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Música

Os Seahawks fazem música subaquática para acalmar o animal violento

Que és tu.

Não será necessário puxar muito pela memória para voltar àquele ponto em que a música estava infestada de símbolos da beira-mar: ondas a quebrar, pranchas de surf, palmeiras, muitas palmeiras. Deixou de haver paciência para mais uma capa com uma fotografia desfocada tirada pelo tio numa praia da costa espanhola, em 1987. O mais grave é que todas as fotografias pareciam iguais e escolhidas com a mesma pressa de um puto que traz para a rua o ioiô, antes que o brinquedo passe de moda. Tudo isto ajuda, portanto, a explicar os receios nos primeiros contactos com o universo dos britânicos Seahawks: os discos disponíveis eram muitos e praticamente todos estavam também carregadíssimos de referências ao imaginário marítimo. Há um primeiro CD chamado

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Ocean Trippin’

, um LP com o adequado título de

Aqua Disco

e as duas

labels

quase exclusivamente destinadas aos Seahawks respondem por Captains Log e Ocean Moon. É muito mar para um duo só.

Posto isto, onde diferem os Seahawks de toda aquela vaga enjoativa das palmeiras? Pois bem, Jon Tye e Pete Fowler, os dois homens ao leme do projecto, não serão exactamente uns meninos e sabem muito bem onde colher as referências psicadélicas para que isto seja música subaquática da melhor espécie. O primeiro coordena, desde 1995, as operações da Lo Recordings, casa forte da electrónica, e pela sua mão editorial já passaram nomes tão respeitáveis como os de Aphex Twin, Luke Vibert ou Susumu Yokota. Pete Fowler é, por sua vez, o tipo de ilustrador que nos deixa de queixo caído no chão com cada um dos seus desenhos de monstros ornamentados por mil merdas cósmicas. Como seria de esperar, todo o artwork dos Seahawks passa pelo galês internacionalmente reconhecido pelas suas capas para os conterrâneos Super Furry Animals.

Nestes dois rapazes britânicos, agora sedeados em Londres, estariam reunidos motivos suficientes para uma entrevista, mas acabou por ser o novo disco de remisturas — um

Phantom Sunset

criado a partir dos originais de

Invisible Sunrise

— a alavanca da conversa que se segue. Ao olhar para um elenco de produtores que, entre outros, conta com Dr. Dunks (em modo baleárico), Advisory Circle, Quiet Village e Laurel Halo, começámos precisamente por perguntar como é que se chega a um disco de remisturas com presenças deste calibre. O retorno de Jon Tye revela um gajo bem-disposto e grato: “Estamos bastante felizes com os artistas que contribuíram com as remisturas. Havíamos já colaborado com uns quantos e outros decidimos contactar para o efeito. Alguns flutuaram até nós como uma mensagem dentro da garrafa. Ocorreu-nos esta ideia antes mesmo de lançarmos o álbum

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Aqua Disco

e este era um daqueles projectos que podia ser um pouco mais demorado. Era necessário dispor de algum tempo para desenvolvê-lo com os diferentes artistas. Desta vez aproveitámos o facto de termos um prazo mais alargado, o que não significa que apressemos o nosso restante material. Mas é porreiro dar as coisas por terminadas quando estão realmente terminadas."

Mesmo sem fazer parte de

Phantom Sunset

ou sequer do seu gémeo

Invisible Sunrise

, “Don’s Rainbow” é outro exemplo bem claro de como os melhores frutos dos Seahawks precisam do devido tempo e espaço. Muito mais dançável do que a maioria das peças num reportório pacífico, “Don’s Rainbow” quase parece “Make Some Room” (precioso lado-b de Sade) em velocidade de cruzeiro, mais cheia de artifícios e conduzida pelo falsete delirante de Arthur Ashin, o rapaz de Brooklyn que também conhecemos por Autre Ne Veut. Jon Tye satisfaz-nos a curiosidade ao recapitular o processo que levou a “Don’s Rainbow”:“Começou por ser um instrumental e o Autre Ne Veut (Arthur Ashin) estava na calha para fazer uma remistura, mas, passados três meses, tornou-se claro que isso não aconteceria… Nessa altura, o Dan Lopatin (Oneohtrix Point Never) sugeriu que pedíssemos ao Autre Ne Veut para acrescentar a sua voz em vez de fazer a remistura. Excelente ideia. Ficámos malucos com o resultado. “Don’s Rainbow” é uma das nossas faixas favoritas, certamente."

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Concordamos com a apreciação e, perante o sucesso desta colaboração, procuramos saber se o formato é para repetir nas futuras canções. Com isto, Jon Tye descose-se um pouco e faz a maior relevação de toda a entrevista: “Neste momento, o próximo álbum inclui vozes em sete das oito faixas. Cinco dessas já estão gravadas. Não podemos revelar quem participa, mas é certo que, mais uma vez, tivemos toda a sorte do mundo… O álbum sai no próximo ano e mal podemos esperar.”

Ilustração por Margarida Batista

É quase ingénuo o discurso de uns Seahawks que, aparentemente, não se levam muito a sério. Outro exemplo disso reside em como Jon Tye e Pete Fowler, ao contrário de tantos homólogos, não parecem minimamente incomodados com comparações ou etiquetas. Aliás, é o próprio duo que aproveita

a sua página

para colar à música chancelas tão abstractas como a yacht pop psicadélica, a pop nebulosa de praia ou o drone marinho. Chamem-lhe o que quiserem, porque a ideia que prevalece é a de que há realmente um sentido de humor especial nestes dois tipos (ou não fossem eles britânicos), assim como uma excepcional capacidade para prolongar o feeling das faixas e DJ sets que assinam (“Uma grande parte das nossas malhas favoritas duram à volta de dez minutos e esse gosto transpôs-se naturalmente para o que fazemos”).

Mas voltemos às comparações, nem que seja para observar como o autocolante na capa de

Phantom Sunset

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estabelece, sem qualquer problema, um paralelo entre o som dos Seahawks e o resultado imaginário das sessões gravada por Jean-Luc Ponty, caso este tivesse bazado para Ibiza de férias e nunca mais voltasse. Jean-Luc Ponty é um compositor francês principalmente conhecido pelo seu violino característico e por uma porrada de discos que conjugam jazz e música étnica de forma amigável e new-age (com algum azeite pelo meio). Perguntamos pela melhor maneira de apresentar o francês do violino e Jon Tye não hesita em deixar algumas pistas: “Jean-Luc Ponty é um gajo cósmico por excelência: sempre funk, futurístico e profundo. Cada disco que gravou contém pelo menos uma faixa brutal. Ele é a geleia na sanduíche cósmica. Não sabemos ao certo quem será o pão, mas não inclui más vibrações nos ingredientes.”

Persistindo na identificação dos ingredientes do grande bolo dos Seahawks, torna-se a certa altura inevitável mencionar Brian Eno, um dos mais prestigiados chefs da música ambient. O nome não cai na conversa só por acaso: “Visions of Green”, faixa incluída em

Aqua Disco

, evoca as enormes dimensões do mundo subaquático com um sentido de atmosfera em tudo semelhante ao da banda-sonora que Brian Eno compôs, em 1983, para fazer parte do documentário

For All Mankind

(um apanhado das missões Apollo da NASA) e que haveria de ficar registada no fabuloso álbum

Apollo: Atmospheres and Soundtracks

. Num dos raros momentos em que toma a palavra, Pete Fowler reconhece a marca de Eno e não só: “Escutei muito o

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Apollo

, ao longo dos anos, enquanto desenvolvia diversos artworks, no meu estúdio. Adoro toda aquela atmosfera e o espaço entre os instrumentos. Passe o trocadilho. No que respeita a esse tipo de som, o Brian Eno é certamente uma referência, mas, recuando um pouco no tempo, era possível mencionar também Deuter, Iasos e Klaus Schulze, entre outros. Todos influenciaram o nosso material mais profundo."

Estamos tão bem lançados na conversa que apetece ficar a falar dos filmes de Jean Painlevé e Jacques Costeau com os Seahawks, porque tem mesmo tudo a ver. Ficam a sobrar duas questões mais triviais. Visto que a dupla partilha o nome com uma equipa de futebol americano (os Seattle Seahawks), será que teria já havido algum stress entre as duas partes? “Ainda não, mas já comprei alguns produtos do merchandise da equipa: uma t-shirt e um chapéu de algodão que diz “Go Seahawks!”. À parte de alguns tweets trocados por engano, não temos qualquer beef ou drama com a equipa.”

E é assim que Jon Tye nos deixa mais descansados, porque um processo legal era a última coisa que desejaríamos a dois rapazes tão generosos na quantidade de música descontraída que produzem. A nossa vontade, aliás, é que venham em breve até cá para curtirmos juntos o Verão interminável. O mais falador dos Seahawks parece entusiasmado com isso: “Adorávamos ir até aí. Vais-nos convidar? Que seja junto à praia, por favor.”

Tudo se arranja, meu.