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Tecnologia

A guerra ao spam do Spotify pode mudar a forma como ouvimos música

Na sua caçada a fraudadores, a empresa estipula, aos poucos, como devemos consumir suas canções. O futuro disso não é nada animador.

O Spotify enfrenta uma série de desafios: reclamações sobre pagamentos injustos para os artistas, queixas por beneficiar grandes gravadoras, duas ações de classe tomando por base questões de direitos autorais, fora o detalhezinho de não lucrar. E agora há outra treta: o spam musical.

Tanto os artistas brincalhões quanto os bots criados para gerar audições artificiais estão sangrando os cofres da empresa. O Spotify paga aos artistas/detentores dos direitos algo entre US$0,001 a US$0,007 sempre que alguém ouve uma de suas faixas. Por mais que os valores pareçam baixos para artistas e fãs, muita gente se aproveita do modelo para lucrar bastante.

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Existem duas formas de ganhar uma grana com o Spotify sem ser um artista popular: spam musical e fraudes em cliques. O spam abrange diversas estratégias para levar as pessoas a ouvirem determinadas faixas. "White noise", por exemplo, é a tática em que se faz o upload de estática como se fosse alguma música famosa. "Sound-alikes", outra, exige esforço maior: são cópias furrecas de sucessos. Spammers sobem a mesma música milhares de vezes com títulos semelhantes a grandes hits. As pessoas clicam nos spams por curiosidade ou porque digitaram errado o nome da música que queriam. Ao longo do tempo, essas faixas movem uma boa graninha.

Já a fraude de cliques é diferente. Trata-se do ato de aumentar artificialmente a contagem de reproduções em uma faixa ou álbum original com o objetivo de aumentar o lucro do artista ou gravadorao. O caso mais famoso é o do Vulfpeck, uma banda norte-americana que encorajou seus fãs a ouvirem seu disco silencioso de faixas de 30 segundos a fim de manipular o modelo pague-por-streaming do Spotify. (Uma música deve ser tocada por 30 segundos para contar.) A pataquada conseguiu atenção da imprensa e, por sua vez, muitas reproduções renderam quase 20.000 dólares. O Spotify então pediu que a banda retirasse o disco do ar e, como não rolou, a própria empresa foi lá e deu fim no álbum.

Desde então, muita gente começou a, discreta e não tão discretamente, experimentar a criação de contagens de stream artificialmente elevadas. Como resposta, o Spotify parece ter intensificado seus esforços para combater a fraude com ações que poderiam abrir as portas para a censura.

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Eis o flagra mais recente da guerra crescente contra o spam musical: um músico conhecido meu (que deseja permanecer anônimo) me enviou o seguinte email que dizia que uma de suas canções havia sido removida do Spotify porque havia sido reproduzida um número "enorme" de vezes. O email fora enviado pela DistroKid, empresa que serve como intermediário entre artistas menores e grandes plataformas digitais a fim de ajudar os independentes a disponibilizarem seus trabalhos em serviços de streaming.

Email editado da DistroKid

Minha fonte estava testando para saber por quanto tempo conseguiriam reproduzir constantemente sua faixa de 45 segundos no Spotify. O objetivo era descobrir se a empresa dispunha de mecanismos para impedir que os artistas deixassem suas próprias canções no repeat e se os centavos derivados disso poderiam gerar dinheiro de verdade. Eles conseguiram 45.000 reproduções ao longo de um mês antes de receber a notificação por email.

Claro que isso é jogar sujo e, neste caso, a ação tomada pelo Spotify é justificada e correta. Mas, se examinarmos mais de perto, o aviso revela algumas questões complicadas que podem levar a um futuro triste para os fãs de música.

Aos poucos, essas plataformas estão escrevendo as regras do que é e não é uma canção.

Pra começo de conversa, o Spotify tomou a medida de remover uma faixa por completo sem qualquer estágio probatório ou processo de apelação. Um fim lógico para tal tipo de ação defensiva é um ambiente em que uma empresa decide como os usuários consomem música. Isso incomoda ainda mais se considerarmos o objetivo do Spotify de substituir as coleções de discos das pessoas e tornar-se a fim de se tornar sua fonte primária de música – e há pesquisas que indicam que este objetivo está virando uma realidade. No começo deste mês, um artigo intitulado "O streaming substituiu a coleção de discos" relatou que um estudo recente revelou que "55% da audição de música se dá por streaming – mais do que a combinação de rádio e discos".

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Por mais que não pareça ser um problema significativo o fato do Spotify remover faixas de sua plataforma, considere um possível futuro daqui a 10, 20 ou 50 anos em que serviços de streaming serão a única maneira pelas quais as pessoas ouvirão música. Pense então a assustadora realidade: essas mesmas empresas decidirão não só que músicas seguirão em suas plataformas, mas também que tipos de hábitos de audição são permissíveis.

O que se destacou pra mim no email da DistroKid foi que "Gente de verdade não ouve a mesma música milhares de vezes seguidas". O problema com a frase é que uma pessoa de verdade gerou essas reproduções, usando apenas o comando "repeat 1" do Spotify. A motivação era um experimento com fraude sim, mas fica a questão: você quer mesmo que grandes empresas decidam quais dos seus hábitos de consumo musical são legítimos?

Conversei com John Seay, advogado na área de entretenimento especializado em streaming digital, para perguntar a ele se a remoção da música pelo Spotify é sinal do que vem por aí. "Sua questão quanto ao que é audição legítima é interessante", disse Seay por email. "Creio que a abordagem do Spotify seja como a da Suprema Corte no caso da pornografia, saberão quando verem acontecendo", falou. E isso deixa espaço para interpretações errôneas.

O caso me lembra da vez que fiquei obcecado com a música de 1972 do Can "Vitamin C" e a ouvi no repeat (em um CD player) por três dias seguidos. Não há nada nos Termos do Serviço do Spotify ao longo de suas 24 páginas que proíba você de fechar as cortinas de casa, desligar o telefone e ouvir a mesma música no repeat sem fim. Mas as regras proíbem de "aumentar artificialmente a contagem de reproduções ou manipular os Serviços por meio de um script ou qualquer outro processo automatizado". Estou certo de que meu experimento com o Can poderia ser interpretado pelo Spotify como violação dessas regras.

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Caso reproduzisse o experimento com "Vitamin C" no Spotify, teria simplesmente usado o comando "repeat 1" e nunca o desligaria, que é praticamente o mesmo que os ouvintes de Sleepify fizeram que tirou o disco do site. Será que meus hábitos de audição tortos fariam com que "Vitamin C" fosse removida da biblioteca do Spotify?

O que leva a outra questão: por que remover a canção e não banir o usuário? A ação tomada aqui parece estranhamente inversa. "Talvez o Spotify prefira manter o usuário, ainda mais se for pago", disse Seay. "Talvez queira preservar as contas dos usuários para fins de marketing, ou seja, para poder dar um grau no número de usuários". De tal forma, para o Spotify, os usuários podem ser mais valiosos do que as canções na plataforma.

Bem, nem todas as canções, claro. Só aquelas que não são muito populares. Se um usuário botasse pra rolar indefinidamente a música mais curta dos Beatles, "Her Majesty", por exemplo, teria como o Spotify remover a última faixa do Abbey Road de sua biblioteca? Ou a prática só vale para artistas menores e desconhecidos?

O porta-voz do Spotify, Graham James, declarou: "Usamos uma série de algoritmos e também seres humanos para verificarem nosso catálogo em busca de possíveis fraudes. Assim que identificamos o streaming fraudulento, derrubamos o conteúdo e não bloqueamos o usuário. Se a faixa foi derrubada, não gera pagamentos, então isso resolve as coisas". Quando perguntei o que aconteceria se a faixa fosse de alguém famoso, ele afirmou "isso provavelmente é hipotético demais para se responder".

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A real é que a prática deixa um amplo leque para abusos. E se eu quisesse me vingar de algum artista pequeno com o qual tenho alguma treta, não poderia simplesmente deixar no repeat uma de suas faixas para que sua obra fosse removida? Se o Spotify vai entrar numas de censura com base em reproduções, não deveria então anunciar publicamente os critérios por trás de tais ações para que os usuários possam decidir se querem continuar apoiando a plataforma?

Remover músicas suspeitas de reprodução fraudulenta é só um exemplo do poder que plataformas digitais como o iTunes e o Spotify têm sobre como ouvimos música – e sobre a música em si, afinal. Aos poucos, essas plataformas estipulam as regras do que é e o que não é uma canção ou título aceitável.

Observemos o caso de Matt Farley, o spammer de música, que lançou 14.000 canções originais no Spotify e iTunes, algumas com nomes de celebridades nos títulos para que as pessoas as escutassem e gerassem renda ao autor. Ele levou um pescotapa do iTunes por quebrar algumas regras anti-spam que ninguém sabia existir. Por exemplo: o iTunes não permite que um único disco tenha mais que 100 faixas, que o mesmo não tenha todas as faixas com títulos de outras bandas e que as letras citem gravadora. Disseram-lhe que nem mesmo poderia nomear uma banda como "How To Ask a Girl to the Prom" por descrever a música tão escancaradamente.

O Spotify e seus similares podem estar acabando com os downloads ilegais, mas a fraude em streaming e spam musical estão crescendo. Em muitos casos, pessoas por trás dos supostos golpes são artistas criando conteúdo. Numa tentativa de ganhar alguma grana na era do streaming, esses músicos inventam novos truques e põem em risco sua posição no catálogo da nova coleção de música na nuvem.

Tradução: Thiago "Índio" Silva