Existe um trágico obstáculo na medicina moderna: centenas de milhares de pessoas estão paradas nas listas de transplantes de órgãos à espera de que alguém compatível morra.No Reino Unido, há cerca de 7.000 pessoas na lista – e muitas mais que poderiam se beneficiar de um transplante, mas que, por diversos motivos, não preenchem os requisitos. Nos Estados Unidos, o número de pessoas na fila por um transplante é de cerca de 120.000. Lá, 120 morrem todos os dias enquanto aguardam um órgão.
Publicidade
Trata-se de um sistema imprevisível e arcaico. A antropóloga Nancy Scheper-Hughes, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, me contou via Skype que, daqui a 200 anos, os cirurgiões de transplantes vão "olhar para nós e dizer que éramos selvagens". Será, diz, mais ou menos "como aqueles médicos do século XVII que tiravam os cadáveres dos túmulos para estudar anatomia".Não há um consenso sobre como abordar a escassez de órgãos. Alguns países, porém, estão experimentando novas abordagens. No dia 1º de dezembro, o governo do País de Gales vai introduzir um sistema que deve aumentar o número de órgãos doados: a partir da data, todos concordarão em doar seus órgãos após a morte, a não ser que a pessoa registre oficialmente sua recusa.A medida galesa é seguida por uma abordagem similar na Espanha – que apresenta o maior número de doadores por indivíduo na população europeia. O país transformará a doação de órgãos em algo optativo e, em todos hospitais, designará um coordenador de transplantes para recorrer às famílias em luto.
Há dois incentivos para que os países intensifiquem a disponibilidade de órgãos. O primeiro é óbvio: as pessoas que não morreram durante a espera por um transplante de rim, por exemplo, devem permanecer na diálise até que um órgão compatível "fique disponível" (leia-se: que um amigo ou familiar doe um ou que uma pessoa desconhecida morra).O segundo argumento é sombrio e urgente: há um gigantesco mercado global clandestino de órgãos, abastecido pelo dinheiro de compradores ricos do primeiro mundo.
Publicidade
***Os mercados de órgãos se estruturam com base no desespero mútuo e são alimentados por duas faltas: de dinheiro de um lado e de órgãos do outro. Pacientes que não conseguem mais aguardar por um doador compatível, ou que não conseguem avançar na lista de espera, pagam intermediários em países como Brasil e Índia para fechar negócios com cirurgiões desonestos e vendedores de órgãos desesperados dispostos a entregar seus rins ou os lobos do fígado em troca de dinheiro.Desde que as cirurgias de transplantes de órgãos se tornaram rotina, a transformação do corpo em mercadoria se tornou um grande negócio. Em 2012, a Organização Mundial da Saúde estimou que cerca de 10.000 transplantes ao ano são realizados com órgãos comprados e vendidos ilegalmente. Segundo o documento, os beneficiários pagam dezenas ou centenas de milhares de dólares para furar a fila (e o doador acaba recebendo somente alguns poucos milhares).Deixando à parte a aversão automática que sentimos por esse negócio, é possível pensar: contanto que o vendedor seja pago, qual é o problema com o mercado de órgãos?Se você teve sorte de não ter nascido na pobreza extrema, a ideia de abrir mão de um rim ou de um lobo do fígado em troca de dinheiro parece absurda. Esse, porém, é um universo totalmente diferente no caso de um provável vendedor de órgãos que mora em uma favela de Bangladesh. Se fosse uma escolha: perder sua casa ou perder um rim, quem somos nós para dizer que é melhor morar na rua com dois rins em vez de ter um teto e um rim só? O problema é que as pessoas dispostas a vender suas partes a pessoas desconhecidas podem estar tecnicamente fazendo uma escolha e não são informadas disso. Vender um órgão é, conforme Monir Moniruzzaman, o professor assistente de Antropologia da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, me disse, "uma escolha falsa".
Publicidade
"A maioria dos vendedores de órgãos nem sabe o que é um rim", afirmou o professor Moniruzzaman. "Eles não sabem o que é um fígado e qual sua função no corpo humano. Eles são persuadidos pelos intermediários, que dizem a eles que tirar um rim não é um problema, ou que vender um lobo do fígado é uma situação na qual todos saem ganhando: um ato nobre e lucrativo que pode salvar a vida de uma pessoa, além de ser seguro e não oferecer maiores problemas."A recuperação dos doadores e as consequências em longo prazo dessa "doação" não são levantadas, mesmo considerando que nas áreas mais pobres e subdesenvolvidas do terceiro mundo (o terreno do intermediário de órgãos), elas sejam e mais evidentes: os doadores não podem pagar por cuidados pós-operatórios e os efeitos pós-operatórios que enfrentam – fraqueza, dor, vertigem, fadiga – dificultam o retorno ao trabalho manual. De acordo com Moniruzzaman, o dinheiro que o vendedor de órgão recebe quase sempre termina "em poucos meses".É possível que a legitimação do sistema funcione como proteção? O mais provável, de acordo com Moniruzzaman, é que a legalização do mercado de órgãos vá coagir mais pessoas a vender partes de si quando a situação financeira apertar e que os lucros permaneçam para os mesmos grupos (agora legitimados) e indivíduos, como já acontecia anteriormente.
"Esse tipo de corrupção, manipulação e armadilha não vai mudar com um mercado", ele afirma. "Eles vão continuar existindo exatamente da mesma forma, porém, o sistema será legalizado e haverá cada vez mais gente tentando atrair a população vulnerável a vender seus órgãos, dizendo a elas que agora é uma coisa legal. Agiotas poderão forçar essas pessoas pobres a vender, dizendo 'você pode vender seus órgãos. É uma prática legal. Então por que você não vende um e paga o dinheiro que me deve?'.""A maioria dos vendedores de órgãos nem sabe o que é um rim"
Publicidade
Os sindicatos são hábeis em manter suas garras nas comunidades de doadores. O dinheiro que os vendedores recebem raramente fornece a fuga da pobreza que eles tanto almejam – algo do qual os sindicatos em busca de novos recrutadores com frequência tiram vantagem. Os resultados mais assustadores são, muitas vezes, referidos como "vilas de rins": lugares onde os vizinhos se encorajam mutuamente a vender aos intermediários até que a cicatriz deixada pela cirurgia se torne uma característica definidora da comunidade. Essas vilas são os geradores de novos recrutas e, assim, o ciclo continua."Eles mentem para as pessoas, sempre, sobre o dinheiro que vão receber", afirmou a professora Scheper-Hughes, sobre os vendedores nesse sistema. "Quem sai ganhando não são aqueles que venderam os rins, mas os que se tornaram parte do sindicato. As pessoas os procuram novamente e dizem: 'Recebi $5.000 pelo meu rim, mas isso não me ajudou a melhorar a situação da minha família', e então os recrutas pedem para elas recrutarem outros."Há um país no mundo onde pagar as pessoas por partes do corpo é um negócio regulamentado e que fornece um modelo nada animador de como funciona o comércio global legítimo: o Irã."O governo iraniano afirmou que não está permitindo que as pessoas vendam órgãos no Irã, está simplesmente permitindo que elas ganhem um honorário", afirmou Scheper-Hughes. "Alguns dos vendedores veem isso como dinheiro sujo. Eles dizem que vender um rim é como ferir uma pessoa no trabalho ou como causar um acidente. Você pode ser indenizado por isso. Então o que estamos fazendo é dar dinheiro para compensar a falta do órgão. Ou pagar pelo sofrimento pelo qual você está passando."
Publicidade
Porém, regulamentado ou não, essas pessoas pobres e desesperadas ainda enfrentam uma das "falsas escolhas" de Moniruzzaman."Os vendedores barganham de acordo com suas necessidades imediatas", continua Scheper-Hughes. "Mas as pessoas ainda estão tentando ser gentis umas com as outras: uma diz: 'Olhe, meu pai está morrendo, e não somos ricos, não podemos dar mais de US$ 2.000'. E o vendedor responde: 'mas se eu não tiver US$ 3.000, serei despejado do meu apartamento."
A ideia de ter órgãos vendidos e comprados como carros de segunda mão – tanto o comprador quanto o vendedor discutem os termos que satisfazem suas necessidades individuais – pode parecer bastante simples ao pé da letra. Mas, ao deixar de lado os ideais superficiais do livre-mercado e da autonomia, o que resta são pessoas pobres sendo desmembradas para benefício dos ricos. Ou, como Scheper-Hughes coloca, "uma tragédia social"."A questão moral é: podemos cortar a perna de uma pessoa pobre e dizer a ela que uma perna só é suficiente?", pergunta Moniruzzaman. "Ou cortar a cabeça de uma pessoa pobre só porque ela está disposta a vendê-la? Há gente pobre desesperada para vender qualquer coisa.""Entrevistei pelo menos 70 pessoas em Bangladesh que venderam seus órgãos, incluindo rins, fígado [lobos] e, em uma ocasião, encontrei um vendedor disposto a vender suas córneas… É esse o sistema que queremos ter?"Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter , Instagram e YouTube ."A questão moral é: podemos cortar a perna de uma pessoa pobre e dizer a ela que uma perna só é suficiente?"