Uma Lacuna Maior que o Gênero

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Uma Lacuna Maior que o Gênero

Apoiar as pessoas transgênero na sua vida não quer dizer fingir que elas são seres perfeitos e sem falhas.

"Para todos os efeitos, Cait, me identifico como mulher."

Estávamos sentadas perto da churrasqueira em cadeiras de jardim na longa entrada de cimento da garagem feita pelo meu pai e meu avô quando eles construíram a casa no meio dos anos 90. Eu estava morando no Brooklyn e visitando meus pais na cidadezinha tranquila do Oregon onde cresci. Eu tinha sido demitida na semana anterior e esperava encontrar algum consolo em casa. Eu nem estava no Oregon para visitar meus pais – voltei para o casamento da minha melhor amiga do colegial. Eu tinha voltado também para que meus pais conhecessem meu novo namorado, o primeiro namoro sério que tive. Eles tinham nos levado de adega em adega, ansiosos para impressionar meu convidado. Ele estava lá, desmaiado no sofá depois de tanto vinho. Eu mesma tinha bebido quase a ponto de apagar também.

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Minha mãe e minha irmã já sabiam. Meu pai não tinha contado a mim nem aos meus irmãos, já que morávamos longe, na Costa Leste, e raramente voltávamos para casa. Estávamos fazendo churrasco, como sempre fazíamos, quando meu pai se assumiu como transgênero para mim. Foi o pior momento da minha vida até aquele momento.

Tenho guardado minha raiva como um velho relógio de bolso desde então. Fiquei com raiva porque, em 25 anos, nunca conheci o verdadeiro eu de alguém que eu amava tanto. Fiquei com raiva também porque meu pai não era ele, meu pai, mas um espectro: uma ideia de homem, um resumo de suposições, uma máscara vazia. Eu me recusei a aceitar inteiramente a confissão, mesmo enquanto peças "Então é por isso" começavam a se encaixar na minha memória, soletrando a verdade como um jogo de palavras-cruzadas demente: "É por isso que meu pai chorava o tempo todo", "É por isso que meu pai era suicida e estava sempre deprimido", "É por isso que meu pai tinha transtornos alimentares", "É por isso que minhas expectativas sobre os homens foram sempre tão erradas". Uma mulher como pai? A ironia disso é quase shakespeariana: um homem ultraconservador da igreja, secretamente lutando com a fluidez de gênero, uma verdade que contrariava todas aquelas crenças. Que tipo de pessoa consegue inventar um eu completamente? Como é sentir que você precisa fazer isso?

Meu pai é um ex-pastor cristão, líder de igreja e leitor ferrenho de blogs conservadores. Especialmente depois do 11 de Setembro, meu pai vinha diretamente do trabalho para casa e lia atualizações políticas em sites conservadores até minha hora de dormir. A van velha dos meus pais ainda tem um adesivo da campanha Bush/Cheney. O homem que me criou era abusivo, manipulador e egoísta, atormentado por inseguranças e narcisismo desenfreado. Não havia como discordar das visões políticas e religiosas do meu pai. Nunca. E ele também não poupava a vara de punição proverbial naquela casa. Na verdade, cintos eram mais comuns que varas. Mesmo agora, quando cometo um erro, minha primeira reação ainda é uma onda de medo de que serei punida de alguma forma. As punições do meu pai eram abusos físicos, mas acho que o abuso emocional doía mais. Eu sofria diariamente com o medo de ser menosprezada ou ridicularizada pelas minhas opiniões, especialmente as que contrariavam as dele. Mas eu amava muito meu pai. Eu fazia de tudo para nunca o desapontar. Qualquer coisa fora do espectro ridiculamente estreito de sexualidade apropriada era um pecado; assim, eu participava obedientemente de retiros de pureza quando era pré-adolescente. Lembro de assinar com timidez meu compromisso de me abster de sexo de qualquer tipo até o casamento. Eu nem achava que tinha escolha nisso.

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Depois da faculdade, comecei a pensar por mim mesma sobre muitas das crenças do meu pai, mas é difícil se livrar dos mandamentos da infância. Meu instinto quando se trata de expressar minha sexualidade, ou até de apoiar visões políticas liberais, ainda é o de sentir culpa. Às vezes, tenho inveja dos meus amigos que cresceram com a liberdade de explorar suas próprias crenças. Me negaram isso. Sinto uma raiva específica do fato de que meu pai estava lutando internamente com aspectos dessas doutrinas o tempo todo, mesmo enquanto impingia isso em mim e nos meus irmãos. Eu já apoiava pessoas LGBTT antes de o meu pai se assumir. (Atualmente, meus pais frequentam uma igreja que apoia a comunidade LGBT. Muitas facções da cristandade norte-americana estão se corrigindo para abraçar todas as identidades de gênero.)

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"Linguagem é importante. Usar a terminologia correta é o primeiro passo para criar uma história de respeito sobre as pessoas transgênero."

Quase dois anos depois daquela noite, muitas vezes ainda me sinto presa nela. Não, não estou bem, mas obrigada por perguntar. Não vou ficar bem. O homem formativo na minha vida era, na verdade, uma mulher. Meu pai não está mais aqui. Às vezes, sinto tanta falta daquele homem que não quero mais estar aqui também. Imagino como ela será, mesmo enquanto ela emerge. Você está perdendo alguém. Você está ganhando alguém. É confuso. Não há jeito certo ou errado de se sentir sobre isso. Simpatizantes da comunidade transgênero, muitos bem-intencionados, me dizem que estou tratando meu pai pelo pronome errado – a pessoa masculina mais fundamental da minha vida por quase 30 anos – quando me confundo e a chamo de "ele" em vez de "ela". Tenho direito de ter um tempo para me sentir magoada e trabalhar isso. Às vezes, ainda digo "ele". Isso nunca vai ser uma reação de ódio – é só costume. Há uma diferença entre soltar pronomes para figuras públicas trans e tentar lidar com a mudança de gênero da sua figura masculina mais importante. Digo "ela" sempre que eu lembro. Esqueço geralmente quando falo com meus irmãos. Temos uma memória compartilhada do homem que nos criou.

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Apoio os direitos dos transgêneros. Sinto falta do meu pai. Ainda tenho raiva.

Apoio a transição do meu pai, mas ainda estou em luto. Não é que eu não tenha um pai agora; é que, na verdade, nunca tive um pai. Embora eu não conheça intimamente a identidade transgênero, conheço as consequências de ser criada por alguém que se odeia. Cresci achando que era normal desprezar meu próprio corpo. Eu não era imune à intensa disforia que era passada, impregnada em mim por uma pessoa presa entre dois gêneros. O que não posso ter de volta é a chance de crescer sem o traço suicida de que esta vida não é suficiente – nada nunca seria suficiente. Essa lacuna é profunda e maior, muito maior que o gênero. Não estou pronta para que essa mulher estranha entre no meu coração e substitua meu pai. Não estou pronta para admitir que eles são uma e a mesma pessoa.

Não há um roteiro para o que eu devo fazer agora. Principalmente, me sinto sozinha. Em luto. Estou questionando quase 30 anos de memórias. Esses anos estão perdidos ou só confusos? Como não percebi? Essa análise interminável do passado é seu próprio tipo de luto. Achei que, se tentasse bastante, podia escrever ou dizer algo que faria essa raiva passar. Achei que, se passasse por rascunhos suficientes da minha história, eu acabaria com uma que me pintasse como a filha ideal, lutando contra esse fardo estranho e tosco. Ninguém nesse ensaio é um herói. Sou apenas eu no meu universo estranho, vendo meu pai desaparecer e uma mulher estranha surgir no horizonte.

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Há uma diferença entre endossar alguma coisa num sentido abstrato e ter isso apresentado a você sem pestanejar. E, por mais que você queira que as pessoas que você ama sejam felizes, isso não facilita ter de conciliar isso. Apoio os direitos dos transgênero. Sinto falta do meu pai. Ainda tenho raiva. Essas são as três coisas que sinto mais profundamente na maioria dos dias, e elas não são contraditórias. Esse ensaio é apenas um momento, talvez uma polaroide, mas preciso desesperadamente dessa fotografia para superar isso. E talvez você também precise.

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"Você ainda tem dois pais que te amam, você deveria ficar feliz."

Mantive esse conhecimento em segredo por meses até dos meus próprios irmãos, como me pediram. Meu pai não conseguia contar para os filhos, pensando que a decepção deles podia vir de algum lugar mais diretamente relacionado com suas próprias concepções de masculinidade. Eu ainda pedi a inclusão deles. Como essa família podia seguir em frente e aceitar essa nova identidade sem a revelação total? Nos dividir em duas facções parecia injusto. Mais tarde, no Natal, eles revelaram a situação numa conversa tranquila, calma e sóbria de família. Tive inveja deles por isso.

Depois que eles souberam, finalmente contei a um amigo. Aí, encorajada, contei a outro. O segundo foi mais difícil. Fiquei em pedaços ao perceber como outros saberem tornava isso real – minha vida refletida em olhos simpáticos que realmente entendiam o custo disso.

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Sei o que vocês vão perguntar: minha mãe vai ficar. As pessoas parecem achar que isso é algo nobre. Não há um ensaio sobre quanto eu queria que minha mãe deixasse meu pai. Eu queria que ela fosse descobrir a vida que ela realmente gostaria de ter, como meu pai finalmente está fazendo. Se você fizesse uma pergunta diferente, eu poderia te dizer como sinto que essa decisão é a prisão final dela: outro sacrifício que ela está fazendo numa longa lista de coisas das quais ela desistiu para fazer o marido feliz, para fazer os filhos felizes. Ela sempre se colocava em último lugar enquanto lidava com as variações de humor do meu pai, criando quatro filhos e trabalhando num emprego noturno para pagar a hipoteca. Ela está fazendo isso por obrigação ou realmente quer isso? Nem sei se ela chegou a se fazer essa pergunta.

É uma dor muito grande para ser particular, mas isso não a torna pública.

Quero falar sobre meu pai ter a identidade verificada por funcionários amargos e maliciosos de loja. Quero falar sobre meu pai dizendo entender o peso esmagador do patriarcado, algo que essa pessoa reforçou na minha vida por décadas. Mas não tenho certeza se isso é verdade. O entendimento dela dessas forças de gênero sempre vai ser diferente da minha. Por exemplo, não entendo a virulência que ela vai ter de encarar para o resto da vida. Não conheço a verdadeira profundidade da disforia com que ela nasceu e suportou por 50 anos. Mas vi meu pai relegar a mim, minha irmã e minha mãe papéis de gênero estritamente tradicionais durante minha vida inteira. Nós lavávamos a louça, enquanto os meninos assistiam a esportes. Não podíamos namorar, mas meus irmãos podiam. Ela consegue entender as contradições do que ditava? Achei que eu tinha ressentimento de um homem esse tempo todo. Imagine minha surpresa.

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Ninguém quer realmente lidar com aquele emaranhado de pronomes, psicologia e tabu que um pai transgênero traz consigo. É trabalho duro. É pesado. Mesmo que a pessoa se importe, não há roteiro para sua simpatia assustada. As pessoas principalmente não querem me ouvir descrever como me senti naquela primeira noite (não de novo), chorando no meu carro, meu corpo contorcido pelas lágrimas até vomitar. Todas as coisas em que acreditei e apoiei porque meu pai queria, foi isso que foi demais. A última gota. Senti que essas coisas foram só uma distração e um disfarce.

A transição do meu pai também teve um custo no meu relacionamento. Na noite em que meu pai se assumiu, arrastei meu namorado para o carro e dirigi até a estrada deserta onde sempre levei minha dor de cidade pequena. Eu não conseguia parar de chorar enquanto contava a notícia a ele. Ele se sentou com os olhos turvos e bêbados do meu lado, já se afastando: eu devia procurar meus irmãos em vez dele, ele disse. Lembro que, semanas depois, percebi que ele não tinha nenhuma compreensão real da natureza fundamental da experiência transgênero. Não que ele não tenha tentado. Lembro-me das noites em que ele acordou comigo chorando e me confortou, me abraçando até dormir de novo. Mas eu não dormia de novo. Eu olhava para ele e pensava o quanto o amava, em como era improvável que nosso relacionamento recente resistisse a isso. Ele começou a se distanciar. Eu era incapaz de ser uma companheira para ele. Eu era uma ferida ambulante. Ele começou a passar mais tempo no escritório, no bar, em qualquer lugar – menos comigo, perpetuamente grudada ao meu travesseiro sujo de rímel. Ainda culpo meu pai por começar um terremoto emocional no meu relacionamento. Vejo isso como outra vítima da guerra do meu pai contra si mesma. Nunca vou ter meu primeiro amor de novo: um preço alto para um processo exigente.

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Enquanto minha vida desmoronava e a pedra angular da união da minha família se desintegrava, meus amigos desertaram também. Eles optaram pela escolha menos emocional – dramática, eles dirão – do término. Eu não sabia como lidar com a perda do meu primeiro amor, não tendo de lidar com a transição do meu pai também. Ainda não consigo. Posso te dizer que as coisas não vão bem. As pessoas começaram a mentir para não ter de lidar comigo. A conclusão ensurdecedora é que minha dor não importa. Não para as pessoas que eu achava que me amavam, e certamente não para a sociedade. Ex-amigos ainda insistem em me cumprimentar alegremente quando me veem em alguma festa, porém, meses atrás, quando eu não conseguia me manter de pé, eles negaram meus pedidos desesperados por um drinque, um abraço, uma mensagem de texto. Por fim, eu aprendia a parar de pedir. Um pequeno grupo sabendo da situação teve outras consequências. Meus limites eram frequentemente violados. O mais doloroso foram os confidentes não convidados que fingiam que compartilhei a situação com eles, quando eu não tinha compartilhado. Provavelmente um esforço bem-intencionado de empatia, mas com o peso perturbador e desorientador de saber que as pessoas discutiam isso pelas minhas costas com terceiros. Claro que discutiam. É uma dor muito grande para ser particular, mas isso não a torna pública.

Essa é uma questão com que as pessoas não querem se envolver, não de verdade. As pessoas não sabem como responder porque a ênfase dessas situações nunca é na família, mas no indivíduo, no "herói". Devo ser uma aliada incansável, simplesmente porque acham, já que ninguém conheceu as dinâmicas da minha família por quase três décadas, que essa é a única resposta adequada. Quero que meu pai seja feliz? Claro que sim. O mais breve risinho, ofensa ou olhar de soslaio para qualquer pessoa em fase de transição gera um tornado de raiva no centro do meu corpo. Quando isso se acalma, continuo ali, no meio do que ainda é um lugar solitário e devastado.

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"Não sou nada se não posso ser eu. Se não posso ser verdadeira comigo mesma, eles não significam nada."

Estamos no meio de um momento marcante para a identidade transgênero. Em 2013, Laverne Cox retratou uma mulher transgênero na série Orange Is the New Black. Essa foi uma das principais linhas do enredo na primeira temporada. Também foi a primeira vez que realmente considerei a identidade trans. Cox é uma mulher linda e forte, que admiro por sua interseccionalidade e capacidade de amar. Ela foi capa da Time no final do ano passado, sempre com a cabeça erguida. Ela é uma força do bem no mundo. Chelsea Manning é um soldado dos EUA que veio a público revelar segredos militares; depois que seu julgamento revelou sua identidade de gênero como mulher, a experiência dela destacou a relação tênue e difícil entre as pessoas LGBTT e a comunidade militar. Laura Jane Grace, da banda Against Me!, tornou sua transição pública e depois escreveu um disco poderoso sobre isso, Transgender Dysphoria Blues. Você não faz ideia de quantos héteros entusiasmados já me perguntaram se assisti a Transparent. Só para constar, não assisti. Acho ótimo que uma filha tenha compartilhado sua história, mas por que colocar um homem cis para retratar uma mulher trans? Roteiros difíceis não são tão emocionantes quando você está realmente vivendo isso.

No ano passado, o suicídio de uma adolescente trans chamada Leelah Alcorn inflamou nos EUA a discussão sobre a negação dos religiosos da existência dos transgêneros. O bilhete de suicídio de Leelah é de partir o coração, mas o pior é que essa é só mais uma vida que se perdeu pela força insidiosa do suicídio, que toma incontáveis vidas trans todo ano. Muitas mortes assim não são reportadas. Muitas dessas pessoas são sem-teto. Muitas são adolescentes. Poucas são belas como Laverne Cox e Caitlyn Jenner. Ainda temos um longo caminho pela frente.

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A capa de Jenner na Vanity Fair foi, em sua própria maneira, um triunfo. Aplaudo isso. Muitas pessoas ficam felizes em mandar tuítes positivos quando alguém com todos os recursos imagináveis se assume numa glamourosa sessão de fotos para uma revista. No entanto, a transição não são apenas tuítes de " Seja livre agora, lindo pássaro ", apesar da força que Kendal Jenner teve para escrever isso tenha me desconcertado. Transições não ocorrem num espaço de uma entrevista de duas horas ou numa capa de revista. É isso que ninguém entende. Ninguém realmente considera o preço que esconder sua verdadeira identidade pode ter num indivíduo.

A disforia de gênero se manifesta muito antes de a pessoa começar sua transição. Meu pai não estava bem. Pensamentos suicidas, depressões profundas e desordens alimentares dela assombraram minha infância. Não há espaço na capa da Vanity Fair para o abuso que sofri. Você sabe como é difícil apenas admitir a palavra "abuso"? A vergonha que isso carrega só é superada pelo meu medo de quão fundo essa palavra possa cortar. Não é fácil explicar quanto eu precisava dizer isso, a voz do que passei nas mãos desse segredo. Não preciso que você me diga quanto ficou impressionado com a beleza de Caitlyn. Não acho seus memes engraçados. Muitos desses "defensores" provavelmente ririam se me vissem na rua ao lado do meu pai. Não há espaço no mundo para o meu desgosto pelo seu apoio frágil e míope.

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Pessoalmente, ver o espetáculo da transição de Caitlyn Jenner enquanto ainda tenho de lidar com o processo do meu próprio pai é a coisa mais difícil. Meu próprio nome foi pego na correnteza dos Kardashians. Jenner e eu agora compartilhamos um nome: sou Caitlin com "i", ela é Caitlyn com "y". Outra pessoa escreveu alegremente no New York Times sobre compartilhar seu nome , mas isso tem sido uma coincidência difícil para mim. Pior do que o apoio dissimulado é um certo subconjunto de pessoas que, zombando e rindo, vai despedaçar a capa de Caitlyn da Vanity Fair, mesmo que o discurso de ódio esteja tecnicamente escondido. Quando essas pessoas dizem o nome dela, isso soa como o meu. Isso soa aos meus ouvidos como discurso de ódio contra o meu pai. Saí do trabalho mais cedo no dia em que a capa saiu num estado de quase colapso. Felizmente, tenho chefes sensíveis e preocupados que me apoiam. Tenho sorte. Aprenda. Seja gentil. É assim que você apoia pessoas transgênero e aqueles que as amam, que se magoam com digressões descuidadas e fofocas picantes. A cirurgia dessas pessoas não é manchete. Seus corpos não são piadas.

Agora que meu nome foi pego em parte da narrativa Kardashian, é difícil distinguir entre mim e eles. Saber que Kim, Khloé e Kourtney – e Kylie e Kendall, especialmente – devem sentir a mesma raiva, mágoa e confusão é um conforto. Que elas não tenham transmitido nada disso foi bom, menos para mim e outros filhos de pais transgênero. Deus abençoe Khloé por ter sido a única pessoa honesta sobre sua raiva quando Caitlyn não era cândida com elas sobre o caminho e a natureza de sua transição. Essa foi a única coisa que vi nesse episódio com que me identifiquei. Isso… e uma filmagem de Kendall encolhida no sofá: seu rosto, uma máscara impassível, olhando silenciosamente para seu pai e suas irmãs.

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Além disso, é incrivelmente reconfortante que Kanye West seja um dos maiores defensores de Caitlyn nessa narrativa. Ele é meu ser criativo favorito no planeta. É uma alegria que Kanye tenha ponderado sobre a mesma situação que estou enfrentando e tenha saído na defesa absoluta de Caitlyn, alegria essa nada parecida com o que tenho sentido até agora. Se Kanye ama Caitlyn, ele amaria meu pai. Esse amor é um contrapeso ao ódio e medo que meu pai vai encarar para o resto de sua vida. É assim que você apoia pessoas transgênero: isso forma ondas.

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"E se você se permitir chamar isso de abuso, e daí? Isso não muda nada, isso não desfaz as coisas, não te torna uma pessoa melhor ou pior – nem seu pai."

O que vai acontecer se eu falar? Minha raiva e meu luto serão meu pecado? Tenho todo direito de amar essa pessoa e sofrer com a vaporização do meu pai ao mesmo tempo. Posso enfrentar o abuso que sofri sem vilificar uma nova mulher. Há camadas de mágoa que a saga Jenner-Kardashian não tenta capturar. Enfurece-me que alguém não queira dar a privacidade que os outros filhos de Jenner precisam para lidar com essa questão. Talvez minha dor não funcione pelo melhor interesse da causa. Em alguns dias, estou exausta demais para me importar com a causa.

Preciso de um meio para dizer ao meu pai que a amo, mas coisas têm de mudar além do gênero para que essa relação seja reparada. Tudo não é diferente imediatamente. Ela tem um novo nome, novo cabelo, mas os mesmos padrões existem embaixo das novas roupas. A queda da máscara me permitiu ver a máscara e a psique atrás disso.

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Meu pai está fazendo a transição, e eu estou tentando lidar com décadas de abuso emocional e físico gerado pela depressão severa e disforia enterradas nele. Isso é mais difícil de se lidar do que qualquer conceito de gênero. Os padrões abusivos dela se desenvolveram muito antes que eu nascesse, quando sua própria mãe a menosprezou e destruiu sua saúde emocional, ainda lamentando a perda de um filho que veio antes dessa criança. Tudo bem que eu esteja sofrendo para aceitar a nova identidade do meu pai, especialmente porque sua própria luta contra isso me feriu a vida inteira.

Através de tudo isso, presenciei explosões do ser humano que ela queria ser (pura, sensível e até compreensível), mas apenas dentro de alguns parâmetros. A imaginação dela é infinita, sua alegria pode ser infecciosa e sua compaixão pelos outros pode ser chocante. Mas tudo isso pode se transformar em raiva e ódio muito rápido. É difícil se sentir segura perto de uma pessoa assim. É difícil se curar perto de uma pessoa assim. Não nos falamos há meses, porém isso não quer dizer que não ame meu pai. Transgêneros não estão fazendo uma escolha. Vi essa pessoa lutar por décadas para ser feliz. Tenho visto-a relutar diante de seu fracasso em fazê-lo, uma parte desnorteada e uma parte simplesmente cansada de tentar. Agora, finalmente, eu a vejo. Ela parece feliz.

Apoiar as pessoas transgênero na sua vida não quer dizer fingir que elas são seres perfeitos e sem falhas.

Minha mãe pediu que eu escrevesse esse ensaio anonimamente ou que não escrevesse. Mas não sou anônima. Sou Caitlin. Tenho vivido com uma dor anônima por dois anos. Ela diz que isso não é problema dos outros. Mas pode não ser assim: o clima político atual nos EUA é de revolução volátil na maneira como as pessoas transgênero são representadas na sociedade. Hoje, estou me assumindo também: meu pai está vivendo abertamente como uma mulher transgênero. Quero viver abertamente como a filha dela. Isso não é algo de que tenho vergonha ou que seja um segredo. Estou cansada de ouvir opiniões desrespeitosas e ignorantes e não dizer nada. Quero que as pessoas saibam que esse assunto carrega uma urgência específica para mim. Tenho orgulho de ser parte de uma comunidade maior de defensores e aliados dos trans, mesmo ainda lutando com a maneira como essas coisas podem se manifestar. Se ninguém falar sobre essa experiência, incluindo os próprios transgêneros ou suas famílias, como outros vão aprender? É problema de todos se educarem e fazerem essa conversa acontecer num nível nacional e global.

Apoiar a pessoa transgênero na sua vida não significa fingir que ela é perfeita e sem falhas. Ela não é um herói ou um anjo. Ela é um ser humano. A perda total da experiência – uma infância ou uma vida inteira enquanto ela afirmava uma identidade de gênero – é triste para o transgênero. Muitos tentam negar sua verdadeira experiência ou qualquer existência. Eles são comprimidos e coagidos em conchas frágeis de experiências que não querem incorporar. Ninguém entende como é ser magoada por essa pessoa, ser devastada pela sua própria perda e ainda desejar que você tivesse a capacidade de dar a ela tudo que ela quer. Vejo agora que a maioria das decisões que meu pai tomou como pai eram guiadas pelo medo. Agora que sei que a raiz desse terror era ser descoberto ou se descobrir, não me sinto tão traída. Posso redirecionar parte da minha raiva para o mundo que a fez sentir que precisava se esconder. Vejo histórias de crianças de cinco anos que podem abraçar suas verdadeiras identidades de gênero e fico triste pela garotinha que meu pai nunca poderá ser.

Choro por todos os vestidos, as maquiagens e as joias que meu pai perdeu nessa metade de século na Terra. Aí choro porque percebo que nunca mais vou ver meu pai de novo nas calças e camisas que eu cuidadosamente ajudava a escolher na loja. Mas, às vezes, rio com tristeza quando penso que meu pai sempre gostou de fazer compras mais que qualquer um na nossa família. Se você não puder achar humor numa situação como essa, você não vai conseguir sobreviver a isso. Os momentos em que consigo rir do absurdo do gênero como um conceito em si são os melhores – os momentos quando eu queria dar uma festa para ela em vez de ter de lidar com a dor. Esses momentos são pontos na escuridão da minha perda – estrelas desoladas –, mas estão lá. Eles existem. É exatamente assim que o luto funciona. É exatamente assim que a cura e a vida funcionam. Tudo é escuridão – e, então, uma pequena alegria emerge do nada, quando você achou que seria impossível.

***

"Amar pessoas transgênero é um ato revolucionário."

Estou escrevendo isso porque não achei nada assim antes. Estou escrevendo algo que não existiu para mim. Essa é a coisa mais difícil que já escrevi. Para aqueles lendo isso que estejam em uma circunstância similar, saibam isso: mesmo que pareça que ninguém te apoia, te entende ou quer ouvir você como um ser humano válido e único, você pode superar isso. Pelo menos tenho de continuar acreditando que você pode. Mesmo que signifique perder pessoas que você ama pelo caminho. Este é um ensaio para dizer que seu segredo estranho e horrível é bom e válido. Este é um ensaio para aqueles que me convenceram desse fato – aqueles que se recusaram a parar de me amar, não importando quão longe na escuridão e na destruição minha dor me levasse. Aqui está um ensaio para agradecer àqueles que me abraçaram enquanto eu chorava por um homem que não pôde – ou não era maduro o suficiente – me abraçar quando eu passava por isso. Para a pessoa que me olhou nos olhos e falou que eu precisava me recompor e arrumar meu apartamento para o meu próprio bem. Ou para a pessoa que fez meu jantar uma vez por semana e ouviu sobre a minha dor, bem quando eu não podia mais suportar isso sozinha. Isso é para o meu amigo que me fez sentir corajosa e apoiada o suficiente para publicar meus pensamentos em outro lugar além do Tumblr. Para minha irmã, que carregou o segredo do meu pai e a apoiou muitos meses antes que eu soubesse, e que é a mulher mais forte que conheço. Para o meu irmão, que provou que homens bons existem. E até para ela, meu pai, que amo apesar de tudo – mesmo que você nunca tenha sido perfeita.

Se você sente que não existe mais ninguém, isso não é verdade. Aqueles que não te apoiarem na transição, exploração de gênero, recuperação do abuso ou terapia são a única coisa que não vale a pena ter na sua vida. Sua vida é válida. Sua vida é preciosa e rara. Essa experiência vai te ensinar coisas profundas sobre o mundo que outros nunca vão conhecer – é aí que mora a beleza. Você não precisa se esconder. Mesmo quando enfrentar negatividade e medo, sua liberdade vai te fazer sentir mais poderosa do que qualquer perseguição. Você pode continuar de pé. Vou estar ao seu lado. Compaixão vai te encontrar, talvez possamos encontrar isso juntas. Continue em frente. Gênero é uma construção social, e construções sociais caem. Sempre caíram. Sua alegria, não. Em todos os seus vários estados e em suas tentativas não belas de felicidade, você é bonita para mim. Precisei de tudo para escrever isso. Pegue seu tudo e escreva mais.

Se minha voz existe, então a sua existe também.

Caitlin White é uma escritora que vive no Brooklyn, Nova York. Siga-a no Twitter.

Obrigada a Natalie, Zach, Alex e Tyler, Mary von Aue, Claire Lobenfeld, Lauren Nostro, Andriana Albert, Flora Theden, Nitsuh Abebe, Deanie Mapel, Eric Ditzian, Dan Montalto, Jia Tolentino, Scott Lapatine, Michael Nelson, Gabriela Tully Claymore, pai, mãe, e Drew Millard.

Tradução: Marina Schnoor