fizemos uma recapitulação de algumas das sugestões, tanto inteligentes quanto cômicas, que o Occupy ofereceu até agora, com comentários de Richard Beardsworth, professor de filosofia política e relações internacionais da American University of Paris, e de Martin Kragh, professor adjunto da Stockholm School of Economics.

UM MUNDO SEM DINHEIRO

Muitos manifestantes acreditam que um mundo sem dinheiro seria melhor para todos, já que todos os problemas atuais poderiam ser resolvidos sem ninguém dizer que as soluções são “muito caras”. Além disso, dizem que em uma sociedade baseada na escambo o crime “seria reduzido significativamente”.

Richard Beardsworth: Sem dinheiro como meio de troca e estoque de valor, não haveria comércio internacional nem investimento (e, portanto, crescimento). Um mundo sem dinheiro simplesmente não seria um “mundo”. Assim como outras propostas semelhantes feitas durante as crises da modernidade, essa proposta é inconcebível no mundo de hoje.

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Martin Kragh: A ideia de um mundo sem dinheiro existe há séculos. No entanto, estudos arqueológicos e antropológicos sugerem que todas as grandes sociedades utilizaram algum tipo de moeda, como conchas, sementes e metais diversos. Hoje a maioria das transações é feita eletronicamente, mas ainda assim é dinheiro. Então é possível mudar o sistema monetário atual aos poucos e por partes, mas enquanto tivermos comércio e interação entre as pessoas, o dinheiro estará entre nós.

RESTAURAR A LEI GLASS-STEAGALL NOS EUA

A Lei Glass-Steagall, aprovada em 1933 no Congresso norte-americano, separava bancos de investimento de bancos comerciais, evitando que os bancos em que a maioria das pessoas deixa seu dinheiro especulassem com títulos de risco.  Vários componentes da Lei Glass Steagall foram revogados em 1999 com a aprovação da Lei Gramm-Leach-Bliley. Alguns membros do Occupy acreditam que restabelecê-la ajudaria a controlar a especulação de “produtos” financeiros de risco, como derivativos, o que, segundo eles, ajudou a causar o desastre financeiro.

Richard Beardsworth: A Lei Gramm-Leach-Bliley derrubou barreiras entre estratégias de investimento e captação de depósitos, permitindo que os banqueiros confundissem e ignorassem suas responsabilidades e assumissem riscos excessivos com as poupanças e dívidas da população. Para mim, defender a restauração dessa divisão entre bancos de investimento e comerciais, politicamente, faz muito sentido nesse contexto (não posso falar a respeito dos argumentos financeiros). Sem isso, a verdadeira responsabilidade pela crise não está sendo tratada politicamente. Essa é uma prática política ruim.

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Martin Kragh: Existe de fato uma discussão nesse momento no Reino Unido para implementar uma lei que separaria novamente bancos de investimentos e comerciais. Esse processo é político e, portanto, é difícil fazer previsões. Mas está claro que todas as economias ocidentais vão sair dessa crise com novas regulamentações. Só não sabemos ainda quais serão.

COMPORTAMENTO RESPONSÁVEL

Alguns manifestantes do Occupy acham que deveria haver um “teto” estipulando quanto dinheiro você pode ter – US$ 1 bilhão por pessoa, por exemplo – e quanta participação no mercado global uma empresa pode ter – digamos, 10%. Como colocou o autor de um post no fórum Occupywallstreet.com, “não há embasamento moral, ético ou legal para sustentar uma afirmação de que indivíduos ou corporações tenham direito à riqueza ilimitada. Definir um teto para a riqueza individual e para a participação no mercado das empresas é necessário”.

Richard Beardsworth: A disparidade econômica entre ricos e pobres aumentou substancialmente nos últimos 20 anos, embora seja importante lembrar que a pobreza relativa diminuiu no mesmo período (principalmente devido ao crescimento de economias “emergentes”). Uma reação a essa crescente disparidade é essencial por vários motivos morais. No entanto, não acredito que a riqueza individual deva ser limitada, mas, sim, que deva ser taxada progressivamente através de mecanismos institucionais. Em outras palavras: não vamos moralizar sobre a criação da riqueza, mas, sim, institucionalizar seus limites. Como seria possível limitar a participação no mercado global das empresas sem leis antitruste e antimonopólio estabelecidas em um nível global, coisa que exigiria um governo mundial? A sugestão não é viável sem uma ordem constitucional mundial em que o mercado global se inserisse. Consequentemente, cada proposta é, respectivamente, moral e historicamente inapropriada.

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Martin Kragh: Como você sabe que $ 1 bilhão é a quantia ideal? E esse número vai ser ajustado de acordo com a inflação e movimentos cambiais? E se uma empresa possui uma grande participação no mercado não seria porque as pessoas gostam dos seus produtos? Os governos não devem definir regras para as pessoas comprarem iPhone ou Samsung. Sou a favor de taxação progressiva, mas também precisamos estimular o empreendedorismo e os investimentos. Para isso, temos de aceitar que pessoas bem-sucedidas ganham mais dinheiro.

RESPONSABILIDADE GLOBAL

Alguns manifestantes do Occupy querem que os setores globais financeiros e energéticos sejam investigados minuciosa e constantemente para identificação de fraudes, corrupção, uso de informações privilegiadas, violações de leis ambientais e conflitos de interesse. Os resultados dessas investigações seriam divulgados e todos os infratores, inclusive políticos, seriam processados. Esse argumento expressa o sentimento que existe entre os manifestantes de que a corrupção generalizada e atividades ilegais são responsáveis pela falência da economia.

Richard Beardsworth: As coisas nunca são preto no branco, e as pretensões universais por trás dessa proposta são utópicas e moralistas. No entanto, a sugestão de um órgão universal para investigar fraudes bancárias articuladas globalmente é válida. A primeira coisa mais viável e efetiva a perseguir é a eliminação dos paraísos fiscais.

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Martin Kragh: Essa ideia me parece boa. Porém, temo que a maior parte do atual desastre financeiro tenha sido infligida sobre nós por pessoas que agiram totalmente de acordo com a legislação existente. Então, primeiro, precisamos de boa administração pública e regulamentações sólidas.

CONTROLE SOBRE NOSSO PRÓPRIO DINHEIRO

Outra ideia constante nos grupos de discussão do Occupy é a de que os contribuintes devem ter mais voz na definição de como seu dinheiro é gasto. Isso poderia ser feito com a instalação de centros de pagamento de impostos, onde os cidadãos poderiam decidir quais departamentos e programas do governo querem favorecer. O governo poderia apresentar propostas aos eleitores, mas caberia aos cidadãos decidir quais programas seriam financiados e a quantia que receberiam.

Richard Beardsworth: Uma forte democracia participativa para a política fiscal pode fazer sentido em âmbito local, mas não nacional dada a complexidade técnica das questões envolvidas. Isso não é desculpa para a tecnocracia (o Obama não conseguiu emplacar a reforma financeira em Wall Street em parte por causa de sua inevitável confiança nos conselhos técnicos “internos”), mas é preciso lembrar que politizar questões técnicas é um processo complexo por si só. Um cenário em que os cidadãos tomam decisões diretamente não é a resposta para esse problema. De modo geral, precisamos reinventar o republicanismo para a era global, e não reduzir preocupações complexas a um modelo de participação democrática de “cidade-Estado”.

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Martin Kragh: Essa ideia me parece extremamente perigosa. Não queremos que as pessoas negociem quem deve receber tratamento médico ou educação. Nós elegemos os governos locais e parlamentares, se você não gosta das decisões de gastos deles, deveria votar em outra pessoa.

O IMPOSTO ROBIN HOOD

O chamado Imposto Robin Hood é uma proposta para taxar transações financeiras, como negociações de títulos e ações e operações de câmbio. A alíquota seria baixa, de 0,05%, mas seus defensores dizem que renderia centenas de bilhões de dólares por ano. Essa proposta vem sendo apoiada por economistas importantes, políticos e até mesmo pelo Vaticano.

Richard Beardsworth: É uma ideia muito atraente que vem sendo discutida desde os anos 70 e que muitos apoiam. A questão é como fazer isso acontecer (viabilidade e eficácia). Algumas acham que o FMI seria a instituição adequada para coordenar a cobrança do imposto, embora muitos países do Hemisfério Sul não acreditem na imparcialidade do FMI. Com as recentes mudanças políticas e a nova administração, acredito que o FMI seja o órgão certo para coordenar e cobrar o imposto, já que é a única instituição financeira universal o suficiente para começar a colocá-lo em vigor. Concentrar nessa proposta parece valer a pena nesse momento de incerteza financeira e ideológica.

Martin Kragh: Economistas acreditam que um imposto sobre transações financeiras pode ser cobrado. A ideia é válida, mas pode ser difícil aplicá-la na prática. Atualmente os bancos financiam suas atividades em grande parte com mercados monetários de curto prazo, o que significa que eles contam com empréstimos de outros bancos, de dentro e fora do país. Não sei se seria bom dificultar essas transações. Também há o risco de que a UE use esse tributo para financiar seus déficits, o que implica em risco de mais federalismo – coisa que a maioria dos europeus não quer. Deve haver formas mais eficientes de regular a especulação em âmbito nacional.