Games não são arte
Everybody's Gone to the Rapture. Imagem: The Chinese Room/Divulgação

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Games

Games não são arte

Essa palavra não serve mais para nada.

Este texto foi publicado originalmente no blog da autora e editado para melhor compreensão.

Durante as duas últimas décadas, pessoas de todos os setores desta grande indústria que chamamos de jogos (ou videogames, ou joguinhos) têm se perguntado: "jogos são arte?". Essas perguntas são, geralmente, seguidas por um auto-respondido "sim" em alto e bom som.

Eu educadamente discordo.

Arte

Arte começa com o desejo humano de tornar as coisas mais bonitas. Alguns acreditam que a arte surgiu da necessidade de relatar eventos passados, outros acreditam que era uma maneira de criticar seu mundo e outro ainda defendem que era uma maneira de tornar visível um mundo diferente. Essas são todas ótimas razões para se fazer arte, mas, no seu âmago, a arte ainda era sobre uma nova maneira de ver algo como mais bonito.

Talvez possamos chegar ao ponto de dizer que a arte deveria fazer com que você sinta algo, seja por sua beleza, crítica, fantasia ou qualquer outra coisa. Eu mesma fui ensinada a acreditar que a arte deveria ser algo que te muda, que te faz sentir ou pensar algo que antes nem passava pela sua cabeça. Te faz enxergar uma nova perspectiva que, se não fosse pela arte, você não veria.

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Mas de onde partimos para entender arte, na real, não interessa. Escolha sua favorita, porque todas essas definições diferentes convergem em tantos aspectos que não faz diferença alguma em qual você está botando suas fichas. Nós vamos destruir a arte então não importa muito o que ela deveria ser.

Houve épocas em que a sociedade permitiu que a arte florescesse como algo belo, e em outros momentos, era considerada pecaminosa e proibida. De qualquer forma, quando a sociedade começou a ficar realmente boa em arte, ela também criou um monte de regras definindo o que era a arte. Ou, pelo menos, a boa arte. Uma dessas épocas foi o Renascimento, quando a arte ocidental realmente se reinventou e se deu o início do novo período clássico.

Durante o Renascimento e nos séculos que o seguem, fica bem claro como definem o que é ou não é arte. Durante esses tempos, existiam sindicatos ou guildas de pintores e escultores (não estou falando desse jogo) que definia os limites da arte, o que podia e não podia ser. Havia, literalmente, um grupo de pessoas criando regras: quais tipos de motivos poderiam ser usados em pinturas, quantas roupas podiam ser usadas e quais objetos poderiam estar na cena.

O ápice do poder desta instituição foi no século XIX, quando a Academia de Belas Artes teve o poder de determinar até quais artistas poderiam ser exibidos ou não, e quais obras entrariam nas galerias naquele ano. Isso levou a um período de criações muito homogêneas, que levou a um movimento de arte chamado de Academicismo, ou simplesmente Arte Acadêmica.

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A arte clássica também poderia ser metalinguística, desde que seguisse as regras da academia. Imagem: 'Aula com Modelo na Academia de Copenhague', por Wilhelm Bendz, 1826.

Durante este período tão ditatorial pra arte, alguns inconformistas loucos decidiram não seguir as regras da academia, iniciando um movimento que hoje conhecemos como modernismo, ou arte moderna.

Quando a expressão arte moderna é mencionada, existe a tendência na mente da maioria de imaginar alguma obra cubista ou abstrata. Isso também é arte moderna, mas não foi assim que ela começou.

Foi assim que essa piração toda começou. Imagem: 'Olympia', de Manet, 1856.

Arte moderna

Olympia, de Manet, causou furor na sociedade da época. Com os nossos olhos dessensibilizados pelo pornô ininterrupto de PornHub e do zapzap, talvez seja difícil de entender hoje o motivo de tanto escândalo, mas o que chocou o mundo de 1856 foi justamente a nudez de Olympia na pintura.

Havia muitos nus nas pinturas, antes, durante e depois deste período. Mas estes nus eram colocados, (des)vestidos e contextualizados como míticos, fantásticos ou bíblicos, e esses eram os único tipos de nus permitidos. A nudez era muito bem vinda desde que fosse entre pessoas de mentirinha e não as reais.

No entanto, podemos ver que Olympia está usando uma gargantilha e sandálias, cujos modelos estavam em moda na época. Logo, não poderia ser uma peça histórica ou mitológica. E se ainda houvesse qualquer sinal de dúvida, a governanta inteiramente vestida atrás dela dá o ponto final de que Olympia não era uma personagem de ficção.

Ela era uma pessoa. Daquele período. Em um nu frontal.

A nudez mitológica era permitida desde o século XIV e, neste caso em particular, vemos divindades romanas com poucas roupas. Do Renascimento a Manet, a arte se esforçou para retratar a beleza. Os tempos mudaram e a estética mudou com eles, mas o objetivo principal ainda era beleza. Imagem: 'Primavera', de Botticelli, 1482.

Mas sua nudez não fictícia não era a parte mais ultrajante de Olympia. Era a expressão facial dela, os olhos desafiantes de Olympia. Ela não está nada envergonhada de sua nudez, como se ela estivesse cagando pra você. Ela parece estar te desafiando a olhar para ela, a testemunhar sua nudez, e ela não se importa se você gosta disso.

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Esse tipo de confiança e a auto-propriedade só era socialmente permitida em um tipo muito específico de mulher naquele momento: prostitutas.

Prostitutas

Não me leve a mal, a arte tinha uma parcela nada modesta de prostitutas em seu meio. A grande maioria dos modelos eram profissionais do sexo. Feminino e masculino. A arte era quase uma orgia. Mas essa era a parte privada da arte, um lado com o qual o público não tinha contato. Eles viam belas pinturas na parede e não davam a mínima com qual era o trabalho em tempo integral das pessoas na parede, desde que não dessem pinta de que mexiam com sexo também.

Por isso Olympia era tão ultrajante. O quadro lembrava às pessoas ricas que prostitutas não só existiam como pessoas de carne e osso, mas também as apresentava como arte. Como bela arte. Como algo a ser admirado e não digno de pena ou excluído. E isso foi ofensivo pra sociedade ocidental no século XIX.

Durante muito tempo, a arte era principalmente uma ferramenta de embelezamento. Claro, alguns Velasquez aqui e ali apareciam para zombar a família real espanhola na cara deles, mas isso era feito atrás das cortinas. Era um ardil sutil a ser percebido apenas por alguns.

Foi só depois que Manet fez uma declaração pública, um ataque à arte acadêmica (e a sociedade como um todo), que a arte começou lentamente a mudar e a questionar suas próprias barreiras e até mesmo o seu significado. Olympia trouxe alguns questionamentos, como nos limites da nudez, mas as coisas aumentaram de proporção ao longo dos anos à medida que mais e mais artistas começaram a fazer novas questões. O que as pinturas podem retratar e não representar? Por que as pinturas não podem ser cada vez menos reais? Por que não podemos apenas torná-los abstratos?

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Arte moderna

Precisamos de sombreamento e luz? Não podemos usar linhas para contornar objetos em vez de tentar copiar como a luz funciona? Ainda é possível distinguir esses objetos fazendo isso? Imagem: 'Quarto em Arles', de Van Gogh, 1888.

Precisamos mesmo imitar as sombras que nossos olhos vêem? Imagem: 'L'air du Soir', de Henri-Edmond Cross, 1893.

Precisamos mesmo seguir formas anatômicas? Não podemos transmitir significados de forma diferente? Não podemos dar a cada superfície na pintura referir-se a tempos diferentes? Imagem: 'Les Demoiselles d'Avignon', de Pablo Picasso, 1907.

Precisamos até mesmo representar coisas? Imagem: 'Tableau I', de Piet Mondrian, 1921.

Esses exemplos foram dados em ordem cronológica e, embora não representem toda a explosão de variedade em experiências que aconteceram durante esses anos, eles certamente podem te dar uma boa amostra. Os artistas estavam aos poucos, mas sempre, questionando o que a arte significava e o que a arte poderia ser, a cada ano um passo mais longe. Eles não se conformavam com o establishment do realismo e por isso estavam sempre procurando por suposições sobre arte que poderiam ser quebradas. Era selvagem, era lindo. Era arte.

Esta transformação sobre o significado da arte abrange o final do século XIX e início do século XX, os primeiros dias da arte moderna. Neste período, quase todos os pressupostos sobre os conteúdos nos objetos assumidos como artísticos foram questionados e alterados. No entanto, os artistas continuavam se expressando principalmente em formas tradicionais: pinturas, esculturas etc.

Foi quando o questionamento mudou. Em 1917, isso aconteceu:

'Fonte', de Marcel Duchamp, 1917.

Duchamp quebrou a arte

Duchamp expôs um urinol para uma exposição de arte. Não uma pintura de um urinol, nem uma escultura de urinol: um urinol de verdade.

Ele realmente fez isso e todos nós devemos reconhecer a genialidade disso. Ele, de fato, levou um mictório a uma maldita exibição de arte e o exibiu como uma peça de arte.

Absorva isso.

Você entende o que isso significa? Mais uma vez, o questionamento mudou. A partir de agora, a arte não é mais sobre "O que mais a arte pode retratar e como". Agora, os artistas devem se preocupar com é "Que porra é essa de arte?" ou até "Arte realmente importa?". Isso levou o rolê para todo um novo nível.

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Um nível brilhante.

Um nível tão genial que seria muito difícil alcançá-lo depois. Quase impossível de superar. Duchamp nos mostrou que tudo poderia ser arte. Maldito gênio. Mas, ao fazê-lo, qual é o ponto de chamar qualquer coisa de arte?

Cem anos depois de Duchamp ter levado um buraco de mijo para um galeria de arte questionando os limites da arte, ainda precisamos nos perguntar sobre esses limites? Para quê enfiar tudo dentro ou fora de uma caixinha dourada e ser tão anal sobre isso?

Arte 2.0

Muitos trabalhos interessantes apareceram depois disso. Muitos questionáveis também. Mas, principalmente, a arte agora é mais uma vez um jogo manipulado (se você nunca viu esse filme, sugiro fortemente que você veja). A arte é concebida por "artistas" e executada por outras pessoas, alguém que não é o artista, um trabalhador braçal. No entanto, este trabalhador, que foi quem realmente fez a coisa, não recebe crédito algum, nem lucro e nem reconhecimento. Esta pessoa é um mistério, um anônimo por trás da obra, para nunca ser sequer mencionado. Porque esta pessoa não consegue conceber a arte, apenas os "artistas" que encomendaram a obra conseguem.

A pessoa que teve a idéia de um pato inflável é o artista e não as várias pessoas que o montaram. Foto: Reprodução.

Quando ps artistas contemporâneos se separaram do processo de fazer arte e focaram apenas em "criar conceitos", criou-se uma divisão quase impossível romper para novos criadores. Apenas quem já é renomado continua renomado. Desligando-se do processo de fazer a arte, elas são as "pessoas das ideias". As exposições de arte estão cheias de objetos e artefatos concebidos por uma pessoa famosa e trazidas à realidade por muitos anônimos, o que me faz lembrar do rígido sistema de castas de Admirável Mundo Novo.

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Vamos apenas sentar e respirar um pouquinho pensando nisso: se você é uma pessoa de ideias, você não produz nada. Então, não importa o quão maravilhoso sejam seus pensamentos, você não fez nada a respeito deles. Suas idéias são tão boas quanto o que você faz com elas e, se você não é quem as traz à realidade, talvez você não seja a única pessoa a receber os louros.

A arte de hoje é elitista. É um conceito inacessível e incompreensível. E, no entanto, as pessoas criativas se esforçam para alcançar essa elite sem perceber que é um jogo de cartas marcadas.

Não passa um dia que eu não me pergunto se Duchamp tinha a menor ideia de que a sua Fonte seria o primeiro passo para isso. Se, ao questionar o status quo e o significado da arte ele acabaria criando mais um status quo, este enraizado na privação de sentido. Além disso, se, ao questionar a importância do artista na produção, ele deixaria as portas abertas para uma nova raça de artistas, os artistas que têm ideias e apenas isso.

O provocador tornou-se o establishment.

Fonte foi exibida há 100 anos e, ainda hoje, a arte ainda está tentando ser ainda mais chocante e ainda mais crítica. Mas, ao invés de realmente ser crítica, a arte continua batendo a cabeça repetidas vezes nas mesmas falácias, sendo propagada em loop pelas mesmas pessoas.

E isso é uma merda.

Isso é deprê, vamos mudar de assunto

Você lembra que eu disse que algumas pessoas acreditam que a arte é algo que te mude? Que é o que faz você sentir algo, faz você olhar pro abismo e sair uma pessoa diferente? Depois desta viagem inteira, é difícil dizer se a arte ainda é isso aí. É difícil confiar em uma palavra que agora está tão aberta para sentidos que podem não significar mais nada.

Então, vamos ter esse significado de algo que te mude e vamos colocá-lo nesta nova e bela palavra: experiência. Vamos começar de novo e esperar que tudo não dê errado mais uma vez.

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Você se lembra dos calafrios descendo sua espinha quando você ouviu as primeiras notas tocadas nessa tela de título?

Como você se sentiu quando jogou um videogame pela primeira vez? Como você sentiu os controles na sua mão? Como as cores pareciam? Você se sentiu poderoso no fim do nível ou da missão? O barulho da vitória fez você perder o senso de ridículo? O barulho de morte fez seu sangue ferver e você sentir um pequeno vazio? Mas esse vazio durou pouco, já que sempre tinha mais uma vida, mais um continue, outro nível. Até que não tinha mais. E daí você ficou triste. Pelo menos, um pouco triste. Mas eu aposto que foi bem triste.

Todos esses são sentimentos que você experimentou foram os jogos que tornaram possíveis. Você não os sentiria sozinho, mas os jogos vieram e te envolveram com a estética e uma jogabilidade bacana. E, antes que você pudesse dizer, você realmente se importava com o que estava acontecendo na tela. De repente, tudo isso importava para você. Ou importa agora, pelo menos.

Jogos são particularmente bons para fazer as pessoas se importarem, pois são um meio interativo. Na verdade, o primeiro de seu tipo a ser publicamente disponível.

Em um filme, um livro ou uma pintura, você é uma mera testemunha dos eventos que se desenrolam perante você. Em um jogo, você não só participa ativamente nestes eventos, mas também é a força motriz que os faz acontecer.

E isso é exclusivo dos jogos e é muito poderoso.

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Para alguns, isso torna os jogos ainda mais poderosos que todos os meios de comunicação e arte antes deles. Eu não sei se concordo completamente, mas se você concorda, fique a vontade. Sem julgamentos. É por isso que jogamos. É por isso que fazemos jogos. E é também por isso que os seres humanos começaram a fazer arte, a sentir algo enquanto sentiam a beleza. Mas esse sentir não é mais arte, então por que devemos fazer qualquer coisa para alcançar essa palavrinha?

É assim que jogos são tão incrivelmente diferentes de todo o resto. E é por isso que devemos entender os jogos como eles são, e não usando medidas, definições ou restrições importadas de outras mídias.

Jogos podem até ser sobre como você se sente. Imagem: Thais Weiller e Amora Bettany/Divulgação.

Existe algo mais ofensivo do que dizer que um jogo é "cinematográfico"? Que a sua narrativa é elogiada sempre como "quase literatura"? Que certos jogos "quebram a quarta parede"? Você vê o quanto estamos nos limitando quando pensamos assim?

Estamos usando as medidas de outros meios para castrar os videogames. Estamos usando o passado para descrever os jogos de hoje e, ao fazê-lo, estamos cortando possibilidades de que os jogos podem ser. Esta é uma outra questão com outras ramificações, mas você entende o ponto. Jogos são uma mídia "nova" e, como tal, sentimos uma insegurança que nos leva a achar que precisamos provar nossa legitimidade. Para fazer isso, usamos linguagem de mídias passadas e tentamos enquadrar em seus padrões. Mas, tentando tanto ser aprovado por outros meios de comunicação e artistas, acabamos perdendo nossa própria forma, nossa própria identidade. Perdemos a pluralidade dos jogos.

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Estamos usando as medidas de outros meios para castrar os videogames.

Essa auto-limitação já está acontecendo. Por que alguns sentem a necessidade de excluir walking simulators da categoria jogos? Somos tão inseguros assim para ficarmos monitorando constantemente os limites do que consiste um jogo? Precisamos excluir todo um tipo de experiências para nos sentirmos mais seguros?

Hoje, "arte" é uma palavra vazia, desprovida de significado. O que a arte é ou significa já foi perguntado e respondido um bilhão de vezes. Se os jogos são ou não são arte é o total oposto do que deveríamos estar perguntando.

Para citar Chris Crawford, que se foda a arte.

Jogos não devem mudar para serem considerados arte. Jogos são sua própria coisa.

Eu chamo essa coisa de experiência, mas se você não concorda comigo, que se dane a palavra experiência também. Além disso, que se dane indie. Que se dane AAA. Que se danem todas essas malditas etiquetas que criamos para tentar entender o mundo, mas que acabam por limitar a nossa criatividade. Não permita que as aspirações ou definições de outras pessoas te cortem de novo. Queime a tirania das palavras. Queime tudo, até o chão. E que se danem todas.

Jogos são jogos e isso é tudo com que precisamos nos preocupar.

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