O novo memorial do linchamento dos EUA é devastador, chocante e belo
Uma estátua no Memorial Nacional por Paz e Justiça dos EUA. AP Photo/Brynn Anderson.

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O novo memorial do linchamento dos EUA é devastador, chocante e belo

O museu do Alabama obriga o espectador a confrontar o passado e aponta o caminho para a verdade e a reconciliação.

Eu não achava que um memorial sobre os horrores do linchamento pudesse ser bonito. Mas é exatamente isso o que o Memorial Nacional para a Paz e Justiça, exposto no Alabama, nos EUA, é.

Não sei se é proposital, mas o lugar também tinha o cheiro doce do tabaco, um aroma que alguém que cresceu no Sul como eu não consegue esquecer. Os painéis do memorial que recontam mais de 4400 linchamentos documentados até evocam a cor do tabaco durante a fase de defumação. Isso me lembrou os dias que passei, quando adolescente, colhendo as folhas da planta em fileiras de quilômetros por horas sem fim no calor da Carolina do Sul.

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Minha mãe, meu pai, meus tios e tias colhiam tabaco e algodão – não como uma série de trabalhos de verão que eu meus irmãos e irmãs fizemos, mas para lutar contra a fome e porque qualquer outra opção estava bloqueada para eles. Eles eram obrigados a trabalhar nos campos em que meu avô era arrendatário em vez de sentar numa carteira de escola, até que alguns deles foram para o norte como parte da Grande Imigração que viu milhões de negros saírem do Sul no começo e meio do século 20. Foi a persistência dos linchamentos que transformou os negros em refugiados em seu próprio país.

Antes disso, gerações da minha família foram escravizadas – conseguimos rastrear essa história do lado da minha mãe mas não do meu pai, que era filho único de uma mãe que morreu no parto – num sistema diferente de qualquer outro na história do mundo, um sistema que começou como uma espécie de servidão contratada, mas se metamorfoseou em outro, baseado na cor da pele das pessoas. Esses campos, esses cheiros, ajudaram a me formar. Ajudaram a formar todos nós.

Era nisso que eu estava pensando enquanto passava pelo memorial, e depois pelo Museu do Legado, no centro de Montgomery, os dois criação de Bryan Stevenson e da Equal Justice Initiative. O cheiro me provocou um flashback. A visão de linchamentos documentados em áreas próximas de onde cresci inicialmente me deixaram com raiva, mesmo eu tendo começado a estudar a questão anos atrás. Samuel Gaillard, George McFadden e Samuel Turner foram linchados em Williamsburg, o condado na Carolina do Sul onde minha mãe, aos 13 anos, foi obrigada a casar com um homem duas décadas mais velho. Bruce Tisdale foi linchado em Georgetown, onde me casei, onde a família da minha esposa ainda vive.

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“Acho que deveríamos nos sentir devastados e assombrados por essa história”, disse Stevenson numa entrevista coletiva depois da visita guiada.

Sei que eu me senti.

Havia outras histórias na região, incluindo a de uma mulher chamada Elizabeth Lawrence, que foi linchada em 1933 em Birmingham depois de repreender crianças brancas que jogaram pedras nela. Laura Wood foi linchada em 1930 na Carolina do Norte depois de ser acusada de roubar um presunto. Anthony Crawford foi linchado na Carolina do Sul dois anos antes do nascimento do meu pai por “recusar a oferta de um comerciante branco para sementes de algodão”.

Thomas Miles supostamente escreveu um bilhete para uma mulher branca em Shreveport, Louisiana. O General Lee bateu na porta da frente de uma mulher branca. Um pedreiro negro cometeu o pecado racial de exigir que um colega de trabalho branco devolvesse sua pá. Jesse Thornton não se referiu a um policial branco com o título de “senhor”. Ernest McGowan teve a audácia de dar queixa de um grupo de homens brancos que o tinham atacado. Robert Mallard ousou votar em 1948 na Georgia. Às vezes multidões atacavam comunidades inteiras de pessoas negras porque elas estavam prosperando. Às vezes eles desfilavam com um corpo cheio de balas na frente de casas de negros como um aviso.

A maioria dessas mortes aconteceu no Sul, mas centenas foram documentadas no Norte. Esse era o pior e mais eficiente tipo de terror, muitas vezes cometido em plena luz do dia e na presença de milhares de brancos – homens, mulheres e crianças, que viram Mary Turner e outros serem queimados vivos.

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O feto de oito meses de Turner foi arrancado de sua barriga e pisoteado enquanto o corpo sem vida dela estava pendurado de cabeça para baixo. No Texas, dois homens negros foram queimados vivos e as mulheres de sua família foram estupradas coletivamente. Os assassinatos eram arbitrários e apoiados pelas forças da lei e instituições de todos os níveis do governo. Policiais muitas vezes participavam ou faziam vista grossa. Se era negro, você era culpado dependendo solenemente da discrição dos brancos, sem importar se você era inocente. O grande pecado de um negro, fora ser um homem negro acusado de ter uma relação com uma mulher branca, era ousar apontar crimes onde brancos eram cúmplices.

Essa é a história dos EUA que poucos conhecem ou querem reconhecer. Ela está ligada às leis Jim Crow que acompanharam esse período, e o encarceramento em massa construído principalmente sobre corpos negros que se seguiu. Os linchamentos eram uma consequência direta da escravidão que muitos querem continuar fingindo que não moldou este país de maneiras terríveis. É por isso que a primeira coisa que os visitantes enxergam no memorial é uma escultura brutal de africanos escravizados – incluindo uma mãe, aos prantos, segurando o filho enquanto tenta alcançar o marido – todos usando correntes, algemas e pouco mais que isso. São figuras feias, difíceis de olhar, o desespero em seus rostos inescapável, incluindo o de uma mulher de joelhos. Essa é a parte com as imagens mais fortes do memorial, que conta principalmente com um caminho sereno de painéis gravados com nomes como Charles Shipman, linchado em 1918 em Bend County, no Texas, por “discutir com o proprietário da fazenda onde ele morava e trabalhava”.

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E ainda assim, um memorial que documenta todo esse horror consegue ser belo. Não consigo explicar como. Talvez seja a parede no meio do memorial com uma cascata constante e gentil que me guiou para uma reflexão calma, não uma reação amarga. Isso não me fez esquecer o que vi, o que aprendi. Mas aquela parede, o som da água caindo, ajudou a acalmar minha alma. Me ajudou a digerir a escultura de uma série de homens negros com os braços levantados, sabendo que são considerados culpados até se provarem inocentes, às vezes nem assim.

Talvez essa seja a genialidade do design do museu. Ele não se esquiva nem se refestela nos horrores que te pede para contemplar. Ele deixa claro que os negros eram considerados menos que seres humanos pela Suprema Corte, que vendedores de escravos “estocavam” negros entre porcos, que linchadores achavam que vidas negras eram menos importantes que um presunto, uma pá ou um “senhor” que não foi dito. Ele te agarra pelo pescoço mas não te impede de respirar. Ele confronta sem condenar. Ele dá esperança por meio de esculturas, das pegadas, de mulheres corajosas de Montgomery que foram as catalisadoras do Movimento de Direitos Civis. Elas superaram, e nós também podemos.

Uma citação de Maya Angelou do lado do museu resume bem isso: “A história, sua dor não poder ser desvivida, mas se encarada com coragem, não precisa ser revivida”.

Como Stevenson disse, o objetivo do memorial é começar um processo de verdade e reconciliação – mas a verdade vem antes da reconciliação.

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Antes de passar pelo memorial, eu imaginava se isso era possível, especialmente durante uma era em que supremacistas brancos se sentem encorajados. Fiquei imaginando se eu entraria e a raiva me acompanharia de volta para o mundo, sem que eu percebesse que a raiva que senti era uma raiva não reconhecida que eu trouxe dentro de mim. Eu tinha todo o direito – todo o direito – de ficar com raiva. Todo mundo deveria ter raiva por esse nível de maldade ter existido e continuado por tanto tempo.

“Acho que é importante reconhecermos quando não fazemos o que devemos fazer”, disse Stevenson sobre a necessidade de lidar com esse passado. Esse passado se infiltrou no nosso presente na forma de encarceramento em massa, violência policial, do renascimento da intolerância aberta e marchas de protestos contra supremacistas brancos que acabaram em morte.

“Queremos que todo mundo entenda essa história”, ele disse. “Há uma América melhor ainda esperando para acontecer. Há mais que apenas uma América ainda esperando.”

Quanto tempo essa América ainda vai esperar depende de nós.

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