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Desporto

O jogo de basebol que conta uma história americana de violência

O Bartman foi um miúdo vítima do fanatismo desportivo.

Os Miami Heat são campeões do mundo de basquete. Os Boston Red Sox são campeões do mundo de basebol. Desde a madrugada que passou, os

Seattle Seahawks

 são campeões do mundo de futebol… americano. O argumento que justifica o nome dado aos campeões nacionais nos EUA em cada uma destas categorias é também defensável para fundamentar a convicção de que serão portugueses os imperadores universais incontestados na disciplina da sueca (e parece que são mesmo). Ainda assim, as competições internacionais de basquete encarregam-se de, volta e meia, nos contar uma ou outra piada gira que, sendo a excepção que confirma a regra da supremacia, dá vontade de rir na cara do inevitável etnocentrismo (lê-se “fanfarronice”) norte-americano em relação a este desporto. Como óptimos sketches cómicos, relembremos a derrota de 2006 aos pés da Grécia ou a final olímpica de ‘72, um dos melhores thrillers sobre a Guerra Fria alguma vez escritos. Em 2003, o Sporting Kansas City ganhou a MLS Cup, mas ninguém se lembrou de coroá-los como campeões do mundo de futebol, vá-se lá saber porquê. Parece que eles não ligam muito ao soccer.

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É assim que os fãs de basebol vêem cada jogo da sua equipa: cada vitória na competição interna é um passo rumo ao título mundial, as World Series (a final em que se defrontam os vencedores de cada uma das duas ligas nacionais, a American League e a National League). Foi com isso em mente que os adeptos dos Chicago Cubs acorreram ao estádio da sua equipa, naquele dia de Outubro de 2003. Confiante numa vitória que abrisse as portas da grande final, Steve Bartman comprou um bilhete caríssimo para um dos melhores lugares de toda a arena. Colocou um boné e uns headphones na cabeça (como fiel fã hardcore, não queria perder o relato na rádio) e vestiu a camisola da equipa de jovens que treinava — os “Renegades”. O meu europeísmo teimoso impede-me de compreender muito do que se passa numa arena de basebol, mas tudo o que é preciso saber é que o jogo ia correndo de feição aos Cubs, que lá seguiam na frente do marcador sem que os Florida Marlins oferecessem oposição. Durante uma paragem no jogo, o comediante Bernie Mac até aproveitou a deixa para pegar no microfone e cantar sem qualquer pudor “Let’s Go Champs”, só porque sim. O sexto jogo do play-off estava a correr demasiado bem.

O MOMENTO BARTMAN

Há no basebol uma pequena glória ao alcance de adeptos sortudos: quando a bola sobrevoa a arena e vai em direcção à bancada sem que ninguém em campo possa alcançá-la (a chamada “foul ball”), qualquer adepto pode tentar agarrá-la.  Para além da glória momentânea do feito, leva também para casa um autêntico troféu — e muitas destas bolas são vendidas a bom preço em leilões. Acontece que, por vezes, a linha entre o espaço da bancada e do campo é muito ténue. A história do basebol é bastante eloquente em relação a momentos ridículos, isto é, daquilo que é comummente chamado de “fan interference”. Casos como

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este

,

este

 ou

este

. Mesmo ridículo, certo? Imaginemos que algo

semelhante

 ou

pior

 sucedia no nosso desporto favorito? Ui, que horror, o melhor é nem pensar nisso.

E se uma bola da fase regular do campeonato é valiosa, uma bola da final da liga seria um objecto sagrado. Quando um jogador da equipa adversária, os Marlins, dá uma estocada numa bola que trazia um efeito traiçoeiro, Steve Bartman ter-se-á levantado. Esta vinha mesmo na sua direcção, imparável. Deve ter percebido imediatamente que aquela era a sua bola, aquela que um dia haveria de mostrar aos seus netos e orgulhar-se com um “eu estava lá”. Enquanto a bola cruzava o ar, mais pessoas se aproximaram daquela esquina do campo… E como todos os filmes sobre basebol são um esterco, a realidade, sempre ela, incumbiu-se de escrever o melhor argumento possível:

Dramático? Não, os Florida Marlins pontuaram, para continuavam atrás no marcador. No entanto, o resultado era um pequeno pormenor na tragicomédia que já começara há muito, bem antes do próprio jogo, muito anterior a toda a época de 2003. De facto, todo o baú de recordações dos adeptos dos Cubs faz a maldição de Béla Guttmann soar a brincadeira. Meia dúzia de factos descrevem um século de sofrimento: a última vez que ganharam as World Series foi em 1908, nunca conseguiram um título no seu Wrigley Field (o segundo estádio mais antigo da liga) e não conseguem sequer chegar à final desde a Segunda Guerra Mundial. Durante esse preciso período, em 1945, foi pedido a um famoso adepto local que abandonasse o estádio dos Cubs pelo simples motivo de ele ter levado uma cabrita (ou um bode, se quiserem) para o jogo. Irado com as acusações de mau cheiro, o adepto, Billy the Kid, lançou a inefável praga: os Cubs nunca haveriam de ganhar mais nada na vida.

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Portanto, aquele momento do vídeo em que o jogador Moisés Alou manda os adeptos da sua equipa para o raio que os parta é o preciso momento em que se abre a caixa de Pandora da “má onda” endémica da equipa de Chicago. O sentimento geral de qualquer pessoa presente faz lembrar o daquela personagem do Hunter S. Thompson: “I think I’m getting the Fear”. A televisão, que raramente perdoa, cumpriu de forma exímia a sua nobre função: focou o pobre Bartman até mais não, como se não houvesse mais jogo, como se ele fosse o principal

highlight

. Na rádio, o tema era o mesmo — e o simples fã ia ouvindo tudo, através dos headphones, aninhado na sua cadeira. Na bancada, pouco tardou até que começassem os cânticos ofensivos, os copos de cerveja a voar, o enxovalhamento completo. Depois, o rapaz teve mesmo de ser retirado da bancada.

E o jogo? Para ajudar ao circo, os Cubs desperdiçaram a vantagem que tinham e, entre erros crassos e infantis, entregaram a vitória ao adversário. O play-off estava empatado, mas já sabia a derrota. O derradeiro encontro de desempate era apenas uma nota de rodapé do verdadeiro objectivo em causa: crucificar aquele pobre coitado que fez uma coisa que qualquer adepto de basebol faria e que, com isso, apenas lixou uma bola a um jogador que até nem era um especialista em as apanhar no ar, enquanto nada assegurava que fosse mesmo capaz de o fazer naquele instante. Chicago entrou num transe colectivo e o auto-de-fé pôs-se em marcha. Os média, novamente diligentes, fizeram de questão de descobrir o nome do adepto, de publicar a sua morada, de lançar mil directos desde a sua rua e de insistir doentiamente em trocadilhos parvos sobre os “Renegades”, o nome da tal equipa de miúdos treinada por Bartman. E a internet fez render o festim.

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O J.D. SALINGER DO DESPORTO

Foi o que lhe chamaram — a metáfora é forçadíssima, mas tem a sua graça. Mudou de casa, de emprego, de vida, Steve Bartman desapareceu do mapa. Tudo o que dele restou foi a memória do fatídico jogo e foi sobre ela que se fizeram as danças mais macabras. Um dono de um restaurante comprou a bola em leilão por cerca de 113 mil dólares, a um espertinho que no meio da confusão conseguiu agarrá-la do chão.

"É como o anel d’O Senhor dos Anéis e nós somos como o Frodo, a tentar ultrapassar isto", disse o novo dono. E por isso l

ançou uma mini-festa para rebentar a bola em público e, ao arrepio das sensibilidades da ASAE, destilou parte dos restos para fazer molho de tomate. A outra metade dos restos continua exposta no restaurante. Ah, e conseguiu aumentar os lucros em 20 por cento.

A cultura pop também haveria de digerir o tema à sua maneira: um realizador chegou a revelar a ideia de levar a história ao cinema (venha daí mais um esterco de filme sobre basebol),

um episódio de Law & Order

 explorou mesmo o filão e há

uma rábula em Family Guy

 em que o Stewie convence um rapaz de boné e headphones de que é completamente boa ideia tentar apanhar uma bola que vem para a bancada, num jogo de basebol. No Halloween, há sempre um tipo que se disfarça

daquela maneira

. Já Bartman foi o único que nunca lucrou 1 dólar com a sua triste façanha. Nem com entrevistas (ou com

Catching Hell

,

 o documentário), nem com contratos publicitários, nem muito menos com um convite para uma sessão de pseudo-psicologia pornográfica no programa do inenarrável Dr. Phil.

Dizia o treinador de futebol (do nosso, mesmo) Joaquim Meirim que a bancada é aquele lugar em que, para o bem e para o mal, se localiza o mínimo denominador comum entre o intelectual e o carroceiro, em que os comportamentos de um e de outro não variam assim tanto. Em Chicago, e como manda o Levítico, os adeptos expiam os seus fracassos colectivos com sucessivos bodes expiatórios (desde o chibinho de Billy the Kid até ao braço esticado de Bartman) e não parecem dispostos a aceitar que a raíz do seu mal é a autofagia psicótica que despedaça o clube na sua base — eles mesmos, a “fanbase”. E aquele tal derradeiro jogo com os Marlins? Perderam-no. Tal como perderam qualquer jogo de play-off dos últimos dez anos. Em 2013, entraram em bancarrota. E a culpa nunca foi do Bartman.