FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Estou Preocupado com Minha Ansiedade

O romancista e memorialista Clancy Martin é um membro vital da comunidade filosófica contemporânea.

O alter-ego drag queen de Sisyphus, a Sissy Fuss, desenho por Jim Krewson.

Friedrich Nietzsche, que, devido a um desses infelizes acidentes históricos, enlouqueceu alguns meses antes de iniciar o seu estudo de Kierkegaard, dizia que a nossa necessidade deser algo diferente do que somos—aquela sensação, tão familiar para todos nós, de que somos inadequados, que devemos de alguma forma nos justificar, que temos um propósito não cumprido que nos trará alívio assim que realizado—é meramente a expressão da frustração de nossa inclinação de sermos crueis. De forma resumida, funciona assim: antes de nos unirmos em grandes sociedades, podíamos satisfazer a nossa inclinação de ser cruel—que é como a necessidade de fazer sexo, de comer, de ter amigos ou qualquer outra necessidade natural—expressando essa inclinação através de membros de outros grupos. Havia batalhas, “festivais de crueldade” como ele as chama, até mesmo rituais e manifestações de crueldade (pense, por exemplo, nos festivais de tortura pública e os autos-de-fé da Idade Média e da Inquisição Espanhola). Mas à medida que se torna difícil expressarmos nossa tendência e exercer a crueldade sobre os outros, a necessidade não desaparece, em vez disso, ela se volta contra si mesma e inflige dor na mente do indivíduo que tem essa tendência. Essa dor—que é chamada de consciência pesada e de culpa, e que de acordo com Nietzsche é formalizada no mito do pecado original—é a sua mente atacando a si mesma, expressando internamente a inclinação à crueldade porque não encontra expressão externa. Então, por exemplo, George W. Bush talvez tenha se divertido bastante arrancando asas de moscas e explodindo sapos com fogos de artifício quando era criança, mas então se meteu numa encrenca por isso e sua inclinação foi reprimida—apesar de ele talvez não ser o melhor exemplo, já que parece que encontrou outras formas de aliviar essa agressividade reprimida na vida adulta. Agora começamos a nos preocupar. E não é uma preocupação qualquer, como quando me preocupo com o fato de minha conta bancária estar secando, e transfiro uma grana da poupança, e a preocupação desaparece. É aquela preocupação intensa que se transfere de uma coisa a outra—quando paro de me preocupar com dinheiro, começo a me preocupar com a minha vida amorosa, mas não, não é isso, é a minha carreira, é o meu trabalho, ainda assim, também não é isso, são os meus amigos, eles parecem me excluir… Você sabe como funciona. A mente gira. Se o giro acelera, o resultado é um sentimento de vertigem, como se você estivesse olhando para o fundo de um abismo, e o abismo fossevocê. Um amigo me perguntou recentemente: “Ei, Clancy, você parece meio abatido. Aquele monólogo interior está te deixando maluco hoje?”. Então: a droga Miltown—que ficou famosa como “o pequeno ajudante da mamãe”, o apelido que os Rolling Stones lhe deram—, depois Librium, Valium, Klonopin, Ativan. E ainda os ISRSs (Inibidores Específicos da Recaptação da Serotonina): Prozac, Zoloft, Celexa, é só escolher. Cordas que nos impedem de cair no abismo, ou paraquedas que nos levam com segurança até o fundo, ou vendas que nos impedem de enxergá-lo. Não me leve a mal, não estou defendendo a infelicidade ou criticando os remédios para tratamento de depressão, na verdade, estou tentando entender se e por que a ansiedade é apenas algo a ser evitado (parece que sim, segundo a visão de Nietzsche), ou se há algo de bom nela, se nos diz algo importante a respeito de nós mesmos. Nietzsche, para ser justos, ofereceu uma saída para a dor da ansiedade: em seu último livro, a obra-primaEcce Homo, ele nos ensina como “se tornar o que você é”. Você deve reconhecer que não tem nenhum propósito maior, você não deve ser diferente do que é, você deve aceitar até mesmo o sofrimento—na verdade, você deve aceitar toda a vida, você deve aceitar o sofrimento tanto quanto aceita o prazer, você deve aceitar o fracasso com o mesmo entusiasmo com que aceita a vitória—e então você poderá viver a melhor vida humana possível. Isso pode soar como mais um “indo do ponto A ao ponto B”—um propósito disfarçado de ausência de propósito. Mas para Nietzsche, você já é essa pessoa: você só tem que aceitar esse fato. Você não será outra pessoa amanhã. Nem deveria ser. Você é tudo que deveria ser, e isso acontece agora. É uma ideia difícil de assimilar. Albert Camus, o melhor amigo e depois melhor inimigo de Jean-Paul Sartre, tentou explicar isso em sua discussão do mito de Sísifo. Imagine o pobre Sísifo, ele diz, condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma rocha montanha acima—escorregando na lama e em pedregulhos, quase quebrando a coluna com o esforço, todos os seus músculos estremecendo—só para ver, quando atinge o topo, a rocha rolar montanha abaixo mais uma vez. O que Sísifo pensa enquanto desce de volta ao vale? Esse é seu propósito—mas é um propósito sem propósito, um esforço sem nenhum sentido—e ele o fará por toda a eternidade. A vida humana também é assim, diz Camus, e por anos, séculos talvez, Sísifo viverá angustiado, ele está frustrado, ele teme o momento em que a rocha rolará mais uma vez montanha abaixo. Mas no fim ele vence os deuses. Como? Ao reconhecer que não existe nada além desse esforço. Ele pode empurrar a rocha montanha acima pelos deuses ou por ele mesmo. Quando ele diz “Euvou empurrar essa rocha”, sua ansiedade desaparece. Ele não teme a tarefa porque a escolheu. Ele não procura nenhum sentido por trás da tarefa, porque aceita o fato de que não existe um sentido. Talvez Sartre tenha atingido esse ponto, e por isso não sentia ansiedade, ou talvez ele estivesse sob o efeito de tantas drogas que nem notava (Kierkegaard achava que a pior coisa para um ser humano era deixar de vivenciar a ansiedade, porque isso significaria deixar de vivenciar a si próprio—mas acho válido se perguntar se queremos vivenciá-la). Então o que o existencialista me diz sobre o meu sonho? Ele me diz que enquanto eu estiver me permitindo ser minha própria vítima—enquanto eu interpretar a minha preocupação como um propósito não realizado, como algo errado em mim ou na minha vida (enquanto eu for induzido, talvez Nietzsche dissesse, a ir na direção errada pela dor de meus desejos frustrados)—continuarei a ter os meus suores noturnos. A melhor maneira de dar sentido à vida é reconhecer que sou completamente responsável por ela: responsável não por alguma outra vida que eu deveria viver, mas pela vida que estou vivendo agora, em que eu escolho estar onde estou, ser o que sou, quem eu sou. “A ansiedade é a possibilidade da liberdade”, escreveu Kierkegaard em 1844, em OConceito de Ansiedade. Para ele, a dor mental que Nietzsche identificou é um lembrete de que somos nós que estamos no banco do motorista. A ansiedade, então, não é reflexo de nossa inadequação, mas a resposta automática aos nossos esforços mal direcionados, autodestrutivos e logicamente malditos de sermos algo diferente daquilo que somos. Nos sentimos inadequados porque não temos certeza se estamos à altura da tarefa—quando a tarefa já foi realizada, sempre é realizada por cada um de nós. Então será que devo me sentar em meio a um turbilhão de preocupações? Ou tenho o que é necessário para ser livre? O que é somente outra forma de dizer: tenho o que é necessário para ser eu mesmo?