Todas as merdas que tive que ouvir fazendo a transição para homem na cadeia

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Identidade

Todas as merdas que tive que ouvir fazendo a transição para homem na cadeia

Quando você convive com tanta gente diferente num ambiente tão condensado, isso abre seus olhos e te ensina a não julgar.
MC
ilustração por Matt Chinworth
MS
Traduzido por Marina Schnoor
PD
Como contado a Page Dukes

Matéria publicada em colaboração com o Marshall Project. Assine a newsletter deles.

Só fui ver um especialista um ano depois de decidir começar a terapia de reposição hormonal. A maioria das prisões tem um clínico geral, não um endocrinologista. Então, algemado pelas mãos e pés e com uma corrente na cintura, numa van com três guardas e outro homem trans, rodamos duas horas e meia até a Augusta State Medical Prison no leste da Geórgia, nos EUA. Quando o médico me perguntou por que eu não tinha feito a transição antes, eu disse que tinha sido principalmente por influência da família, mas que não estava mais preocupado se eles me aceitavam ou não. Ele ficou satisfeito. Deu-me uma receita de 100 mg de testosterona para tomar a cada duas semanas.

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Como era proibido para os detentos lidar com agulhas, eu teria minhas injeções administradas pela equipe médica da prisão. Mas quando fui para minha consulta de acompanhamento, a médica na minha prisão estava confusa. Ela viu meus níveis de testosterona e achou que eu já tinha começado a tomar as injeções. Tive que dizer a ela que eu tinha hiperandrogenismo (excesso de hormônios masculinos, uma condição que afeta de 5 a 10% das mulheres em idade reprodutiva), mas ela já deveria saber – ela estava com meu histórico médico aberto na frente dela. Ela virou para a enfermeira e marcou minha primeira injeção. “Quando ela, digo, ele…”, a médica gaguejou. “Bom, você continua sendo ela por enquanto.” “Isso”, disse a enfermeira, rindo.

Elas concluíram que eu tomaria minha injeção na quarta-feira. “OK, obrigado”, eu disse, me sentindo humilhado.

Por que você chamaria alguém de “isso”? As pessoas chamam até cachorros de ele ou ela. Se elas não sabiam como se referir a mim, poderiam ter perguntado. Mas uma parte mais calma do meu cérebro as perdoou, porque sei que pode ser difícil entender para algumas pessoas.

Quando contei para minha mãe por telefone que a enfermeira tinha me chamado de “isso”, ela ficou puta. “Quê?”, ela disse. “Isso?!” Aí, depois de uma pausa, ela disse: “Só não arranje problemas, OK?”

“Não se preocupe”, eu disse. “Não vou.”

Na quarta-feira, esperei a enfermeira me dar a injeção antes de abordar o incidente do “isso”. Como a dose era alta, a médica sugeriu aplicar a injeção no quadril. Não doeu nada. Depois, tentei explicar para a enfermeira como me senti sendo chamado de “isso”. Ela se desculpou e disse que não queria ofender. Expliquei que levei 35 anos para chegar até aquele ponto, por medo do que as pessoas poderiam pensar ou dizer e que eu tinha que continuar me defendendo para não voltar a me esconder.

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Fui o primeiro naquela prisão a ser diagnosticado com disforia de gênero, pelo menos na época em que estive preso. No começo, fiquei apreensivo em fazer a transição. Ouvi que havia riscos de saúde associados com a terapia de reposição hormonal, e eu não sabia se poderia pagar a cirurgia um dia. Não senti que tinha informação suficiente, então deixei isso de lado por um tempo. Mesmo os médicos para quem me mandaram não tinham muita informação, já que estavam mais acostumados a lidar com transição de homem para mulher.

Então aprendi tudo que pude com livros. Um capelão me deu o livro “Becoming a Visible Man” do ativista trans Jamison Green. Era quase um texto sagrado para mim. Lembro de sublinhar quase o livro inteiro. Era a primeira vez que eu lia uma história que parecia com a minha. Me senti conectado com o mundo de um jeito como nunca senti antes, conectado a outro ser humano, alguém que podia realmente me entender. Finalmente.

Todos os caras trans naquela prisão fazendo a transição na mesma época estavam voando às cegas. A gente dizia: “Espera, ninguém me disse isso antes”. No começo ficávamos um pouco constrangidos em fazer perguntas como: “Ei, sua menstruação já parou?” Mas depois disso tudo era permitido. Nos tornamos uma comunidade muito unida.

Quando fui para a casa de passagem para voltar à comunidade e achar um emprego, percebi que as coisas seriam muito diferentes do que eram na prisão por causa das normas de gênero. Eles me levaram para um centro de doação que só tinha roupas para mulher. Pensei: “Cara, prefiro voltar para a cadeia”. Era muito mais fácil ser trans lá.

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Na prisão, as pessoas estavam acostumadas conosco. No mundo livre, as pessoas me encaravam. No começou achei que estava paranoico. Aí percebi que as pessoas estavam tentando descobrir se eu era homem ou mulher. Alguns têm a consideração de perguntar, e prefiro assim. Um cara com quem trabalhei chegou e disse: “Isso é meio constrangedor, mas você prefere ele ou ela?” Eu disse “Não acho constrangedor. Prefiro ele”. Depois disso ficamos de boa.

Outro cara com quem trabalho sabe que sou trans, mais ainda prefere me chamar de ela, e tenho sempre que corrigi-lo. A política do trabalho não permite ter barba, mas outro dia eu disse a ele que vou parar de me barbear para ver se ele para de me chamar de ela. Sempre que ele diz “Obrigado, senhora”, eu digo “Obrigado, senhora”. Quando faço isso ele fica “Quê?” e eu digo “É assim que me sinto quando você faz isso comigo”. Tento esclarecer as coisas para as pessoas quando posso, da maneira mais educada possível. Acho que porque nunca fui alguém que julga, é mais fácil lidar com pessoas que não entendem.

Tem gente que me faz milhões de perguntas pessoais. Todo mundo quer saber sobre a sua genitália. “Você já fez a cirurgia? Como é? Posso ver?” As pessoas nem pensam no que estão dizendo – elas ficam curiosas. Respondo as perguntas até certo ponto. Aí digo “Sabe, tem todas essas informações na internet”. Quero encorajar as pessoas a se educarem; não quero ser grosso porque não quero ser um mau exemplo. Posso ser o primeiro trans que a pessoa conhece. Quem é mais religioso faz comentários como “Deus te fez do jeito que você deveria ser, você não deveria tentar mudar isso”. Mas Deus sempre soube como eu era desde o começo, só estava esperando eu descobrir para viver uma vida melhor e mais completa.

A coisa mais difícil é lidar com a minha família, porque eles não me veem há muito tempo. Tenho um irmão mais velho que não vejo há 12 anos. Quando falamos por telefone, ele diz: “Você só precisa arranjar um homem. Você tem medo de homens, esse é o seu problema”. Eu tinha pesadelos sobre meus filhos não quererem mais falar comigo quando eu saísse, que seria estranho demais para eles, mas eles têm a mente muito mais aberta. Meu mais velho, que tem 21 anos, disse: “Mãe, é 2018. É uma nova revolução de gênero”. E quando vi meu cunhado, ele nem piscou. Mas ele também cumpriu 10 anos de prisão. Talvez por isso ele seja mais compreensivo: quando você convive com tanta gente diferente num ambiente tão condensado, isso abre seus olhos e te ensina a não julgar.

Minha mãe está aceitando. Quando escrevi para ela contando sobre minha disforia de gênero pela primeira vez, ela nem quis reconhecer isso. É por isso que fico inseguro com como minha família vai reagir. Se acham algo desconfortável, eles preferem não falar sobre isso. Não me surpreendo de ter fingido que este homem dentro de mim não existia. Mas se vou ser parte da família quando voltar para casa, não vou deixar me varrerem para baixo do tapete de novo. O tapete já era. Não tem nada no chão. Este sou eu.

Ethan Ybabes, 37 anos, cumpre o último de seus 12 anos de sentença por roubo à mão armada no Lee Arrendale Transitional Center em Alto, Geórgia.

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