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A arte que os homens não querem dominar: o lavar a loiça

Pratos e tigelas repousam na pia da cozinha, aguardando pacientemente o momento em que serão passados por água.

Lavar a loiça é uma actividade que anda de mãos dadas com cozinhar e comer. Nesta casa existem duas pessoas — ambas comem, mas apenas uma cozinha e lava a loiça. A outra ocupa os seus dias em frente ao televisor/computador, a convencer-se de que é legitimo não fazer coisas porque o seu tempo tem demasiado valor para ser gasto em actividades irrelevantes. Enquanto escrevo, pratos e tigelas repousam na pia da cozinha, aguardando pacientemente o momento em que serão ensaboados e passados por água, para retornarem, por fim, aos armários de onde vieram e que, por vezes, passam dias ou até semanas sem ver. Capítulo I — O mês em que esperei

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Após ser confrontada com o facto de a loiça não ser lavada porque acabava sempre por fazê-lo antes que a outra parte tivesse oportunidade de se dedicar à tarefa, percebi que esse fosse talvez o real motivo do problema. E assim começou o período a que gosto de chamar “o mês em que esperei”. É importante sublinhar que, neste mês, todas as actividades nesta casa se mantiveram, apenas cessou a lavagem de loiça — a não ser as peças que eram estritamente necessárias para comer ou cozinhar, que eram lavadas quase sempre pela minha pessoa, a cozinheira. Cozinhar já é, por si, uma tarefa pouco divertida quando tem de ser realizada diariamente e várias vezes por dia, acrescentando a isso o estado da banca — coberta de loiça suja a emanar odores duvidosos. Ir à cozinha, e especialmente cozinhar, tornaram-se nas tarefas que mais temia realizar: cheguei mesmo a ignorar a fome para não ter de lá entrar.

Claro que, neste mês, alguma loiça foi sendo lavada, mas nunca deixava de haver pratos sujos, porque como “era muita coisa, algumas coisinhas ficavam para depois”. Isto é: numa banca que nunca era lavada, atirar loiça para lá fazia com que a mesma ficasse ainda mais suja. O facto de estar entupida de lixo resultava no seu enchimento de água gordurosa e cheia de pedaços de comida, que cobria os objectos que nela eram depositados temporariamente para serem lavados depois. Estes objectos ficavam 100 por cento cobertos por uma camada de gordura, coisas pegajosas e outros detritos.

O período de espera chegou a um amargo e previsível desfecho — lavei tudo sozinha e a cozinha ficou limpa. Isto aconteceu quando dei por mim sozinha em casa, algo dentro de mim disse: “Chega de viver no lodo.” De mangas arregaçadas, esfreguei toda a loiça, arrumei-a e lavei a cozinha. Deixem que vos diga que há poucas coisas mais nojentas do que extrair lixo que está há semanas no ralo da cozinha. Senti-me suja durante dias.

Capítulo II — A luta continua Convencida de que a arrumação e limpeza da cozinha seriam suficientes para criar uma vontade de a manter igual, achei que o depois ia realmente ser daqui a uma, duas horas no máximo. Mas a realidade atingiu-me na face como um soco gorduroso e peçonhento: nada tinha mudado. Bastou uma semana para a banca estar novamente entupida e decorada com uma pilha de loiça suja, a ficar cada vez mais repugnante. Temendo a repetição do mês anterior, lavei tudo antes que fosse demasiado tarde, reclamando fervorosamente contra a injustiça em que vivia. “Tens de me ajudar!”, dizia eu. Só que para as minhas objecções resvalavam contra: “As coisas não podem ser sempre como tu queres!” Ou ainda contra a brilhante deixa: “Se queres que eu lave, espera. Não vou lavar loiça depois de comer!” [De acordo com o autor da frase, a loiça não pode ser lavada nas seguintes alturas: depois de comer (duas a três horas); depois de tomar banho (duas a quatro horas); depois de acordar (uma a duas horas); enquanto se está a jogar um jogo (??? horas), entre outras coisas do género] Como sempre, havia um ou outro dia em que quantidades significativas de loiça eram lavadas, mas nunca na totalidade. E como não ainda não existia o bem fadado escorredor de loiça, esta era empilhada na banca para ser seca posteriormente (por mim) e arrumada (por mim) — e por vezes lavada novamente, também por mim. Foi numa viagem ao IKEA com a intenção de comprar uma estante que o escorredor de loiça entrou nas nossas vidas, mudando-as para sempre. Capítulo III — Aceitação Após meses de batalhas infrutíferas, de mergulhar as mãos em água com gordura e de ter ataques de choro ao olhar para a banca da cozinha, aceitei o meu destino: a loiça tem de ser lavada por mim e apenas por mim. Sendo que trabalho num restaurante/bar e que muitas das minhas funções envolvem lavar loiça, não tomei esta decisão com ânimo leve. Mas, hoje em dia, a banca nunca fica entupida, a loiça que é lá colocada para lavar mais tarde não fica coberta de lodo e a vida corre sem grandes problemas. Existe ainda a ocasional tentativa de persuadir o jovem namorado a lavar loiça, que hoje resultou neste artigo após o mesmo ter afirmado que eu devia “organizar melhor as ideias antes de falar”, porque aparentemente “invento razões para o chatear”. Há perguntas que, pelo menos por enquanto, terão de ficar sem resposta — será que alguma vez vou voltar a ver a banca do lodo? Será que um dia os gatos vão aprender a lavar loiça, eles próprios fartos da loiça suja? Só o tempo o dirá.