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A Ocasião Faz a Foda

Ontem fui pra cama com o Breviário de Pornografia Esquisotrans, compilação de contos eróticos da Fabiane Borges e do Hilan Benusan (Coletivo Esquizotrans).

Ontem fui pra cama com o Breviário de Pornografia Esquisotrans, compilação de contos eróticos da Fabiane Borges e do Hilan Benusan (Coletivo Esquizotrans), que vai ser lançado é hoje no espaço +Soma. Foi uma rapidinha sem gozo--penetração semi--, mas vale replay no feriado. Afinal, é um livro sobre tesão, taras várias, perversões sexuais, limitações para a plena satisfação e toda aquela conversa típica de puta tcheca. Só que eu esperava uma putaria romana, e não sexo-drama. Então, pra bronha, ficou devendo.

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Mas é sobre sexo, então tá valendo. E já que é sexta-feira, vou postar aqui um dos contos, o que eu achei mais legal. Chama "amor no lixão", e fala disso mesmo, coito em chorume. Foi dele que saiu a frase do título. O conto é interessante, daria pra curta de formando em Cinema, mas como não conheço ninguém que já tenha dado para algum "lhe"--sei só de quem deu "pra"--, o texto fica menos sacana, e aí ficamos só na formigadinha. Se é erótico tem que dar tesão, mesmo que dramático, e isso faltou um pouco. Curto a coisa mais hormonuda. Mas, de novo, é sobre sexo, então se não curtir é só não ligar no dia seguinte. Vai descendo.

"Risco e desperdício, com isso dá para fazer muitos universos. Muitos em que eu queria viver, me enjoo de onde não há desperdícios – sei que o lixo é coisa do ocidente desajeitado, mas gosto dessas montanhas de desorientação. Gosto do que sobra. Em outros tempos já fui catadora. Saía pela cidade no rastro do caminhão do lixo, querendo chegar antes dele em cada rua. Terminava quase sempre no lixão, onde de manhã havia potes, latas, caixas, garrafas e frascos de coisas desaproveitadas. Era um achado a cada dia e cada coisa podia ser um tesouro se eu soubesse o que fazer com ela. Tinha consciência que era trama e não paisagem, era passagem e não estado, era em nome da experimentação que me atrevia a passar tanto tempo na terra do lixo, com gente ossuda, curtida de sol, que carcomia dejetos como rapinas, como vermes da morte, da noite, podadores de excessos, resignificadores de objetos de-significados. Os companheiros que arranjei não gostavam de associações, menos ainda de cooperativas, se negavam a devolver lixo pronto pra companhias que valoravam seu serviço de forma mais precária que o próprio lixo. Sentiam-se expropriados pelo modismo da reciclagem, a máquina pegara eles também, era o último lugar que esperavam ser perseguidos, não se negavam ao cheiro, ao apodrecimento, gostavam de independência desconectada. Sujeira era a tentativa dos ricos em desestruturar-lhes a sobrevivência há tanto tempo despendida. Não eram todos assim, eram só os que eu gostava mais, autonomia de lixo, fazer da lavagem de porcos lavagem. Estamira era uma dessas, mas tinha outras centenas em outros lixões, espalhados, desavergonhadamente nas beiradas de riquezas indóceis.

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O moreno Davi era sempre animado – baixinho e cheio da ginga nos quadris, ginga de quem havia jogado capoeira pelo menos por descuido – ele dizia que cada coisa inútil que achamos preparava nossa cabeça para encontrarmos utilidade para ela. O lixo pra ele era enorme quebra-cabeças. E ele encontrava coisas, e utilidades. Quando estávamos sozinhos, ou só com o Calha Grande, ele sempre encontrava um gato de almofada ou uma boa metade de colchão e me olhava como se a ocasião fizesse a foda. Fazia.

Eu me deitava primeiro e ele subia por cima de mim sempre me lambendo muito antes de me fazer gozar no meio daqueles cheiros, às vezes afrodisíacos mas exagerados, às vezes podres mas picantes – dependia do vento, ao acaso as preliminares. Já estive trepando em camas de hotéis perfumados, no quarto da dona do café mais galante da cidade e nem digo que foi sempre melhor no meio dos vales de abundância com Davi, mas nunca deixei de achar que lixo é relíquia dos exageros – e sou, gosto de ser, exagerada. Já o Calha Grande às vezes nos acompanhava quando não estava entretido com reciclagens imprescindíveis. Agora quando me lembro de nós três deitados naqueles remendos em meio às montanhas de objetos desprezados, parece que nossos corpos eram também desperdícios que nós tentávamos aproveitar. Nosso lema era aproveitar, nada tinha utilidade fixa já que a inutilidade era a sina, a colcha e a refeição. Eles eram meus protetores, porque branca, mulher e remediada numa terra de pouca lei, era vulnerável, e eles sabiam disso,mas tinham comigo uma espécie de cuidado delicado, cheio de ternura e tesão, em troca eu lhes segredava trocados, lhes gritava poesias improvisadas e emprestava-lhes o ouvido para as histórias mais estapafúrdias, histórias de lixo. Daí que o lixão tinha sua própria mitologia, seus espíritos, potestades, incorporações. Não raro apresentavam-se espectros noturnos que indicavam caminhos e sumiam, como fumaça. Nós três deitados, nus ao relento, encima de montanhas abjetas, ouvindo barulhos terríveis, mistura de vento e latas, vento e águas, explosõezinhas internas e externas ao nosso assentamento, esconderijos feitos de tralhas e gosmas.

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Eu estava feliz, mas sofria. Sabia que estava num mundo em extinção, que meus guerreiros do lixo não teriam lugar fora dali, a não ser um lugar de humilhação e hierarquia. Limpariam a cidade, ou empilhariam tijolos, sem a aura paralela de liberdade e reinado. Era essa confusão que me excitava, e não raro me dava conta que colhia piolhos dos seus cabelinhos enrugados, como quem cata vaga-lumes. Eles brilhavam. Eu reconhecia sorrisos atravessados na madrugada, e minha angústia se tornava companhia. Não que a felicidade tenha tamanho, mas me preenchia, e só me dava conta do quão longe ia, quando voltava vadia para a casa da família, e todos tapavam o nariz, viravam a cara, tinham ânsia de vômito e olhavam-me desconfiados, não sabendo se se tratava de drogadição ou enlouquecimento. Evidentemente me adaptava depressa aos costumes da cidade, da classe social e das verdades. O lixão eu mantinha em segredo, como um lado obscuro da minha sexualidade efusiva.

Gosto dos segredos, como dos riscos e dos desperdícios. E no relevo do lixão que eu mais frequentava, muita coisa era segredo a céu aberto. Jogar fora é querer que alguma coisa desapareça da nossa frente; nossas montanhas e vales eram montanhas e vales de desaparecidos, do que não tinha cabimento, do que alguém não tinha conseguido aproveitar. O depósito de lixo é o lugar do que deveria desaparecer, mas que não desapareceu – o próprio lugar é recalcitrante e tudo o que fazíamos ali dava a impressão de que já estava sumido e sem rastros. O lixo é um lugar de segredos, nós, catadoras, somos pastoras de segredos – segredos sem dono. Uma vez encontrei um vibrador em forma de cavalo em uma montanha de lixo cheia de maçãs pas sadas e guardanapos encardidos . Descobr i imediatamente que a dona quis se livrar daquele objeto em excesso ainda que ele funcionasse perfeitamente – duas pilhas carregadas dentro. Mostrei o cavalo de pele artificial para Calha Grande e Carolina, que estavam comigo na montanha. Carolina pegou o animal pela crina – uma crina impressionante, quase como a de um potro mirim – e logo levou a pica do animal, desproporcional a um objeto de decoração, para dentro de sua saia amarela.

Aquela pica ficou muitas horas entre o rabo de Carolina, a boca de Calha Grande, meus seios e nossas mãos. Nestas horas nós éramos hienas de lixo, imundos, nunca pensávamos em água, sabão ou spray de Rexona. E naquele dia era como se estivéssemos todos sendo fodidos pelo lixo em decomposição, na forma do garanhão de gambiarra que nos seduzira com seu estranho relinchar. Se me lembro bem foi assim: eu jorrei jatos de gozo na boca do Calha Grande que me chupava enquanto eu enfiava a boca no vibrador do cavalo, Carolina metia a pica do lixo pela boceta por um tempo que me pareceu tempo demais, e ela gozou um pouco depois que Calha Grande se estirou nu sobre uma montanha de pneus sem forma.

Essas pequenas orgias eram meus segredinhos, os guardava com profundidade, num lugar bem fundo, que alimentava minha fantasia e me protegia do resto do mundo. Com esses mistérios, minhas relações sociais se tornavam amenas, fáceis, eu não tinha nenhum medo de dissimular. Parecia que eu ganhava sentido, densidade e principalmente respeito. Mesmo assim fui mandada pelos meus pais para a casa do meu tio Peter em Deauville, na Normandia, onde minha mãe pensava que não haveria montanhas de lixo para me desencaminhar. Não seria tão fácil me separar dos entulhos, eu resisti, mas fui, por também achar que Davi estava com uma doença estranha e que poderia me infectar. O chorume da verdade é que sofri muito com a distância, com o frio, com o frio nos corpos das pessoas e com algumas moléstias vaginais. Nada sério. Me adaptei facilmente ao ritmo da família, que gostava de contar histórias, e adorava beber vinhos bons. Às vezes embriagada, contava um pouco da vida dos dejetos, escondendo partes obscenas, mas deixando umas linhas à mostra, que lhes enchiam de curiosidade, pois deixava transparecer que a história era maior do que a contada.

Quando voltei pra São Paulo, quase cinco anos depois, fui ao lixão ver como estava, mas já não estava: nem lixo, nem esconderijo. Todo o entulho tirado, todas as pessoas despejadas, para onde? Depois de leve percurso atrás do paradeiro dos amigos, desisti. Já não queria saber. Estava cansada de tanta ressaca e culpa cultivada nas terras da Normandia: Por que não ajudei meus amores no lixão? Por que usei suas delicadezas pra fortalecer meu forte? Por que faço tão mal aos poemas? Teria que me limpar das sujeiras que me impregnaram na longa viagem ao norte."