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Fui ao G20 e Tudo o que Ganhei Foi essa Camiseta Ensanguentada - Ah, e Fui Preso sem Motivo

Semana passada aconteceu o Dia do Canadá (ou, como as pessoas no Quebec chamam, quinta-feira) - o que é meio que a nossa versão do 4 de Julho norte-americano, só que com melhores modos e roupas estampadas com folhas de carvalho.
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Por Chloe

Semana passada aconteceu o Dia do Canadá (ou, como as pessoas no Quebec chamam, quinta-feira) – o que é meio que a nossa versão do 4 de Julho norte-americano, só que com melhores modos e roupas estampadas com folhas de carvalho. Enquanto vários canadenses vestiram orgulhosamente seus gorros e correram para liquidações, no dia 1º cerca de mil pessoas que foram detidas no último final de semana durante a cúpula do G20 em Toronto, além de seus defensores e especialistas em leis constitucionais, ficaram mordidos com o que consideraram privação daquilo que acreditam serem seus direitos civis básicos nessa terra, como o de poder se reunir em público. Conversei com nosso colega Nick Marian, que foi um dos presos, sobre suas experiências de ser trancafiado pelo, segundo ele, hediondo crime de “sangrar na bota de um oficial” depois de ter a cara arrebentada por chutes.

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Vice: Oi Nick, tudo bem?
NM: Estou bem, acho. Beleza.

Ouvi dizer que você foi preso.
É. Parece que fui detido por atacar um policial. Levei uma surra por ter uma câmera, e acho que a acusação de agressão veio de quando eu estava sangrando nas botas dele. Foi assim que me prenderam.

Em qual dia você foi preso?
No sábado, dia 26, lá pelas 10h45 da noite. Estávamos na Cameron com a Queen, a oeste de Spadina. Estive lá o dia inteiro, só tirando fotos e observando. Não estava protestando nem nada. Não estava gritando. Fiquei completamente calmo o dia inteiro. Só queria ver o que estava acontecendo e documentar tudo por razões pessoais. Estou longe de ser um anarquista ou manifestante, sou só um fotógrafo. Hoje em dia, num país como o Canadá, isso  é considerado um ato terrorista.

O que estava rolando na Queen com a Spadina naquela hora? Já tinha muita gente por lá?
Naquela hora tinha uma pequena multidão por lá, talvez umas 200 pessoas ou menos, que se dispersaram porque a tropa de choque estava se movendo aos poucos para o leste, seguindo para a Queen Street tentando se livrar da multidão. As pessoas estavam começando a ir pra casa, como se fosse uma manifestação pacífica. Os policiais diziam: “Vão embora. Não tem mais nada aqui pra se ver". Meu amigo Dylan e eu estávamos apenas tirando fotos, bem próximos à tropa de choque, mas não querendo ser uma ameaça ou nada do tipo. Não lembro disso, mas meu amigo Rich disse que havia oficiais à paisana misturados entre nós, falando pra que chegássemos mais perto, tentando incitar a gente. Falavam coisas do tipo: “vamos lá, vamos entrar logo. Vamos chegar mais perto e ver o que podemos fazer com eles”.  Parece que esses foram os caras que levaram eu e o Dylan.

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É, eu fiquei o dia todo ontem assistindo a uma filmagem de uma policial assustadora. Caramba.
Não me dei conta deles porque me atacaram por trás, mas meu amigo Rich disse que eles vestiam camisas brancas, jeans, enfim… Não estavam usando coletes nem nada. Pareciam pessoas normais. Eles nos atacaram por trás e nos amarraram, e aí os policias da tropa socaram o Dylan na cara. Eu fui derrubado e algemado, mas tenho uma noção bem vaga do que aconteceu depois porque levei um chute na cabeça.

Ai!
O Dylan disse que os policiais começaram a chutar minha cara e meus braços. Então agora dói bastante aqui (aponta para a parte superior do tronco e ombros), mas ainda não começou a ficar roxo. Mas sim, o Dylan disse que com certeza eles estavam me chutando bastante e me arrastando. Foi quando fizeram esse corte no meu nariz, que não é muito grande, mas tipo estava sangrando bagarai, e também aqui (aponta para a têmpora direita). Não lembro disso por causa dos chutes na cabeça, então minha memória ficou meio embaçada.

Não me diga.
Então eles nos puseram no chão e nos trataram muito mal, nos acusando de sermos anarquistas. Eu tenho um broche na minha mochila de uma casquinha de sorvete com um sorriso na cara, tipo, a coisa mais gay, só um broche idiota porque acho engraçado, mas os policiais disseram: “olha essa porra de broche anarquista. Aposto que foi você que botou fogo nessas viaturas” [se referindo às viaturas supostamente plantadas por lá e que pegaram fogo mais cedo na Bay Street]. Tipo, uma casquinha de sorvete com um sorrindo. É completamente inacreditável. Era esse o tipo de coisa que estava rolando, desrespeito completo por qualquer pessoa.

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Fueda…
Eram mais ou menos 10h45, e acho que fiquei no chão por um tempo. Ah, e tem uma filmagem comigo no chão sangrando.

Uma rede de notícias local, CP24, passou sua imagem na TV, certo?
É, eles estavam bem atrás de mim. Ouvi aqueles caras sendo presos também. De qualquer jeito, era por volta das 23h quando eles pegaram meus pertences e lacraram tudo num saco. Quando peguei tudo de volta, dizia no saco a hora que ele tinha sido lacrado: 23h.

O que você consegue lembrar dos momentos que o levaram à ser preso? Tinha muita gente sendo presa àquela altura?
Não, eram sempre prisões individuais. Dylan e eu fomos presos na mesma hora, acho que foi porque estávamos juntos. Ficamos no camburão por um bom tempo. Era difícil julgar, naquela altura, quanto tempo se passou antes de chegarmos ao Centro de Detenção Eastern Ave. Quando finalmente chegamos, me levaram direto para a tenda médica e me deram um tratamento mínimo. Disseram: “seu nariz não está quebrado, mas você tem uma leve concussão”. Estava completamente delirante, mas ouvi alguém dizer “só tira o sangue da cara dele”, porque tinha sangue no rosto todo. Esse foi, basicamente, o tratamento médico. Ah, e me deram alguns Advils.

Seu nariz parece bem inchado pra mim. Parece que seu olho está ficando roxo também.
É, tá muito inchado e dói um pouco, e estava sangrando muito na minha camiseta, como dá pra ver aqui.

Esses policiais estavam lá dentro?
Eram da polícia judiciária.

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Eu já ouvi algumas coisas ruins sobre eles.
Eles são terríveis. Lembro do nome de um oficial: Egerton. É o único que eu me recordo porque estava quebrado, então não conseguiria lembrar de nada muito específico. Mas lembro dele rindo de nós, e nos chamando de punks e bichas, e comendo na nossa frente…

Insultando vocês…
Total, ao ponto de a gente querer matar ele. Um dos caras até gritou: “se eu encontrar você de novo na rua algum dia, vou acabar com a sua raça”. Presumo que eles estavam tentando nos deixar putos da vida. Trouxeram a gente para a área de detenção principal, como a área de desembarque e, se lembro bem, haviam quatro celas grandes lotadas de gente. Levaram a gente pra lá e nos algemaram nas celas, como se a gente fosse fazer alguma coisa lá dentro. A maioria dos caras da minha cela foi presa em Novotel (o maior hotel do centro, no qual a delegação francesa ficou hospedada durante a cúpula). Todos eles disseram que estavam sentados no chão, com as mãos levantadas fazendo sinais de paz, mas eles avançaram. E essa foi a maior prisão naquela altura. Eles disseram que alguns até foram espancados. Um dos caras tinha um olho roxo.

Como eram as celas?
Me senti como uma porra de um cachorro num canil, como um prisioneiro de guerra – e acho que era isso o que éramos. É, tinha umas luzes enormes de halogênio zumbindo a noite toda na nossa cela. Entrando na cela, se você abrisse a porta, à esquerda, havia um banco pequeno para quatro pessoas e um banheiro sem porta, o que acho que é o comum das prisões. O chão era de concreto, e a cela principal onde eu estava era empoeirada. Acho que era da pintura antiga, que estava descascando, e todas as nossas roupas ficaram cobertas de poeira porque todos os trinta ou quarenta de nós sentávamos no chão. Também era um frio de rachar lá, como se o ar condicionado estivesse bombando. As pessoas tremiam.

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O que as pessoas faziam pra se ocupar?
Ficávamos sentados. A maioria de nós estava muito cansada, desmoralizada e espancada. Tinha gente desmaiando por todos os lados por causa de desidratação. Outra coisa que percebi foi que todos os guardas ou carcereiros podiam escolher se colocavam ou não os nomes nos uniformes, porque um monte deles não tinha as etiquetas em velcro nos coletes à prova de bala. Seus números de identificação também, ficavam escondidos sob os ombros. Alguns desses caras eram bem maus, e conseguiam ser imbecis, só que anônimos. Muitos dos policiais da tropa de choque que me bateram não tinham distintivos com números. Nada. E, se me lembro corretamente, era da Polícia Regional de York quem me espancou.

Certo. Não era só a polícia de Toronto que agia na segurança durante o fim de semana do G20, era uma força indefinida composta por oficiais de todos os cantos do país.
Quanto mais eu ouço as histórias das pessoas do que aconteceu lá, mais enojado fico pelo modo como as pessoas foram tratadas, gente como eu e Dylan. Claro que os policiais prenderam alguns malfeitores – seria ingenuidade da minha parte dizer que não. Mas acredito que mais ou menos 90% das pessoas lá eram definitivamente inocentes. E teve muito mais do que as 900 pessoas que foram registrados com presas.

No que você acha que vai dar tudo isso, com todos esses inquéritos públicos que estão começando?
Alguém vai se ferrar por isso. Alguém tem que ser responsável. Estão dizendo que ninguém foi espancado lá dentro, o que é mentira. O Dylan foi agredido com uma lista telefônica lá.

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Puta merda! Bateram nele com uma lista telefônica?
Ele foi amarrado, puseram a lista na costela deles e bateram com um cassetete. Agora ele tem um roxo na forma de uma linha da lombada da lista telefônica. Acho que ele estava perguntando se eu estava OK ou algo do tipo. Dizia coisas como: “Preciso ver meu amigo. Ele está bem?”. Uma hora o Dylan me viu sendo arrastado pelos corredores completamente inconsciente e sangrando. Disseram que o Dylan estava sendo arruaceiro, então o levaram para a solitária e bateram nele.

E depois que bateram nele, eles o jogaram na cela com todo o resto?
É. No início, quando estávamos lá, era meio que uma piada: não conseguíamos acreditar no que estava rolando. Achamos que iríamos ficar por lá por talvez três, quatro horas. Seríamos processados, acusados, o dia do nosso julgamento marcado e poderíamos sair. Fácil. Mas foram vinte e quatro horas e trinta minutos, sem advogado, nenhuma resposta e algemado. E é triste, tipo, eu nem fiquei tão mal. Depois ouvi falar de gente acorrentada com seus braços pra cima, com as juntas todas zoadas porque tiveram que ficar de pé por 15 horas. As pessoas foram torturadas lá, tá ligado? Escutei tantas histórias que estão sendo divulgadas agora, quando todos estão sendo soltos. Tem relatos de que eles não estavam nem dando absorventes para as mulheres, estavam negando tudo a todos, inclusive ligações telefônicas, comida e água.

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Depois de ficar preso por vinte e quatro horas, e finalmente ser solto, o que disseram pra você na saída?
Disseram que eu estava sendo acusado de desordem pública. Acho que inventaram isso porque perderam minha ficha. A uma certa altura eles não tinham a menor ideia de quem eu era. Mesmo que estivesse sendo acusado de agressão por sangrar na bota de um policial, acabaram me acusando só de desordem pública.

Então acabaram acusando você de algo?
Não é uma acusação real, é só uma acusação “prender pra soltar”.

Você já tem a data do seu julgamento marcada?
Não. Basicamente o que vai acontecer é que se eu tivesse sido preso em alguma manifestação que tivesse a ver com o G20, então seria acusado. Foi o que me disseram.

O que aconteceu quando finalmente te soltaram? Te acompanharam até sua casa?
Minha mãe estava lá pra me buscar. Na verdade ela descobriu que eu estava na prisão por causa da minha ex-namorada, que vive em Nova York. Não tenho certeza quem contou pra ela, mas ela ligou pra minha mãe e contou que eu estava lá. Minha mãe foi direto pra lá e ficou me esperando. A solidariedade da cadeia ainda rolava essa hora, e na hora que fui solto me deram uma toalha porque estava encharcado da chuva. Me limparam, me deram uma barra de cereal e uma caixinha de suco e disseram “qualquer coisa que você precisar, é só avisar. Cigarros, qualquer coisa…”. São pessoas muito corajosas de sentar lá e nos ajudar por sermos detentos completamente inocentes.

Então foi sua mãe que te levou pra casa?
É. Fui pra casa do meu pai e tomei um copo gigante de tequila.

Ia mesmo perguntar se você bebeu algum drinque depois disso tudo.
Com certeza. Comi um prato do bolo de carne que meu pai tinha acabado de fazer e tequila com coca-cola, o que é nojento, mas não tinha outra coisa pra beber.

Você vai tomar alguma atitude legal pelo jeito que você foi tratado?
Parece quem um advogado viu o eu e o Dylan sendo espancados na TV e ficou esperando fora do centro de detenção quando o Dylan saiu, e disse: “vi você na TV. Pegue meu número”. Ele ligou pro Dylan ontem e quer marcar uma reunião.

Então você vai participar desse processo?
Com certeza. Vou fazer o que puder, assim como um monte de gente. Enquanto estive lá, havia um observador legal que se chamava Jeff e estava lá pra ficar de olho na solidariedade fora do centro. A mesma situação que a minha, completamente não violento, e foi preso e detido sem motivo algum. Ele tinha LEGAL escrito no chapeu, e falava: “Sou um observador legal, não um manifestante”. Como você pode prender uma pessoa dessas? Como você pode prender um fotógrafo? Como você pode prender a imprensa?

Acho que o público quer saber as respostas para essas perguntas.
Alguém vai ter que pagar por isso, e eu vou lutar por isso por quanto tempo conseguir. Um monte de gente sabe da minha história. Estou no noticiário, porra, tendo minha cara chutada por policiais. Isso é completamente horrível, e está acontecendo na nossa cidade, no nosso país. Grande Canadá: o país da paz.