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Edição Síria

Fui à Síria Para Aprender a Ser Jornalista

O relato de um correspondente de guerra.

Integrantes do Exército Livre da Síria em Baba al-Nasr, fora de Alepo, se preparam para uma batalha.

Sunil Patel nunca tinha publicado nada até decidir ir para a Síria em agosto de 2012 para se tornar correspondente de guerra. Antes da viagem, aos 25 anos, ele trabalhava como agente comunitário para a Polícia de Londres, morava com os pais e às vezes trabalhava como voluntário em campos de refugiados palestinos e curdos. Em uma de suas viagens como ativista, Sunil fez amizade com um jornalista do Canadá que prometeu levá-lo para lugares da Síria que seriam quase impossíveis de um estrangeiro chegar por meios legais. Foi uma ideia louca, claro, e ele quase morreu várias vezes durante a viagem, mas mesmo assim achamos que valeu a pena ele ter corrido esse risco. 

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Conheci o Carlos em um cybercafé em Erbil, no Curdistão iraquiano (obviamente, “Carlos” não é seu nome real). Ele estava falando alguma coisa que envolvia a Palestina e a Síria em uma ligação por Skype e, quando desligou, começamos a conversar.

Ele me disse que já tinha estado na Síria como fotógrafo e que voltaria para lá em breve. Contei que estava pensando em ir para lá para escrever sobre o conflito, mas que não tinha nenhuma experiência como jornalista. “Quer saber?”, ele disse. “Vou te levar para a Síria.” Ele pareceu não se importar com minha falta de experiência.

O Carlos acabou passando aquela noite no meu hostel. Ele não tinha lugar para ficar nem dinheiro para alugar um quarto, então dormiu no chão. Foi um pouco arriscado colocá-lo para dentro, mas valeu a pena, porque ficamos conversando a madrugada toda sobre a Síria.

Fiquei com a impressão de que o Carlos queria alguém para viajar com ele. Eu já tinha passagem de volta para Londres, mas bolamos um plano: eu voltaria para casa e, quando ele estivesse pronto para retornar à Síria, nos encontraríamos na Turquia. De lá, ele explicou, cruzaríamos a fronteira através de seus contatos. Eu fiquei meio tenso, mas parecia um bom plano. Não existiriam repórteres de guerra como Robert Fisk ou Seymour Hersh se eles tivessem ficado em casa com suas mães em vez de se jogar na merda.

Em Londres, meus pais não ficaram muito animados com meus planos de viajar para um país no meio de uma guerra civil. Eles acharam que eu seria morto. Minha irmã ficou muito brava. Eu disse que sempre quis ser correspondente de guerra e, se havia uma chance de virar jornalista de verdade, era essa. No dia seguinte, o Carlos ligou. “Escuta, cara”, disse. “Vou entrar. Você vai ou não vai?” Eu já estava decidido. Falei para o Carlos que o encontraria lá e reservei o próximo voo para a Turquia.

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Meu voo era para Istambul e de lá peguei um ônibus para Hatay, onde o Carlos estava hospedado na casa de amigos. A fronteira síria estava a cerca de 40 km a sudeste. Queríamos ir para lá o mais rápido possível, mas nenhum de nós falava mais que algumas palavras em turco ou árabe. Por sorte, conhecemos uma família turca que nos ajudou a chegar lá. Eles nos levaram até sua casa e nos ofereceram chá. Explicamos que estávamos tentando chegar à Síria. Eles nos ajudaram a ligar para um dos contatos do Carlos, que deveria nos encontrar perto da fronteira para nos ajudar a atravessar. Só era preciso chegar até lá.

Nesse momento, o Carlos rapidamente me informou que era caroneiro profissional e já tinha viajado assim por todo o leste europeu, então decidimos pegar carona até a fronteira síria. Formávamos uma dupla engraçada — sou indiano, então não era tão suspeito, mas o Carlos é um cara branco com cabelo preto e uma câmera pendurada no pescoço. Não sei se isso aumentou ou diminuiu as chances de conseguirmos carona, mas fomos de caminhão em caminhão até Hatay. O contato do Carlos, um cara chamado Muhammad, nos levou de carro pelos últimos quilômetros até uma cidade chamada Reyhanli, perto da fronteira síria. Foram sete caminhões e mais de três horas para percorrer os 40 km até a fronteira.

Reyhanli, um dos pontos mais movimentados da fronteira entre a Turquia e a Síria, fica a cerca de 55 km de Alepo, onde a guerra estava se intensificando. Enquanto andávamos pelos arredores tentando nos situar, uma horda de refugiados entrava na Turquia — para fugir da guerra, imaginei.

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Atravessamos a fronteira a pé. Ninguém nos impediu ou fez qualquer pergunta. Simplesmente atravessamos. Do outro lado, mais refugiados perambulavam, esperando para entrar na Turquia de carro ou a pé. Não tínhamos intérprete porque não podíamos pagar. O Carlos já não tinha mais contatos e a essa altura ficamos torcendo para encontrar alguns rebeldes com quem pudéssemos conversar e que nos mostrassem como é a guerra. Naquele momento, alguns homens de uniformes militares vieram até nós. “Jornalista!”, gritaram em árabe. “Jornalista!” “Sim, somos jornalistas”, eu disse em inglês. Acho que eles me entenderam. “Queremos fazer uma cobertura. Vocês podem nos levar com vocês para a guerra?”

Outro homem apareceu. Ele era um jornalista sírio e falava um pouco de inglês. “Não se preocupem”, disse. “Esses caras são do Exército Livre da Síria. Vocês podem ir com eles. Confiem em mim, vocês estão seguros.”

Naturalmente, ficamos um pouco indecisos. Mas percebemos que era nossa única chance. Então pensamos: vamos nessa e vemos no que vai dar. Não parecia ser tão perigoso.

Entramos em um hatch da Toyota todo arrebentado. Tinha dois soldados fortemente armados na frente e o jornalista sírio, o Carlos e eu atrás. O jornalista sírio disse que os soldados estavam nos levando para a base deles. Não havia sinal aparente de conflito nas cidades por onde passamos no caminho, as casas estavam de pé e tudo parecia normal.

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Foram cerca de 40 minutos de viagem. Quando chegamos ao que parecia ser o prédio de uma escola, os soldados nos levaram para dentro, onde havia cerca de outros 30 soldados e um sírio que falava inglês muito melhor que o jornalista sírio. Ele disse que estávamos em Idlib. “Vocês são jornalistas”, disse. “Vamos cuidar de vocês. Se querem fazer essa cobertura, se querem andar com os rebeldes, vamos ajudá-los.” Ele não era rebelde, só amigo deles. Depois, os soldados do ELS nos ofereceram uma grande refeição de homus e falafel.

Acabamos passando quatro dias nessa região, sem fazer muita coisa. Umas crianças que conhecemos perto dali na cidade de Binnish disseram: “Não vão para Alepo! Amamos vocês, não queremos que vocês morram!”. Achei que eles estavam brincando. Fomos ficando impacientes porque não havia conflito no lugar onde estávamos, então uma noite perguntamos para um dos soldados do ELS se alguém poderia nos levar para a cidade antiga, atualmente sitiada. Ele disse: “Claro”.

Pouco antes da meia-noite, um comandante nos levou de carro em uma viagem de cerca de uma hora até a cidade de Jabal al-Zawiya, a leste de onde estávamos. Lembro de ter pensado: Agora estamos viajando com um comandante. A coisa vai ficar séria. Vai ter batalha o tempo todo.

Jabal al-Zawiya fica situada nas montanhas e passamos a noite em uma casinha de barro em uma colina. Ela estava repleta de senhores de idade. Eles usavam roupas militares e estavam fortemente armados. Lembro de ver o que parecia ser um mancebo com fuzis M-16 pendurados. Bombas explodiam à distância. Além dos idosos, também tinha um jovem sírio que estudava literatura inglesa na faculdade e topou ser nosso tradutor.

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No dia seguinte, o ex-estudante nos levou para dar uma volta na região e entrevistamos pessoas que foram afetadas pela guerra, incluindo um homem que havia perdido a filha de 11 anos uma semana antes, quando um míssil de um dos jatos de Assad atacara sua casa. Nosso guia nos levou para outra cidade próxima e nos mostrou os restos de uma casa que os shabiha — bandidos leais a Assad — tinham incendiado. Entramos em um prédio queimado e tiramos fotos de tudo que conseguimos.

Mesmo assim, foi um pouco decepcionante. Não estávamos em Alepo, onde a guerra de verdade estava acontecendo, e queríamos ir para lá. Queríamos ver de perto as bombas que ouvíamos. Então, alguns dias depois, o comandante do ELS se ofereceu para nos levar para mais perto das linhas de frente, para outra base rebelde nos arredores da cidade. Eu disse: “Estamos prontos para ir”. Ele levou nos levou em seu carro.

A estrada não foi fácil. Passamos por algumas cidades que foram totalmente destruídas: a maioria das estruturas tinham sido bombardeadas e estavam desmoronando. As casas que restavam tinham sido completamente saqueadas. Cidades-fantasma.

Algumas horas depois, o comandante nos deixou em uma base do ELS perto de Alepo onde havia cerca de 25 rebeldes. Ele disse: “Amanhã, levem esses caras para Alepo. Eles querem muito ver a guerra”. E com isso, o comandante partiu.

Nenhum dos soldados falava inglês, mas nos esforçamos. Diferente dos rebeldes em Jabal al-Zawiya, eles não nos ofereceram comida. As coisas estavam obviamente mais difíceis aqui. Eles haviam visto mais combates e estavam lutando contra as forças de Assad há meses, o que ficava claro por sua atitude ríspida. Mas, de certa forma, eram simpáticos. Durante toda a noite escutamos bombas explodindo ao redor e em Alepo, que ficava a cerca de 20 km de distância.

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Cartazes de Assad cheios de sangue depois de batalha em Baba al-Nasr. 

De manhã, três soldados do ELS nos levaram para o centro da cidade. Eu tinha ouvido dizer que todo o acesso estava bloqueado pelas forças de Assad, então imaginei que teríamos que passar pelas linhas inimigas escondidos de alguma forma, talvez agachados no banco de trás de um carro enquanto ele esquivava de atiradores. Mas não foi nada disso. Simplesmente entramos de carro na cidade. O lugar estava completamente destruído — prédios bombardedos soltando fumaça, quarteirões inteiros dizimados. Mas em algumas ruas havia lojas abertas e eventuais civis cuidando de suas vidas. Em intervalos de poucos minutos, ouvíamos um míssil ou morteiro explodindo em algum lugar.

Os rebeldes do ELS nos deixaram em uma casa grande no centro de Alepo. Havia muitos soldados do ELS tanto dentro quanto fora dela, correndo e atirando com AK-47. Eles estavam tentando acertar um dos franco-atiradores de Assad, que estava em um prédio do outro lado da rua que servia como atual linha divisória entre as tropas de Assad e o ELS. Essa linha consistia em fileiras de prédios controlados pelo ELS devastados por ataques de mísseis. Os prédios no lado da rua do exército sírio estavam relativamente intactos.

O tiroteio finalmente acabou e os rebeldes que tinham nos levado até lá foram embora, mas não sem nos apresentar a outros rebeldes e dizer para eles que precisávamos de um lugar para ficar.

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“O negócio é o seguinte”, um deles explicou depois. “Estamos aqui para ser mártires. Queremos ajudar o povo sírio. Se um tanque aparecer amanhã e colocar nosso povo em risco, vamos até lá arriscar nossas vidas.” Ele esfregou o queixo e fez uma pausa. “E tenho certeza de que vocês não querem arriscar suas vidas. Morreremos pela causa de Alá. Acho que vocês não querem isso.”

Eu pensei: Caralho. Acabamos de ser deixados no meio de uma zona de guerra. Nossa carona foi embora e não vai voltar. O que vamos fazer se esses caras não nos deixarem ficar com eles?

Acabamos conversando o suficiente com nosso novo amigo rebelde para ganhar sua confiança, e ele nos deixou ir com ele. A troca de tiros tinha acabado, então ele nos levou para dar uma volta nos quarteirões próximos dali na parte da cidade controlada pelo ELS. Ele nos mostrou alguns prédios que haviam sido destruídos por jatos de Assad e uma ambulância incendiada.

Depois, nos levou a uma pequena mesquita, em frente da qual havia um cadáver. Era um policial morto. Ele era um dos homens de Assad e, algumas semanas antes, tinha tentado atirar uma granada na mesquita, mas ela detonou na mão dele. Os rebeldes deixaram seu corpo ali, que desde então havia ficado roxo e amarelo. O fedor era medonho. Foi quando pensei: É, eu não deveria estar aqui. 

Depois nosso guia do ELS nos levou para um shopping center enorme. No térreo, ainda havia lojas vendendo utilidades como comida e pasta de dente, mas o segundo andar estava completamente destruído. As janelas estavam quebradas e as lojas tinham sido todas saqueadas. Entre os destroços havia colchões onde os rebeldes locais conseguiam descansar entre batalhas.

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Lá dentro, fizemos outro amigo anônimo, que nos disse que haveria uma batalha perto dali em algumas horas e que conseguiríamos ter uma boa visão de um dos andares mais altos do prédio. Sua unidade recebera informações de inteligência de que um dos tanques de Assad passaria pela rua, então eles iam armar uma emboscada. Eu disse que queria ir para o último andar — o décimo — para tirar fotos. “Você pode ficar lá se quiser ser morto por um franco-atirador”, ele respondeu. Mas disse que o sétimo andar seria seguro e nos levou até lá antes de se unir a seus companheiros. A vista era ótima. Eu e o Carlos tiramos algumas fotos dos rebeldes correndo pelas ruas, preparando-se para a batalha iminente.

Três ou quatro horas se passaram e nada aconteceu. Fumamos narguilé. Fiquei convencido de que as informações sobre a suposta batalha eram incorretas. Foi quando o Carlos decidiu ir para o térreo para tirar mais fotos, enquanto fiquei no sétimo andar. Foi aí que me ocorreu: Este prédio é bem grande e o governo está mirando os rebeldes… que obviamente têm usado este lugar como sede há algum tempo. Este prédio pode ser bombardeado a qualquer momento.

Talvez minhas entranhas tenham escutado antes dos meus ouvidos, mas um jato passou zunindo bem na hora em que pensei nisso.

Um tremendo estrondo irrompeu, vindo de cima. Meus instintos não estavam funcionando direito. Eu sabia que era uma bomba, mas fiquei lá parado, atônito.

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Um segundo depois, outra bomba caiu, seguida de outra imensa explosão que me tirou do meu estupor. Peguei minhas coisas e comecei a descer as escadas, correndo. Eu gritava o nome do Carlos, porque não fazia ideia de onde ele estava ou mesmo se estava vivo. Encontrei-o no fim da escada, apavorado. Eu devia estar com a mesma cara.

No térreo do shopping, os lojistas se alvoroçavam para recolher mercadoria das lojas e não deixar isca para os inevitáveis saqueadores. Todos os rebeldes já estavam num lugar protegido, menos os dois que ficaram no térreo conosco.

Alguns minutos se passaram sem novos ataques, tempo suficiente para todo mundo dar uma relaxada. O Carlos começou a rir e eu ri junto, a risada típica de quando alguma coisa muito horrível e inacreditável acontece.

Logo em seguida escutei um e, de repente, as pessoas começaram a gritar. Virei e vi um dos membros do ELS que estava bem do nosso lado estirado no chão, com a cabeça sangrando. O crânio dele tinha sido rachado por um pedaço de escombro de um dos andares superiores que estavam desabando. Um minuto antes, ele estava a uns dois metros de mim. Agora, estava deitado no chão, morrendo de hemorragia. Tirei uma camiseta da bolsa e tentei estancar o sangue, mas ela ficou encharcada. Ele perdeu a consciência enquanto outros soldados do ELS arrastavam seu corpo até a rua e o colocaram dentro de um jipe.

“Agora ele é um mártir”, um dos rebeldes me disse em inglês.

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Policial sírio morto em frente à mesquita em Alepo. 

Naquela noite, um soldado do ELS que conhecemos dentro do shopping nos levou para uma base rebelde em outra parte da cidade onde era seguro dormir. Os rebeldes ali foram extremamente legais. Até ofereceram seus próprios colchões e disseram: “Fiquem o tempo que quiserem. Queremos que os jornalistas escrevam sobre a guerra”.

O dia seguinte, felizmente, foi bem mais tranquilo. O novo acampamento incluía uma central de mídia com equipe rebelde e acesso a computadores e internet. Mas a conexão não era muito boa e um grupo de jornalistas sírios estava monopolizando as máquinas. Escrevi uma matéria rápida e enviei para um editor do Independent em Londres, junto com minhas fotos. Eu nunca tinha publicado nada, mas esperava que eles soltassem minha matéria. Um dos jornalistas sírios me tirou do computador antes de eu receber uma resposta.

Os rebeldes nos levaram para Salaheddin, distrito de Alepo que vinha sendo disputado pelos homens de Assad e pelo ELS há semanas. O bairro estava devastado e praticamente todos os prédios haviam sido destruídos. Era difícil de acreditar que uma comunidade tenha vivido ali não muito tempo atrás.

Ao anoitecer, os sons da guerra recomeçaram e não cessaram até o dia seguinte. A essa altura, eu já estava acostumado e conseguia dormir um pouco entre as explosões. Em algum momento ergui a cabeça e percebi que mais ninguém estava acordado e pensei: Foda-se, vou voltar a dormir.

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No nosso terceiro dia em Alepo vimos outro cadáver. Estávamos no meio de uma batalha no bairro de Bab al-Nasr. Cerca de 20 soldados do ELS estavam tentando matar um franco-atirador empoleirado num prédio, e um rebelde foi atingido. Não vi ele levando o tiro, mas com certeza vi ele gritando em seguida. Todo mundo que estava lá ajudou a arrastá-lo até uma caminhonete, onde ele morreu pouco depois.

Naquela noite, de volta à base, conhecemos um cara muito interessante que estava encarregado das radiocomunicações do ELS. Conversamos em inglês, e ele nos contou que todos os rebeldes usavam walkie-talkies e que isso era um grande problema. As tropas de Assad podiam facilmente sintonizar nas frequências deles.

No nosso quarto dia em Alepo, fui acordado às 7h da manhã por uma explosão de bomba próxima de onde estávamos. Alguns outros explosivos caíram e depois tudo ficou quieto.

Fui para fora da base para ver o que tinha acontecido. Um míssil tinha atingido um playground a cerca de 30 metros de nós, deixando uma enorme cratera no chão. Outro míssil havia despedaçado a parede da casa de um homem ali perto.

Uma grande aglomeração de sírios se formou perto de sua casa. Eu e o Carlos fomos até lá para ver o que era. Alguns jornalistas franceses que estavam hospedados na base também foram juntos, assim como vários rebeldes do ELS. Metade da casa estava destruída e seus vizinhos haviam se juntado no pátio. Os jornalistas franceses estavam entrevistando pessoas, quando de repente a multidão de sírios começou a pegar pedras e atirar contra nós.

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“Ah, filhos da puta franceses!”, alguém gritou. “Seus ocidentais de merda.” Aí as pessoas se viraram para os rebeldes, direcionando as pedras para eles. “Saiam daqui”, disseram para nós. “E levem o ELS com vocês.” Só fomos entender exatamente o que eles falaram mais tarde, depois de um rebelde traduzir, mas ficou claro que eles não gostavam de nós.

Fiquei sabendo depois, que os civis de Alepo são atacados por estarem perto de bases rebeldes. Por isso existe muita tensão entre civis e o ELS. Mais tarde vi vários homens do ELS batendo em um lojista porque ele pediu para eles saírem de seu telhado, temendo que um jato pudesse bombardear sua loja. Os rebeldes desceram do telhado e espancaram o homem, depois o trancaram dentro de sua loja.

Mas voltando à aglomeração: as pessoas estavam gritando com os soldados do ELS e atirando pedras neles, e eles gritavam de volta enquanto os jornalistas franceses gravaram tudo. Existem muitos cidadãos em Alepo que não apoiam o que o ELS está fazendo. Eles também não apoiam o que Assad está fazendo. Existe, evidentemente, muita gente que realmente apoia o ELS. A variedade de visões é grande e complexa.

Soldado do ELS sendo socorrido depois de ser atingido por um franco-atirador em Baba al-Nasr. 

Foi naquela tarde em Alepo que a coisa realmente enlouqueceu. Primeiro, nosso guia nos levou para alguns bairros desolados para vermos mais batalhas. Em um deles, conhecemos um americano de origem síria de 18 anos. Ele veio até nós e começou a falar com um sotaque americano. Disse que era da Virgínia e tinha ido para a Síria para se unir ao ELS e ajudar a matar Assad. “Você acha que vou deixar meu povo ser assassinado?”, perguntou. Ele não quis dizer seu nome.

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A essa altura estávamos sendo guiados por outro membro do ELS, que nos levou para uma base onde deu uma entrevista para a Agence France-Presse. Ele contou várias mentiras. Quando os jornalistas franceses perguntaram se eles conseguiam as armas com contrabandistas que entravam pela fronteira turca, nosso guia disse: “Que armas? Essas armas? Não conseguimos pela fronteira. As armas que temos são as que já tínhamos no exército antes de desertarmos. Ainda usamos as mesmas armas”. Não acreditei no que ele disse.

Ele também contou uma história para os jornalistas franceses de como, naquele dia, tinha estado em uma batalha e explodido oito tanques. E eu pensei: Que porra de tanque? Eu tinha passado o dia todo com ele e o único veículo que ele quase explodiu foi seu próprio carro, que ele tinha abastecido com o tipo errado de combustível. Quando o questionamos sobre isso, ele disse: “Ah, é que vocês não viram os tanques explodindo”. Não era verdade. Mas acho compreensível. É propaganda, e o ELS acredita que precisa fazer as pessoas acharam que eles estão dando um couro em Assad para trazê-las para o seu lado.

Depois da entrevista, recebemos uma ligação informando que uma padaria tinha sido bombardeada e que deveríamos ir para o hospital onde as vítimas estavam sendo tratadas. Levamos 15 minutos para chegar e o que vimos foi um verdadeiro show de horror.

Na frente do prédio havia sete ou oito corpos enfileirados contra a parede. Eles estavam cobertos por lençóis, com os braços e pernas rígidos aparecendo por baixo do tecido. Ao lado deles, uma mulher chorava histericamente sobre o corpo do filho morto. Os repórteres se amontoaram em volta dela.

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Foi aí que percebi que talvez eu não tivesse vocação para ser jornalista. Eu não tinha a audácia de tirar uma foto dela. Por fim, acabei tirando algumas, mas foi torturante.

Lá dentro, as pessoas carregavam uma confusão de corpos mutilados. A maioria das vítimas estava consciente e respirava, mas havia sangue por toda parte. Eles tinham uma mangueira de aspirador com a qual tentavam sugar o sangue do chão. Os médicos estavam tentando atender todo mundo ao mesmo tempo e era evidente que estavam passando por um momento horrível, principalmente com um homem cuja cabeça jorrava poças de sangue.

Eu nunca tinha visto nada igual e não estava conseguindo me conter, então saí do prédio. Mas lá fora as coisas não estavam muito melhores. Um caminhão havia chegado e um grupo de homens estava colocando o cadáver de um jovem dentro dele. Homens e mulheres choravam.

Um outro homem chegou com a filha em seus braços. Ela estava com a cabeça sangrando. Ele soluçava e tinha o aspecto tão exausto de tanto chorar e carregar a filha que parecia estar prestes a cair no chão. Alguém pegou a menina e a levou para dentro. O homem desabou.

Como alguém consegue cobrir essas situações? O que eu deveria fazer, perguntar para as pessoas: “Ei, amigo, como você está se sentindo?”. E eles diriam: “Ah, tudo bem, a padaria está sendo bombardeada, minha filha está morta…”. A coisa toda era um horror. Eu só queria sair dali.

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Eu e o Carlos tínhamos planejado ficar seis semanas na Síria. Esse era o nosso quarto dia em Alepo, mas foi nesse hospital que decidi que precisávamos ir embora. Mas o Carlos não queria ir. “Estamos sendo covardes pra caralho”, disse. “Amanhã vai estar tudo bem.”

Pouco depois de deixarmos o hospital, o Carlos também não aguentou. Estávamos em um carro com um membro do ELS. Queríamos voltar para a central de mídia, mas o motorista disse que ela havia sido atacada durante todo o dia por aviões de Assad e que não era mais um lugar seguro para ficarmos. Morteiros explodiam em intervalos de poucos minutos durante nosso deslocamento. E, de repente, um jato apareceu bem em cima do nosso carro. O motorista, temendo que ele atirasse em nós, deu uma guinada até um beco estreito. Ficamos escondidos lá, tentando nos manter fora de vista.

Achei que estávamos seguros, mas o Carlos começou a surtar. “Merda! Merda!”, gritava. “Eles vão vir atrás de nós. Precisamos sair do carro.” E eu disse: “Você está perdendo o controle, porra! Isso não vai ajudar. Se eles virem um homem branco correndo pela rua com uma câmera correndo vão te metralhar”. Isso o acalmou.

Médicos atendem feridos em padaria depois de ataques aéreos das tropas de Assad. 

Naquela noite, como o lugar onde estávamos hospedados havia sido destruído, fomos levados para uma casa segura destinada a jornalistas nos arredores de Alepo. Era onde os jornalistas franceses e os repórteres do New York Times ficavam. Nem sabíamos da existência desse lugar.

Acompanhamos quatro jornalistas na viagem de táxi até lá e quase morremos novamente quando um dos jatos de Assad começou a seguir nosso veículo e um dos repórteres tirou uma foto com flash. O piloto reagiu atirando dois mísseis na nossa direção. Erraram o alvo, mas o motorista quase teve um colapso nervoso. Eu já não conseguia mais acreditar no que estava acontecendo. Foram os dez segundos mais insanos da minha vida.

O taxista ficou gritando com o jornalista que tirou a foto e achei que ele ia começar a chorar. Então perguntei para o Carlos: “Você ainda quer ficar na Síria?”. Finalmente, ele admitiu que deveríamos ir embora.

De algum modo conseguimos chegar até a casa onde passaríamos a noite. Na manhã seguinte, o sírio que administrava o lugar chamou um táxi para nos tirar de Alepo. Mas quando ele chegou, nem eu nem o Carlos tínhamos dinheiro suficiente. Eu tinha levado apenas umas cinco mil libras sírias (cerca de R$ 142) para o país e só tinha sobrado 800. O motorista disse que não era suficiente para nos levar até a Turquia. Disse que, por aquela quantia, poderia nos levar até a cidade de Azaz. Não era muito longe dali, mas só queríamos deixar Alepo, então entramos no carro.

Ao chegar em Azaz, ficou claro que a cidade tinha sido completamente dizimada pela guerra. Encontramos outro táxi lá que nos cobrou US$20 até a fronteira. Como não tínhamos mais dinheiro, acabei trocando meu iPod pela viagem.

Quando finalmente voltamos para a fronteira com a Turquia, três soldados do ELS no lado sírio não nos deixaram atravessar. Eles foram educados, mas firmes. Aparentemente, entramos na Síria ilegalmente e, portanto, não poderíamos sair legalmente. Nossos passaportes não estavam carimbados. Disseram que teríamos que voltar para onde pegamos o táxi e encontrar outra forma de chegar à Turquia.

Pegamos uma carona de volta para Azaz com outros membros do ELS que eram amigos dos guardas da fronteira. Eles nos levaram para lá de carro e depois nos ajudaram a conseguir outra carona de Azaz até uma parte da divisa onde seria muito mais fácil atravessar — um trecho árido onde havia uma fábrica. O cara que nos deixou lá virou para nós e disse: “Ok, chegamos. Agora corram!”.

“E se algum soldado turco resolver atirar na gente?”, perguntei.

“É por isso mesmo que vocês precisam correr!”, ele respondeu.

Cagados de medo, corremos por uns cinco minutos nesse trecho de deserto. Conseguimos chegar em Kilis, na Turquia. Não era a mesma coisa que estar em Londres, mas eu estava feliz por ainda ter um pinto e estar usando meias nos pés. E por não estar mais na Síria. Eu já não queria mais ser jornalista. Pensei em talvez entrar para a política.

Em Kilis, abri meu e-mail pela primeira vez desde que cheguei em Alepo. O editor do Independent tinha respondido. A mensagem dizia que, infelizmente, eles teriam que recusar. E esse foi, sem dúvida, o fim da minha carreira como correspondente de guerra.

Pra ficar por dentro de todas as questões que estão rolando, recomendamos que você leia nossa cronologia ilustrada da tumultuada história síria, “O Caminho da Destruição”. Montamos também um guia com os tópicos mais importantes pra começar a entender as complexidades do conflito: "Guia VICE Para a Síria".