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Educação Ocupada

Spray de pimenta na cara, 40 estudantes e dois jornalistas presos: o saldo da ação da PM com estudantes das ocupações do RS

"Mais alguém vai querer sair pacificamente? Não? Tá. Pode tirar esse rapaz [diz a um colega] e vamos lutar."

A quarta-feira (15) de manhã que poderia marcar um acordo entre governo do estado e estudantes das ocupações do Rio Grande do Sul, terminou com 42 presos. Entre eles 40 estudantes - 32 deles menores de idade - e dois jornalistas que cobriam a ocupação do prédio da Secretaria Estadual da Fazenda, em Porto Alegre. A Brigada Militar - Polícia Militar gaúcha - não poupou spray de pimenta e disparou contra estudantes, pais, apoiadores, advogados e professores que acompanhavam a ação no local.

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Foto: Matheus Chaparini / Reprodução Youtube

Um resumo rápido dos fatos da semana que culminaram na ação realizada nesta quarta. Depois de 32 dias de ocupações e sem acordo com o governo do estado, na segunda-feira, os estudantes ocuparam a Assembleia Legislativa. Na terça à noite, grupos ligados a coletivos e entidades como União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e União da Juventude Socialista (UJS) sentaram-se novamente com a Secretaria de Educação e entraram em acordo para desocupar as escolas.

O acordo aceito pelo grupo de representantes incluía repasse de verbas atrasadas e de R$ 40 milhões para obras emergenciais até o final de junho, aumento da verba para merenda "dentro das possibilidades financeiras do estado" (atualmente, o valor é de cerca de R$ 0,30), não levar o PL 44 a votação pelos próximos seis meses e "manter diálogo e respeito", garantindo que estudantes das ocupas não seriam penalizados na volta às aulas.

Foto: Ocupa Godói

Mas outro setor das ocupas, reunidos no Comitê das Escolas Independentes (CEI), não aceitou o acordo. Eles classificaram a negociação como "antidemocrática", já que "a ampla maioria dos estudantes que ocuparam por semanas as escolas não puderam opinar na decisão final". Antes mesmo de qualquer assembleia ser realizada, na manhã da quarta-feira, o grupo de estudantes do CEI ocupou a Secretaria da Fazenda tentando pressionar o governador José Ivo Sartori a recebê-los. E aí deu ruim.

Vídeo: Matheus Chaparini

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Os estudantes entraram no edifício por volta das 8h30, cerca de uma hora depois a Brigada Militar e o Batalhão de Operações Especiais (BOE) já estava no local para retirar o grupo. Um vídeo gravado no local pelo repórter Matheus Chaparini, do Jornal Já, mostra um dos policiais militares tentando negociar a saída dos jovens do prédio. Ele diz que vai perguntar "pela última vez, quem quer sair" e complementa: "Ninguém? Então vou tirar à força. Já foi dado ordem. Vou tirar à força".

A seguir, as imagens mostram os policiais arrastando os estudantes pelos braços e pelas pernas. Para alguns alunos que resistem, o policial diz: "Mais alguém vai querer sair pacificamente? Não? Tá. Pode tirar esse rapaz [ diz a um colega] e vamos lutar", enquanto puxa o spray de pimenta e começa a disparar contra os estudantes a poucos centímetros de distância.

Foto: Ocupa Godói

O repórter que seguiu filmando a ação com o celular pergunta aos policiais se não deveriam haver policiais mulheres no local para abordagem das estudantes e se identifica como jornalista. O policial pede que Chaparini aguarde no canto e diz: "Para mim tu tá junto, lá embaixo tu te identifica. Ficou o tempo todo aqui". Chaparini se identificou outras duas vezes como jornalista para os policiais durante os 6 minutos e 24 segundos de gravação.

Quando já descia as escadas para sair do prédio, o repórter também filma um homem mascarado, sem farda ou identificação. O homem tenta tomar o equipamento do repórter e ele pergunta: "Eu preciso para trabalhar, eu sou da imprensa. Por que tiraste de mim? Tu é da polícia, amigo?". O homem não responde e enquanto o repórter segue indagando quem é ele, se é um policial a paisana, outros brigadianos o retiram do prédio. Segundo Chaparini, mais tarde, o homem se identificou para advogados como "um funcionário terceirizado da segurança". Ele não respondeu o porquê da máscara.

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Foto: Matheus Chaparini / Reprodução Youtube

No final da ação, 32 jovens foram encaminhados a Delegacia Especial da Criança e do Adolescente (DECA) e os 10 maiores de idade para a 3ª Delegacia de Pronto Atendimento (DPPA). Entre os presos estavam os jornalistas Matheus Chaparini e Kevin Darc, que gravava um documentário independente junto aos estudantes.

As três estudantes maiores de idade foram encaminhadas ao Presídio Feminino Madre Pelletier, local que abrigou presas políticas durante a ditadura militar. Os sete homens foram levados ao Presídio Central, o mesmo que a CPI do sistema carcerário da Câmara dos Deputados classificou como o " pior presídio do país". No início da madrugada de quinta-feira, depois do trabalho dos advogados, eles conseguiram liberdade provisória.

Um batalhão contra 50 estudantes

Ao mesmo tempo que a Brigada Militar estava realizado a desocupação forçada da Secretaria da Fazenda, representantes dos estudantes estavam reunidos com Ministério Público, Defensoria Pública e Secretária de Educação em busca de um novo acordo. Na reunião, segundo Tainara Carozzi, do Comitê de Apoio às Ocupações (CAO), representantes do governo tentaram garantir a desocupação imediata das escolas, mas o acordo ainda teria de ser levado aos demais estudantes.

Quando a reunião terminou, perto das 11h15 da manhã, os estudantes já estavam dentro de camburões sendo levados a delegacia. "Eles estavam sentados ali conosco, tentando garantir acordo e a ação já estava ocorrendo", diz Carozzi.

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Foto: Ocupa Godói

Os advogados dos estudantes relatam ainda que a princípio a Brigada Militar não permitiu que tivessem acesso aos estudantes. "Nem a conselheira tutelar deixaram entrar. Eles me barraram. Quando cheguei eles estavam sendo retirados pelos policiais e praticamente atirados para dentro da van. Só consegui ter acesso a eles quando a van já estava saindo", conta Camila Menoncin, também advogada do CAO. Os advogados relatam que os pais dos alunos também tiveram acesso cerceado.

Onir Araújo, advogado de movimentos sociais que chegou ao local após ser chamado por uma mãe de estudante, afirma que a BM não deu alternativas. "Em muitos casos de menores que eu vi, superava a agressão, era tentativa de homicídio. No meu entendimento, eles foram submetidos a situações similares às de tortura. Muitos tinham hematomas pelo corpo, inclusive mulheres, muitos com queimaduras no rosto em função do spray de pimenta disparado a curta distância", relata ele.

Os advogados questionam a desproporcionalidade da ação: um Batalhão de operações especiais da polícia foi mobilizado para negociar com 50 estudantes. Eles também relatam que os exames de corpo de delito foram realizados mais de 4 horas depois da ação. Algumas marcas de agressão e os efeitos do spray de pimenta já teriam diminuído.

Vídeo desmente a versão contra jornalista

Em nota a Secretaria de Segurança Pública (SSP) defendeu a ação da Brigada Militar. Ao contrário do que foi relatado por estudantes, advogados e pelos vídeos, o governo mantém que a BM "seguiu à risca todos os procedimentos cabíveis e esteve aberta ao diálogo ao longo de todo o processo".

A VICE entrou em contato com o Comando de Policiamento da Capital (CPC) para saber sua posição a respeito da ação dos policiais que aparecem no vídeo divulgado nesta quinta-feira à tarde pelo Jornal Já. O Tenente Coronel Mário Ikeda, responsável pelo órgão, disse que só a Secretaria de Segurança Pública se pronuncia sobre o assunto. Já a Secretaria reiterou que só fala através de notas e avisará quando tiver nova manifestação sobre o caso.

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O vídeo do Já desmente a versão oficial da Brigada Militar e dos policiais da delegacia responsável por lavrar flagrante, de que o repórter Matheus Chaparini não teria se identificado como jornalista. A Secretaria de Segurança Pública publicou uma segunda nota afirmando que o repórter estava "agindo como integrante do grupo militante que praticou a invasão" e que ele só se "identificou como jornalista quando já estava consumada a prisão pelo ato de invasão", portanto, sua prisão (que a nota chama de "custódia", mas o texto define como "prisão") teria ocorrido "em virtude do ato individual de invasão, do qual ele foi parte ativa, e não do exercício da atividade profissional de jornalista".

Foto: Ocupa Godói

Chaparini, no entanto, conta que em momento algum recebeu ordem de prisão. "Até achei que eles iriam me soltar quando chegássemos na delegacia", diz ele. Além de ter se identificado aos policiais nominalmente, como aparece no vídeo, ele apresentou duas credenciais - uma do Jornal Já e outra da Assembleia Legislativa - e antes de entrar no edifício, para acompanhar a ocupação, havia participado de uma coletiva de imprensa com o comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, em frente à secretaria. Chaparini perguntou a ele se "teria uso de força pela BM" naquele dia.

"Eu acho que estava no único lugar em que poderia estar, que era onde estava a pauta. Não sei se a questão era com o jornal (o Já é um jornal de mídia indepedente) ou com a cobertura, porque tinha vários jornalistas ali", conta ele. Na delegacia, enquanto era feita a triagem dos detidos, a delegada responsável pelo caso perguntou "nome, idade, profissão" e Chaparini conta ter respondido mais uma vez: "minha profissão é que a eu estava exercendo dentro da ocupação, sou jornalista".

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Aos 27 anos, ele era o mais velho entre os detidos pela polícia. O jornalista e os estudantes permaneceram em custódia do estado durante 14 horas. Eles só foram receber alimentação depois das 20h, quando aguardavam na triagem do Presídio Central.

Foto: Ocupa Godói

Na quarta, o radialista da Rádio Gaúcha, Felipe Daroit, publicou em seu Twitter imagens de um canivete que teriam sido encontrado com os estudantes e de móveis supostamente quebrados durante a ocupação. Procurado pela VICE, Daroit conta que só entrou no prédio junto aos demais jornalistas, depois da perícia, e que recebeu as fotos da Brigada Militar e da assessoria de imprensa da Secretaria da Fazenda. Ele não soube dizer onde os canivetes foram encontrados, nem se estavam entre os pertences dos estudantes ou se foram retirados em uma revista. As notas da Secretaria não mencionam objetos que tenham sido encontrados junto aos estudantes.

Os advogados que auxiliam o grupo de estudantes desconhecem a existência dos canivetes. "A perícia ontem foi feita somente pela polícia, sem acompanhamento de ninguém. Mas não sei se eles foram questionados porque não estava presente, sequer falaram sobre isso comigo e não teve revista", afirma Camila.

Entre as acusações que recaem sobre os 42 presos estão: dano qualificado contra o patrimônio do estado, esbulho possessório, associação criminosa e resistência. No caso dos dez maiores de idade, há ainda acusação de corrupção de menores. Inclusive para os dois jornalistas. Os advogados aguardam a denúncia do Ministério Público para ver se será aberto processo.

Segundo Chaparini, a denúncia de resistência foi retirada, mas ele ainda está em liberdade provisória e tem de comparecer à Justiça se convocado. O grupo de advogados também estuda junto às famílias e aos estudantes a possibilidade de abrir uma ação contra o estado.

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