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Orgia na Floresta

Anda rolando uma briga entre cachorros bem grandes e o prêmio é um osso suculento de US$ 1,4 bilhão, destinado a quem for escolhido para tocar um projeto para lá de ambicioso do governo federal chamado Sivam.

O cheiro inconfundível de maracutaia e grana alta empesteou ainda mais Brasília nos últimos meses. Anda rolando uma briga entre cachorros bem grandes e o prêmio é um osso suculento de US$ 1,4 bilhão, destinado a quem for escolhido para tocar um projeto para lá de ambicioso do governo federal chamado Sivam (apelido de Sistema de Vigilância da Amazônia). O Planalto quer montar uma extensa rede de radares e centros de controle aéreo para vigiar de perto, por terra e por ar, cada um dos 5,2 milhões de quilômetros quadrados da maior floresta do mundo e assim combater todo tipo de bagunça, inclusive desmatamentos, contrabando e tráfico de drogas. A disputa pelo osso do Sivam atiçou dois rotweillers da indústria militar internacional: a francesa Thomson e a norte-americana Raytheon. Depois de uma longa briga de bastidores, o governo brasileiro anunciou em julho que pretende entregar o prêmio para o totó americano. O zé-povinho, ocupado demais com a Copa, ainda não tomou conhecimento de como rolaram as negociações, mas o que se comenta nos orifícios quentes do poder, entre as festinhas sadomasoquistas do Lago Sul e as farrinhas com as meninas da Jeany, é que a escolha foi recheada com todo tipo de baixaria, de ofertas de propinas de todo tipo e até a ação de espiões da CIA e da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA. Isso aí: espionagem. Acontece que, com a queda do muro de Berlim, os arapongas americanos tiveram que arrumar outros inimigos para justificar seus salários. Como não há mais risco de ataque nuclear do bicho-papão comunista e aqueles árabes barbudos que ameaçam bombardear o american way of life são uns tipos que ninguém leva a sério, o jeito foi partir para a espionagem industrial, colocando os agentes secretos para fazer o trabalho sujo do Departamento de Comércio e das megacorporações. O James Bond do mundo real não quer mais salvar o Mundo Livre. Hoje, 007 trabalha para encher os bolsos da AT&T, da Boeing, da GM… e da Raytheon. Proteger a Amazônia não parecia ser lá um tipo de negócio que combinasse muito com a Raytheon, mais acostumada em monitorar o lançamento do desfolhante agente laranja nas florestas no Sudeste Asiático do que em prevenir queimadas e desmatamentos. Seja como for, a Raytheon é uma pica grossa da tecnologia militar: foi pioneira na criação dos mísseis teleguiados, em 1948, e desenvolveu o sistema computacional da Apolo 11, que levou os primeiros homens à Lua em 1969. Os mísseis Patriots que choveram sobre o Iraque na Guerra do Golfo tinham a marca da Raytheon—e, se um dia os EUA resolverem voltar ao país para enforcar Saddam Hussein, pode estar certo de que as armas da empresa estarão orgulhosamente explodindo iraquianos ali outra vez. Mas os mísseis da Raytheon são mesmo é teleguiados pela grana. Por isso, seus radares não puderam deixar de detectar a presença de enormes cifrões turbinados nos planos dos milicos brasileiros para a Amazônia. Os americanos já haviam passado por aqui em 1971, competindo com os mesmos franceses da Thomson. Na época, a Raytheon usou até um astronauta da Apollo 8 como lobista na tentativa de fazer a empresa vencer a concorrência brasileira na construção dos primeiros Cindactas (Centros Integrado de Defesa e Controle de Tráfego Aéreo). O homem da Lua não convenceu os brasileiros, e a Thomson levou a melhor. Quase três décadas depois, os americanos encontraram sua chance de desforra. Agora, as corporações jogaram pesado. Parece que espiões da CIA fizeram um relatório apontando que os franceses estariam oferecendo dinheiro vivo para azeitar a máquina da concorrência do Sivam a seu favor. Até Bill Clinton entrou na jogada e mandou uma carta para pressionar Itamar Franco, lembrando como os EUA são gente boa e gostariam de continuar amiguinhos do Brasil. Na última curva, a Thomson ainda liderava a corrida: tinha a seu favor a experiência com o desenvolvimento dos Cindactas e condições de financiamento melhores do que a dos americanos. À boca pequena, diz-se que o serviço de espionagem americano entrou em ação e conseguiu levantar linha por linha da proposta francesa enviada ao governo brasileiro (e que deveria ser sigilosa). O governo americano, então, em parceria com militares brasileiros simpático aos seus interesses, conseguiu que o Eximbank, banco oficial dos EUA, aceitasse propor um financiamento semelhante ao dos franceses. Assim, o Tio Sam venceu. O "happy end" foi registrado numa carta que Itamar mandou para a Casa Branca em agosto, todo pimpão, comunicando oficialmente a vitória da Raytheon e dizendo que o Clinton podia "felicitar-se por ver concretizada sua expectativa". Mas não culpem o topetudo, garotos. Vença Lula ou FHC, o próximo presidente do Brasil provavelmente vai mandar cartinhas ou mesmo telefonar todo feliz sempre que tiver uma boa notícia sobre a Raytheon e o Sivam.

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Agora a história fica sinistra. Sai 007, entra George Orwell, aquele do Grande Irmão. A pergunta que não quer calar não é quem matou JFK, mas sim como é que os americanos conseguiram espionar com tanta precisão os conterrâneos de Asterix, que afinal de contas não são bobos. A resposta pode estar numa misteriosa rede de satélites chamada Echelon, construída pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial com o objetivo oficial de, a-ham, monitorar as comunicações do perigo vermelho através do mundo.

A Echelon é operada pela NSA e ninguém sabe exatamente qual é o alcance de seus poderes. Loucos de aldeia e homens de sobretudo fumando em garagens contam que a Echelon é capaz de rastrear ligações telefônicas, transmissões de fax e envio de informações pela internet feitas em qualquer lugar do mundo. Já faz um tempo que CIA e NSA vêm usando a rede misteriosa para objetivos diversificados, inclusive bisbilhotar os concorrentes das megacorporações americanas. Neste mesmo ano, 1994, os olhos que tudo vêem da Echelon se meteram também numa disputa entre a européia Airbus e a americana Boeing por um contrato na Arábia Saudita. Como ocorreu com o Sivam, a arapongagem americana deu certo e a Boeing voltou para casa toda feliz com um US$ 1 bilhão a mais no bolso.

Dizem que basta você dizer ou escrever alguma das palavras-chave buscadas pela Echelon, como "Saddam" ou "Fidel", para que suas comunicações sejam selecionadas e observadas de perto pela NSA. Paranóia? Pode ser, mas a paranóia me faz sentir mais seguro. Acabo de pensar numa coisa. Assim que eu enviar um fax com essa reportagem para a redação da Vice, tenho certeza de que uma série de palavrinhas perigosas (CIA, NSA, Raytheon, a própria Echelon) vai chamar a atenção dos supercomputadores da Echelon e que por causa disso passarei a ser vigiado de perto pelo Grande Irmão da espionagem gringa. Se alguma coisa acontecer comigo, vocês já sabem. Afinal, como Kurt Cobain cantava até há pouco tempo antes de explodir os miolos, "só porque você é paranóico não significa que não estejam atrás de você".

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Difícil de acreditar que saia algo de bom para a gente dessa merda escura de conchavos, espionagens e manipulações que envolveu o Sivam. Não confio em nada feito no escuro. Até foder, para mim, tem de ser com a luz acesa. Do jeito como o Sivam está sendo conduzido, não me espantaria se virasse um projeto cheio de remendos. Sou capaz de apostar que o controle do tráfego vai ter tantos "buracos negros" inacessíveis para os radares que é bem capaz de os aviões começarem a colidir entre si sobre a Amazônia. Urubu, eu? É a mãe!, como diria o Mussum, outro gênio que acaba de voar para o céu e que, provavelmente em 15 anos, será considerado tão cult quanto o TV Pirata.

O pior é que nem precisávamos ter corrido atrás dos gringos. O cientista Rogério Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp, é um dos que defendem que o Brasil tem, sim, competência para criar a sua própria tecnologia para o Sivam. Sabemos fazer bem algumas coisinhas: é só ver o Proálcool. E nem sempre trazer tecnologia de fora traz bons resultados: é só ver o fracasso de Angra 1, com tecnologia alemã.

O surubão do Sivam me faz pensar em como, no fundo, não ligamos para a Amazônia, aquele enorme pedaço quente de tédio verdejante que até hoje não nos rendeu nada mais interessante do que Paulinho Paiakã e aquela novelinha de merda da Manchete. É sempre a mesma coisa. Subimos nas tamancas e damos gritinhos esganiçados quando os gringos ameaçam colocar a mão no nosso jardim supercrescido, mas não movemos uma palha de soja quando meia dúzia de fazendeiros e sua bancada de parlamentares (os melhores que o di-nheiro pode comprar) tratam de queimar todas as árvores para colocar no lugar trocentos hectares de capim para os bois mastigarem sobre suas cinzas.

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E, quando resolvemos comprar um sistema hiper-sofisticado para controlar o desmatamento, o que fazemos? Nos juntamos aos gringos e criamos um surubão com dinheiro público. Um bilhão de reais. Um bi, mano. Muita grana. Tudo bem. É mesmo difícil de acreditar que tanto dinheiro pudesse ser gasto de forma limpa. Não foi um conterrâneo dos donos da Thomson que disse que há um crime por trás de cada fortuna?

Mas bem que o governo podia ter tentado fazer uma licitação pública para o Sivam, com as cartas na mesa para que todo mundo pudesse ver. Mas aí, bom, sabe como é, para decidir o destino de um bilhão de dólares é sempre melhor com um joguinho de cartas fechadas—e marcadas. Já no ano passado, o governo federal dispensou a concorrência pública para o Sivam com o papo groselha de que uma licitação poderia expor "informações sigilosas" que prejudicariam a nossa "segurança nacional", como os milicos gostam de falar. O mais engraçado é que, no acerto feito com a Raytheon, o Planalto aceitou entregar as chaves douradas para a empresa americana escarafunchar o Sivam até do avesso e conhecer todas as informações do sistema—as mesmas que continuarão secretas para o zé-povinho brasileiro.

Como sempre, o joguinho de cartas marcadas descambou para uma partida safada de strip poker, em que o pato após ficar pelado ainda é enrabado. Quem é o pato? Primeira regra do pôquer, mano. Se você não sabe quem é o pato, é porque o pato é você.