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Pesadelos são especialmente assustadores quando se tem transtorno mental

Pesquisadores descobriram nova relação entre sonhos ruins e comportamentos autodestrutivos.

Na virada do século passado, Sigmund Freud publicou o revolucionário livro A Interpretação dos Sonhos. Nele, o psicanalista apresenta a teoria de que sonhos são uma representação inconsciente dos nossos medos, ansiedades e desejos. Desde então, aqueles interessados em compreender o comportamento humano se aprofundaram nessa teoria na esperança de encontrar uma ligação entre o simbolismo dos sonhos e a saúde mental.

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Pesquisadores do laboratório Dream & Nightmare em Montreal, no Canadám, propuseram, por exemplo, que "a função dos sonhos é apagar as memórias que inspiram medo e controlar o surgimento de emoções negativas". Em outras palavras, é possível que nossos sonhos sejam imagens criadas para nos fazer sentir melhor. Segundo as descobertas do laboratório, os sonhos têm a função de controlar nossos medos e nos ajudar a lidar com nossas vidas diárias. Os pesadelos, por outro lado, representam nossa incapacidade de regular nossas emoções, o que, considerando o papel dos sonhos, faz deles uma anomalia.

Um novo estudo publicado no Journal of Comprehensive Psychiatry extrapolou ainda mais essa teoria. "A hipótese do nosso estudo é que pesadelos intensos e recorrentes estão relacionados à irregularidade emocional, o que, por sua vez, pode ser observada em pessoas que apresentam comportamentos autodestrutivos não-suicidas", explica Chelsea Ennis, candidata a doutorado do programa de psicologia clínica da Universidade do Estado da Flórida, nos EUA, e uma das autoras do estudo. Os resultados apontam uma relação entre pesadelos e comportamentos autodestrutivos, o que levou os pesquisadores a explorar novas formas de aliviar o sentimento de impotência que os pesadelos podem causar.

O Transtorno de Autolesão Não Suicida, um diagnóstico adicionado recentemente à quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), é definido pelo dano intencional autoinfligido a tecidos corporais sem intenção suicida. "Esses comportamentos incluem se cortar, queimar, arranhar ou bater com o objetivo de aliviar emoções negativas intensas", disse Ennis. Ela e sua equipe definem esses comportamentos como "estratégias de enfrentamento negativas".

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Pessoas que praticam essas autolesões não suicidas apresentam vários outros fatores de risco. "Elas costumam ter um histórico de depressão, ansiedade e trauma emocional, ou uma incapacidade de regular emoções de forma adequada", diz Ennis. Pesquisas indicam que as autolesões não suicidas podem ser observadas em 17,2% dos adolescentes, 13,4% dos jovens adultos e 5,5% dos adultos. Esses números induziram Ennis e sua equipe a investigar a relação entre esses comportamentos e os distúrbios do sono. "Em nossa pesquisa, descobrimos que não havia nenhuma relação significativa entre esses comportamentos e a insônia — mas havia uma relação entre eles e os pesadelos", diz ela. Uma das conclusões do estudo foi que pesadelos poderiam desencadear comportamentos autodestrutivos em pessoas acostumadas a lidar com emoções negativas dessa forma.

Para Genevieve DeRose, 19, de Baltimore, Maryland, o problema começou quando ela era adolescente. "Comecei a me arranhar quando tinha 13 anos. Eu fincava as unhas na minha pele e me arranhava até deixar uma marca". Após seis anos de tratamento contra depressão e ansiedade social, hoje ela reconhece que esse comportamento era sua forma de lidar com sentimentos negativos. "Eu só queria sentir alguma coisa, qualquer coisa. Eu queria sentir dor", diz ela. "E como eu não conseguia expressar essa minha dor emocional, comecei e me machucar fisicamente."

"Eu não me lembro da maioria dos meus sonhos, mas eu passo por períodos de pesadelos intensos e violentos… Eu tinha esse pesadelo no qual eu recebia a notícia de que minha melhor amiga havia sofrido um acidente", lembra DeRose, "a mãe dela ou algum amigo me ligava dizendo que ela não ia sobreviver. Toda vez que eu chegava no hospital já era tarde demais". DeRose passou por períodos em que seus sonhos se tornaram tão aterrorizantes que ela tinha "medo de ir dormir". Hoje, ela reconhece que nesses períodos seus comportamentos autodestrutivos aumentavam.

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Vali Maduro, uma psicóloga que atende na Cidade do Panamá, usa a terapia da mentalização (MBT, na sigla original), cujo foco é ajudar as pessoas a compartimentalizar e racionalizar pensamentos e emoções, para entender esses comportamentos. "Quando uma pessoa não sabe lidar com suas emoções, ela precisa externalizá-las", diz Maduro. "Quando alguém recorre à automutilação, ele está marcando essas emoções no corpo a fim de criar uma semelhança entre o que ele está sentindo internamente e externamente."

A MBT é apenas uma das terapias utilizada no tratamento de pessoas com transtorno de autolesão não suicida. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) e a terapia comportamental dialética (TCD) também têm se mostrado eficazes no tratamento desse transtorno.

No que diz respeito ao tratamento desses pesadelos, em seu estudo Ennis e sua equipe indicam o uso da terapia de ensaio de imagem (IRT, na sigla original). Nesse tipo de terapia, os pacientes são aconselhados a criar finais menos assustadores para seus pesadelos. Ennis acrescentou que a terapia de ensaio de imagem foi bem sucedida no tratamento a curto prazo de pessoas com transtorno do estresse pós-traumático, uma doença conhecida por seus pesadelos intensos e assustadores. "A curto prazo, essa abordagem pode diminuir a frequência dos pesadelos, mas é importante procurar ajudar clínica e/ou médica para tratar a ansiedade e depressão comumente associadas a comportamentos autodestrutivos", acrescenta ela.

Embora o estudo não nos permita afirmar que pesadelos recorrentes sempre levam a comportamentos autodestrutivos, ele estabelece relação importante entre pesadelos e automutilação. Isso significa mais atenção para o problema e, potencialmente, mais financiamento. "É importante que médicos entendam que essa relação existe e que essas descobertas podem ajudar profissionais da área da saúde a determinar se pesadelos podem estar causando ou aumentando a incidência de comportamentos autodestrutivos", diz Ennis.

Como psicóloga que atende crianças, adolescentes e pais, vejo esse estudo como um passo importante para a psicologia preventiva. Ele não apenas amplia o conceito de comportamentos autodestrutivos, mas lança luz sobre o fato de que sonhos não são apenas fragmentos absurdos do nosso subconsciente.

"Quero que todo mundo saiba que aqueles que sofrem com esse transtorno precisam de apoio para concluir o tratamento", diz DeRose, que apesar de ainda lutar contra seus impulsos autodestrutivos, conseguiu encontrar uma forma mais saudável de lidar com seus problemas emocionais, o que inclui a psicoterapia. "Quem sofre com esse problema precisa entender que não é preciso se machucar, mas isso deve ser feito sem acusações ou reprimendas."

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