Derramar água gelada no ouvido esquerdo é uma cura temporária para a insanidade
Crédito: Sam Thonis/Motherboard

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Derramar água gelada no ouvido esquerdo é uma cura temporária para a insanidade

A estimulação vestibular calórica é um dos métodos mais eficazes para tratar de transtornos mentais. Cientistas agora tentam explicar o porquê.

A negação pode ser útil como mecanismo de enfrentamento. Você pode se iludir e acreditar que está qualificado para o emprego dos seus sonhos, que você vai perder aqueles cinco quilos a mais ou que a AMC vai repetir o sucesso de Breaking Bad com outras franquias.

Entretanto, a pesquisa em neurociência mostrou que há um jeito de liberar as pessoas das garras irracionais da negação. E não é por meio do uso de tratamentos caros ou medicamentos psicotrópicos. Você só vai precisar de um pouco de água gelada.

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No início dos anos 1990, neurocientistas da Universidade de Milão, na Itália, trataram uma senhora de 84 anos, referida aqui como A.R., que sofrera um derrame no hemisfério direito do cérebro. Ela permaneceu alerta e com a mente ilesa, mas insistia que o braço direito não pertencia à ela.

Para tratar da paciente, os cientistas italianos tentaram um método antigo e, digamos, um pouco rústico. Quarenta anos antes, o Dr. J. Silberpfennig descrevera a "ativação" de uma parte do cérebro chamada de sistema vestibular por meio da irrigação do ouvido de um paciente com água gelada. Ao perceber a relação entre o movimento ocular e o sistema vestibular, Silberpfennig utilizou a água gelada como cura temporária em uma paciente que ignorava as informações de metade de seu campo de visão. Segundo os registros, embora apresentasse visão total nos dois olhos, ela agia como se estivesse usando um tapa-olho.

O procedimento, chamado de estimulação vestibular calórica (EVC), é fantasticamente simples. O canal externo do ouvido esquerdo é irrigado com água gelada. E pronto. A diferença de temperatura entre a água e o corpo cria uma corrente de convecção nos fluídos do ouvido, que estimula o nervo vestibular, depois parte do tronco cerebral e um nervo do olho.

Esse processo dá início a um reflexo – uma série de movimentos oculares chamados de nistagmo. O nistagmo é um bônus da estimulação vestibular.

Depois de ter seu ouvido irrigado, o humor da paciente se estabilizou e ela expressou constrangimento pelo comportamento maníaco que apresentara anteriormente.

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Antes da estimulação vestibular, A.R. estava em negação total sobre a posse de seu braço. Ela dizia aos pesquisadores que ele pertencia à sua mãe e que o encontrara na cama da mesma. Imediatamente após a estimulação vestibular, A.R. foi questionada a respeito do braço esquerdo. Ela admitiu que o membro era seu.

Não se trata de um efeito absurdo limitado às pessoas que negam a paralisia; é um efeito esquisito que se aplica a muitas pessoas diferentes em vários estados mentais diferentes. Em um estudo com pacientes que sofriam de dor no membro fantasma (uma condição na qual não há o membro, mas o paciente ainda tem sensações e, muitas vezes, dores intensas), todos os dez pacientes relataram uma diminuição da dor após a EVC.

Uma mulher com transtorno bipolar severo foi tratada, com sucesso, com a EVC em meio a um intenso episódio maníaco depois que os medicamentos antipsicóticos e a terapia eletroconvulsiva falharam. Depois de ter seu ouvido irrigado, o humor da paciente se estabilizou e ela expressou constrangimento pelo comportamento maníaco que apresentara anteriormente.

E não são somente em casos extremos nos quais a EVC mostra efeitos. Pesquisadores do Reino Unido e da Suíça observaram pessoas com otimismo irrealista quando pessoas saudáveis subestimam seus infortúnios futuros. Após a EVC, o otimismo irrealista foi reduzido significativamente. Os pesquisadores também estavam observando os efeitos da EVC no humor de indivíduos não maníacos (na situação com a paciente bipolar, a EVC pareceu diminuir o humor positivo); em capacidade de fala após um derrame (a EVC parece melhorar a linguagem), além da tomada de decisão de comprar um produto (a EVC reduziu a probabilidade do desejo por um produto, bem como de sua posterior compra).

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Agora, os pesquisadores estão usando a EVC em um trabalho inovador. Estudiosos da Inglaterra e da Itália publicaram um artigo no qual investigaram os efeitos da EVC na dor. Eles mostraram que a EVC pode aliviar a percepção, o processamento e a decodificação da dor no sistema nervoso. "Aqui, mostramos, pela primeira vez, que a EVC de gelo no ouvido esquerdo reduz as respostas iniciais à estimulação puramente nociceptiva", afirmam os autores Ferre, Haggard, Bottini e Iannetti.

Pode até parecer que o EVC é uma cura mágica para tudo. Mas será que devemos irrigar constantemente nossos ouvidos com água gelada? Se estivermos em estimulação vestibular perpétua, a sociedade seria lógica e racional, e não haveria religião nem capitalismo. Basicamente, tudo aquilo previsto na música Imagine do John Lennon se tornaria realidade.

Ok, talvez não seja tão realista assim.

Para começar, a temperatura e a vertigem que acompanham a EVC são extremamente desconfortáveis. A sensação é parecida à de receber um dedo molhado no ouvido durante o inverno em uma viagem de montanha-russa.

E também ainda não está muito claro como e quando a EVC funciona.

O Dr. V. S. Ramachandran, conhecido como o Neil Armstrong da neurociência, foi um dos primeiros pesquisadores a utilizar a EVC com a anosognosia (uma consciência debilitada de uma doença ou deficiência, o mesmo transtorno que A. R. tinha) uns poucos anos antes de a Universidade de Milão tê-la usado em A. R.

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Conhecido por suas teorias inovadoras, Ramachandran tem algumas hipóteses diferentes para o fato de que a EVC produz esse efeito interessante. Ele propôs que a água gelada no ouvido esquerdo poderia estimular o hemisfério direito, onde poderia haver um "detector de anormalidades", ou que o ato poderia causar a própria reorientação do cérebro a esse esquema de referência novo. Ele também levantou a hipótese de que o nistagmo (os movimentos loucos dos olhos) poderiam estar ligados ao sono REM e a recuperação das memórias reprimidas.

Desde então, os pesquisadores tiveram várias opiniões acerca dos efeitos da EVC: se eles acontecem em decorrência do efeito de reorientação ou por causa de uma interação entre o nistagmo e o sistema vestibular.

Há também discussões sobre como a EVC poderia afetar um indivíduo saudável. Se os efeitos acontecem graças a uma reorientação, uma interação ou mesmo por causa de memórias reprimidas que promovem uma reconfiguração de fábrica em seu cérebro, não parece haver nenhum tipo de crença irracional; parece funcionar somente se você já teve alguma crença irracional, consciente ou subconsciente que agora está armazenada em outro lugar. Então, embora pareça satisfatório irrigar o ouvido esquerdo de um educador religioso e questioná-lo a respeito do criacionismo, não é provável que suas crenças mudem sob a ECV.

Além disso, a racionalidade reconstruída é temporária. A quantidade de tempo da duração varia de pessoa para pessoa.

Para A.R., a noção de sua paralisia e a posse de seu braço durou somente algumas horas após a estimulação vestibular. Os pesquisadores repetiram a estimulação outras três vezes. Em cada uma delas, A.R. confirmou que seu braço esquerdo pertencia a ela, sob o efeito da estimulação vestibular. Ela voltou ao estado de negação logo após a estimulação vestibular. Após a última estimulação, A.R, argumentou com os pesquisadores a respeito da situação e afirmou que o braço pertencia a seu filho: "Veja, é esquisito, mas é assim que é. Simplesmente encontrar o braço do seu filho na sua cama!"

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri