FYI.

This story is over 5 years old.

viagem

Traficantes Mirins de Ópio Durante o Ramadã

opium1 Antes das recentes manifestações internacionais que rolaram no dia do comício do Quds as ruas de Teerã tiveram um mais que merecido descanso.

Antes das recentes manifestações internacionais que rolaram no dia do comício do Quds as ruas de Teerã tiveram um mais que merecido descanso. Depois das revoltas pós-eleições, todos aproveitavam a euforia meio Zen que vem com fome – quer dizer, jejum – de dias inteiros durante o mês sagrado do Ramadã.

Tinha sido convidado para um eftari (o jantar que dá fim ao jejum) na casa da minha tia no norte de Teerã – a alguns quarteirões do bazaar-e Tajrishi. Como não via esse lado da minha família fazia muitos anos – e não queria aparecer de mãos abanado, ou, como os iranianos dizem brincando, um convidado “judeu ou armênio”, combinei de me encontrar no bazar com meu primo Arash, de 27 anos, para ele me ajudar a escolher uns petiscos para levar.

Publicidade

Lá pelas 18h (duas horas antes do eftari começar), encontrei o Arash perto da entrada oeste do mercado, no mausoléu de Emam Zadeh. Arash me cumprimentou com os tradicionais dois beijos no rosto e sugeriu de racharmos um beque de haxixe com tabaco Bahman num beco próximo à loja. “Batch-e-Amreekai” (garoto americano), a última vez que te vi nem tinha certeza se você já tinha pelo no saco, por isso nunca te ofereci”, disse, para depois engatar um velho estereótipo orientalsta, “Vai ser irado, como o Aladin no seu tapete voador, a única diferença é que você vai viajar mais que ele e ficar morrendo de fome!”.

O rolê no tapete mágico do Alladin me lembrou das idas às feiras fora de Berkley atrás de laricas durante o primeiro ano de faculdade, que eu passei inteiro chapado. Só que dessa vez não era um mercado hippie, mas sim um bazar com uma tropa de choque fazendo a segurança, e com o que pareciam ser algumas centenas de iranianos suados, famintos e esquentadinhos.

Graças ao fato de eu não ter comido desde as seis da manhã, à larica e à merda da inflação iraniana que nunca para de aumentar, gastei metade da grana que tinha para a semana em uns poucos quilos de azeitonas marinadas, vegetais picados, pêssegos, damascos e meia melancia. Se não fosse a tropa de choque plantada em volta do bazar e a paranóia, eu teria mandado bala em umas azeitonas enquanto tentávamos andar pela multidão que deixou para fazer compras de última hora para o eftari. (Teve uma hora em que dois adolescentes usando uns bonés Burberry falsetas, e com Lady GaGa vazando altíssimo dos fones que dividiam de um tocador mp3, se espremeram ao nosso lado. O mais abusado dos dois, que cantava “Allah Akbar” baixinho, achou que eu e meu primo fôssemos nos juntar ao coro, enquanto o outro, hipnotizado por “Poker Face”, respondeu “Deixa pra lá, tá todo mundo faminto.”)

Publicidade

Seguindo Arash, passamos por alguns caminhos secundários que desviavam da multidão de estômagos inquietos. Quando chegamos ao final do beco apertado, que levou à saída do bazar, um amontoado de compradores e espectadores começou a cercar um grupo de crianças de rua que choravam enquanto eram levadas presas pela lebas shakhsi (políciais à paisana).

A maioria daquelas crianças caiu em si e voluntariamente jogou fora suas caixas cheias de Band-Aids chineses contrabandeados, Fall-e Hafez (cartões de poema de Hafez), e (que estranho) seus sapatos em sacos pretos. Os mais teimosos ainda tentavam agarrar suas mercadorias e arrastavam os pés enquanto eram expostos a mais humilhações públicas por policiais sádicos que surravam suas partes baixas pré-adolescentes.

Uma mulher de meia idade com mechas loiras quase brancas e usando sapatos de salto alto verdes da cor da campanha de Moussavi tentou intervir, “Agha, senhor, é Ramadã! Por que você está batendo neles como se eles fossem cabras de sacrifício?”

Cinco dos seis lebas shakhsi ignoraram o protesto dela. Até que um deles se virou e gritou, “Quem é você, caralho? A babá deles?” Sentindo que deveria justificar seu ataque de raiva para a multidão ao redor, ele continuou “…eles trazem esses afegãos ilegais do sul de Teerã para cá toda manhã e depois os levam de volta à noite. Alguns ficam aqui e dormem nos becos”, depois se voltando para a mulher humilhada, “Madame, essa semana é ópio e haxixe. Na próxima pode ser crack, ecstasy e heroína”.

Publicidade

Depois de ouvir o policial anunciar que as crianças eram afegãs, a multidão começou a se dispersar e espalhar a notícia: “Não é nada, só umas crianças afegãs do sul de Teerã”.

Eu estava muito chapado para lembrar se pedi a um dos lebas shakhsi que me deixasse tirar umas fotos das crianças depois da humilhação pública ou se eu simplesmente saquei minha câmera e comecei a mandar bala, mas Arash agarrou meu braço quando me viu tentando focar, “Kheyng (Idiota)! O que você está fazendo? Vamos vazar daqui!”

Arash acenou para um taxi depois de corrermos pelos becos do bazar. Quando perguntei o motivo da pressa e para onde estávamos indo, ele me repreendeu, “Escuta - eu preciso pegar uma coisa para o Omid (seu irmão de 18 anos). Eu não queria que você visse isso, e nunca diga a ninguém da família que fui eu quem te contou…”, e Arash, olhando o taxista para ver se ele estava escutando, baixou sua voz e finalmente explicou o motivo do lado paterno de sua família nunca ter aparecido nas reuniões:

Depois da revolução de 79, Hayedeh, a mãe de Arash, sonhava em deixar o Irã. Enquanto ela concluía sua graduação em Psicologia na Universidade de Teerã, encontrou Mostafa, um doutorando em Ciências Política. Procurando por asilo político após os primeiros anos da invasão soviética do Afeganistão, Mostafa foi ao Irã durante o tempo em que Ayatollah Khomeini abriu o país para todos os refugiados, alegando “O Islã não tem fronteiras”. Na esperança de usar o visto de refugiado de Mostafa para deixar o Irã e viajar pelo mundo, Fatima casou com Mostafa.

Publicidade

Mostafa engravidou Fatima, que deu luz à Arash um mês antes do casamento. Mesmo depois da cerimônia bem constrangedora, o governo iraniano nunca considerou a união dos dois oficial – frustrando os sonhos de Fatima de ir estudar psicanálise no Ocidente. O futuro de seus filhos também não parecia nem um pouco mais promissor. De acordo com a lei iraniana, os nascimentos de Arash e Omid foram vistos como ilegítimos porque seu pai era um não-cidadão afegão. Isso consequentemente minou qualquer chance de obterem shenas nameh (a certidão de nascimento iraniana) – básica para se conseguir emprego legalizado, plano de saúde e passaporte.

Avançando algumas décadas de crise de identidade, perseguição política e social, e subornos na Universidade Azad, em Teerã, Arash conseguiu continuar seus estudos de Engenharia – ainda que não se saiba se o Ministério da Educação vai legitimar seu PhD. No verão daquele ano, Omid foi proibido por tempo indefinido de prestar o concour (espécie de vestibular anual do Irã), assim como todos os outros refugiados afegãos e iraquianos.

“Os nervos de Omid estão sempre à flor da pele. Ele está sempre estressado com a calvície, e até seus cílios já começaram a cair. Maman também não faz nada de construtivo para ajudar. Ela o trata como um dos seus pacientes clínicos e vive prescrevendo Xanax, mas ele prefere as coisas que eu trago das crianças do bazar”. Nós decidimos pular fora do táxi a alguns quarteirões da praça Vanak Square logo que o carro parou no engarrafamento vespertino de Teerã. Depois de nos devolver o troco, o taxista finalmente abriu a boca: “Não sei bem o que a sua geração curte, mas as crianças afegãs do Vanak Bazaar tinham teriyak [ópio] dos bons e haxixe fresquinho de Zahedan”.

Publicidade

Não demorou muito para acharmos as crianças. Avistamos um vendedor de Band-Aid indo atrás de uma adolescente do lado de fora de uma bodega na praça Vanak, “Se você não vai comprar nada, posso te dar um beijo? Pelo menos me dá um sorriso”. O garoto não parecia ter mais de 10 ou 12 anos, mas minha primeira impressão foi a de que ele falava como um cara de 18 anos sexualmente frustrado. “Ela definitivamente na salem”, ele disse, o que pode ser traduzido como “não apropriada” que, na gíria, é um xingamento muito usado para se referir a mulheres que não se casaram e são sexualmente ativas. No Irã, a maioria das mulheres não casadas que tem vida sexual ativa mas tem medo da humilhação social evitam romper seus hímens optando por sexo anal. “Você viu como a bunda dela é empinada?”.

Arash não queria se apressar e melar o negócio do teriyak. Depois de dez minutos pressionando o moleque para dar uma palinha da parada, Arash desistiu e entrou na bodega para arranjar direto com a fonte dele. Enquanto eu ficava lá fora assistindo ao buzinaço contra Ahamadinejad no trânsito de Teerã, aproveitei a oportunidade para falar com duas das crianças, Abdul e Karim, que ficavam indo de um lado pro outro em frente à loja.

Vice: É assim que vocês ganham grana depois da escola?
Abdul: Haji, que escola? As únicas crianças que vão para a escola são koonies (o que literalmente significa “cuzetas”, o equivalente a “bicha”) ou tem pais koonies, e eles colocam eles naquelas escolas.

Publicidade

Por que você chama eles de “koonies”?
Porque eles ficam de quatro para o sistema do Ministério da Educação e vira e mexe acabam como a gente, nas ruas. Ou eles acabam como os nossos pais, trabalhando em construções, ou como suas mães, tricotando em um porão o dia inteiro – você vai comprar uma caixa de lenços ou não?
Claro, mas antes tenho algumas outras perguntas. Quanto tempo mais vocês acham que vão continuar traficando antes de voltarem para o Afeganistão? [Abdul e Karim riem]
Karim: Eu nasci aqui, assim como as duas últimas gerações da minha família. Ahmadinejad está tentando chutar a gente pra fora daqui, mas para onde ele quer que a gente vá? Nós vamos ficar aqui até o rooz-e geeyamat (o dia do apocalipse), ou até sermos presos. Mas que diferença faz? A lei dos mulás diz que quem vende drogas deve ser punido com a morte.

O que vocês acham da última eleição presidencial no Afeganistão?
O que dá pra achar? Existe um milhão de refugiados afegãos legais no Irã e mais gente ainda no Paquistão. Nenhum deles teve direito de votar. Karazi ou Abdullah não vão fazer nada enquanto a América e a Otan distribuírem as cartas. Haji! Eu acabei de te dar uma aula de política, compre alguns Band-Aids!

Arash finalmente chegou com seus olhos trincados: “Tá tudo bem. São quase 20h, talvez a gente perca a prece desta noite, mas se vazarmos agora, chegamos para o eftari”.

No último minuto eu também decidi comprar algo pro Omid. Joguei uma nota de cinco mil toman na mão dos moleques (aproximadamente R$10). Ambos foram para o lado da loja e se ajoelharam. Karim tirou o sapato de seu pé direito e escondeu o dinheiro. Abdul tirou o sapato de seu pé direito e tirou de lá a trouxinha.

Publicidade

Chegamos na casa do Arash lá pelas 21h30, toda a família (incluindo minha maman boozorg, avó) estava esperando pacientemente pela nossa volta ao redor da mesa. Dei um beijo em maman boozorg e sentei no último lugar à direita, próximo a Omid. Tia Hayedeh passou toda a tarde fazendo cozido de ghormet-sabzi, cozido de ghormet-fesenjan, arroz com açafrão com tadig, e iogurte de menta e pepino. Ela também serviu várias porções das suas azeitonas caseiras e ervas frescas.

Ninguém tinha comido desde as 6h da manhã. Com as nossas bocas cheias, conversamos o mínimo à mesa. Durante as colheradas cheias de cozido, arroz e salada, debatia comigo mesmo como partir para a segunda rodada de ghormet-fesenjan sem dar muita pala de que estava olhando as entradas na cabeça e testa de Omid. Quando alcancei o cozido, Omid me cutucou com seu cotovelo. Olhei e me deparei com o que restava de sua sobrancelha direita. Ele cochichou em minha orelha esquerda: “São quase dez da noite - vamos subir para a laje”.

Lá do alto, Arash, Omid e eu ficamos quietos por uns bons dez minutos. Bolei um banza com a parada que arranjei com as crianças afegãs e passei para o Omid. Quando ele estava quase acendendo, ouvimos o primeiro berro de “ALLAH AKBAR (Deus é grande)!” vindo de uns dois prédios de distância. Depois de vários segundos, outro chamado ao protesto veio do prédio logo ao lado. Depois de quase meio minuto toda a vizinhança começou “Allah Akbar.”

Nós fumamos e escutamos até umas 22h30. Quando a manifestação noturna começou a sossegar, perguntei aos meus primos por que de o Movimento Verde não estar nas ruas protestando contra os resultados da eleição. Omid foi o primeiro a responder: “As pessoas precisam perder o medo. E isso é foda quando você vê o Sr. Abtahi – aiatolá e vice-presidente – na TV pública confessando ter participado de uma ‘revolução-de-veludo’, ou escuta rumores o tempo todo de que rapazes e moças presos durante as passeatas pós-eleições estão sendo estuprados e torturados a ponto de arrancarem fora seus próprios órgãos…”, Omid se calou, foi até o topo do telhado e gritou, como que tentando destruir sua própria laringe, “MARG BAR DICTATOR (Morte ao Ditador)!”

Arash continuou: “Para alguns, isso é apenas um movimento para restaurar a República Islâmica e forçar Ahmadinejad a renunciar. Mas para pessoas como nós é a continuação de um movimento por direitos civis ainda maior, do que o que foi interrompido em 79”.

Com isso tudo em mente descemos direto para um pouco de pastéis e chá iranianos, e para ouvir a análise de Tia Hayedeh sobre a suposta origem judaica de Ahamadinejad.