No mercado de capitais quanto mais sociopata melhor
Ilustração por Juliana Lucato.

FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

No mercado de capitais quanto mais sociopata melhor

Regras para se dar bem ou não, no mercado financeiro.

Eu era uma jovem recém-formada em busca de um emprego e quando me dei conta tinha me tornado junior broker em uma das maiores corretoras de valores do país. Mas o que uma jovem progressista do Partido Democrata está fazendo no meio da piscina de tubarões de Wall Street?

De forma muito simplificada podemos estabelecer o mercado de capitais como um grande garimpo, como a mítica Serra Pelada: a corretora tem uma licença para explorar ouro em Serra Pelada. A Corretora recruta jovens ambiciosos e lhes oferece a oportunidade de buscar ouro, além de ensinar as habilidades e oferecer as ferramentas necessárias para ser um garimpeiro. No garimpo, assim como no Mercado de Valores, persistência, consistência nos golpes de enxada e sorte são elementos essenciais para se encontrar ouro ou abrir contas de clientes milionários buscando ficar ainda mais ricos. Durante o percurso, o garimpeiro dedicado vindo de uma universidade importante, com alguns idiomas e experiência na bagagem, vai encontrar algumas pepitas, maiores ou menores, mas o que quer mesmo é encontrar um grande veio, tirar todo o ouro para pagar os rentistas e garantir comissões em dólar caindo em sua conta corrente. Parecia bastante simples e lá estava eu, junior broker na Serra Pelada do Mercado de Capitais.

Publicidade

Eu não era exatamente uma hippie, mas minha visão política à esquerda, as rodas mulheristas africanas faziam de mim exatamente o oposto de um conservador ou neoliberal (me desculpem o termo) como eram ou diziam ser meus novos colegas de trabalho. Mas mesmo assim, eles viram algo em mim. Descobriram que por trás daquele coração vermelho batendo do lado esquerdo do peito existia uma jovem muito ambiciosa. E não importava se para comprar um carro de 200 mil reais ou se para fundar uma ONG para crianças carentes, todos estavam lá pelas verdes eu não era uma exceção.

A possibilidade de garimpar no mercado em nome de uma grande corretora me intrigava e eu sentia que de certa forma meu valor social tinha aumentado. As pessoas agora respeitavam que eu fazia. Mesmo quando eu dizia que era uma pessoa boa, que estava lá por acaso, as palavras "investimentos internacionais" ou "produtos financeiros offshore" faziam olhos brilharem e sacavam suspiros de orgulho. Que sorte eu tinha, diziam eles, enquanto eu tentava entender um mercado imaginário onde mais da metade de todos os ativos financeiros do planeta estão investidos e não conseguia não pensar que estamos todos numa grande merda.

Economicismo e desejo

Jesse Souza em sua obra "A Tolice da Inteligência Brasileira" explica que "O economicismo é a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos." Ou seja, que todas as interações humanas são secundárias perante o Capital e seus caprichos. É nesta perspectiva que se desenvolve uma relação função-corpo entre os trabalhadores e o mercado, cuja principal conexão é o poder e o desejo humano. É a partir da vontade de ter, de pertencer que se sustenta a base do capitalismo. O desejo é a faceta mística do mercado financeiro agindo de forma intensa e misteriosa sobre as pessoas que se submetem a ele.

Afirmar uma condição de mero corpo-funcional ao ser humano, tornar o corpo dócil, produtível e encantado em sua utopia alimentada pelos filmes norte-americanos é a função inicial da ideologia da economia de mercado. O céu é o limite para aqueles que trabalharem duro, dizem analistas de RH recrutando os melhores candidatos. Mais do que um perfil intelectual, para manter sua estrutura o Capital busca uma permissão do sujeito para a máquina capitalista invadir seu corpo e codificar os fluxos dos desejos e valores conduzindo o indivíduo a assumir determinadas formas de ser e pensar. A falta de empatia com outras pessoas, frieza de caráter, capacidade de manipulação são ferramentas essenciais em um ambiente onde características negativas são recompensadas. Primeira regra do jogo: quanto menos você se importar com as pessoas, mais chance tem de se dar bem nesse negócio.

Publicidade

Ilustração por Juliana Lucato.Quando o economista-chefe para a América Latina da agência de classificação de risco S&P, Joaquim Cottani, defendeu publicamente a não-intervenção do Banco Central brasileiro no preço dólar em disparada em outubro de 2015 para estimular o desemprego e derrubar a inflação, ele estava sendo mais do que um analista eficiente. Estava sinalizando sua falta de empatia com quem perderia seu sustento e total apego às regras do capital como valor primordial em detrimento das pessoas. É preciso mais do que simples distanciamento para ser o homem mau, o que traz as más notícias, o que influencia a vida e a sorte de bilhões de pessoas jogando seu jogo de números imaginários onde vence quem destruir mais vidas humanas. A sociopatia, ou os traços dela, passa a ser necessária e esperada, pois o homem comum é inseguro, sente pena, teme a deus. No mercado financeiro não há espaço para isso e todos os dias aspirantes a lobos chegam em Wall Street sedentos por sangue.

Always be closing

Ao entrar a primeira vez no escritório iluminado não pude deixar de notar que meus companheiros eram todos uma versão piorada e vermelha de sol do Leonardo di Caprio em O Lobo de Wall Street: tinha o Leo menino prodígio dos negócios enriquecendo aos 21 anos, tinha o Leo ex-galã tiozão ainda em busca do primeiro milhão, tinha o Leo gângster, cheio de segredos e visitas repetidas ao banheiro… Tudo parecia bastante encenado, forçado e numa busca constante de validação de identidade com as referências que são as mesmas em todos os filmes de investidores de mau cárater que vivem dias de glória e derrota no Financial District.

Observando a movimentação no escritório em um edifício novo onde não havia o 13º andar para não trazer má sorte aos negócios, percebia que a estratégia de sobrevivência era justamente a identificação com o pior do capitalismo predador tanto no que se refere ao plano de valores quanto de percepção do outro. Coffee is for closers only.

É a individualidade, materialidade, meritocracia do inferno. Seja oferecendo investimentos internacionais aos clientes ou durante as horas de lazer, a competitividade era forjada continuamente: é preciso ganhar no jogo de golfe, ficar em primeiro na corrida de kart, gastar mais do que o colega no camarote ou no carro novo. Uma cansativa competição interminável de todos contra todos. Regra número dois: ninguém é seu amigo, mas todos parecem ser.

Publicidade

Eu não tinha a menor chance. É preciso estômago e energia para a vida no garimpo, além de amplo esforço da minha parte para fazer parte daquela encenação. Eu era humana demais, me preocupava, temia pela segurança do dinheiro dos meus clientes, queria dormir até mais tarde no sábado de manhã e fazer aulas de mandarim depois do expediente. Mas meu dever era trabalhar de sol a sol garantindo que ricos ficassem cada vez mais ricos, dando o máximo possível pelo mínimo que a empresa quisesse pagar. Aliás, o mínimo que eu mesma pudesse me pagar, segundo a teoria da chefia da empresa. Terceira regra: você ganha pelo volume, trabalhe mais. Nunca pare de trabalhar.

Que graça tem ter tanto dinheiro se eu não puder me abanar com notas de 100 no escritório na frente de todos?

Num lugar onde a moralidade é limítrofe, as relações pessoais legítimas são enfraquecidas impedindo a criação de laços autênticos, tanto com clientes quanto colegas de trabalho. As relações mudavam de acordo com o leader board, a divulgação diária dos resultados de todos os brokers. Quem estivesse no topo era o líder temporário da matilha que todos respeitavam, mas não perderiam a chance de fazer o que fosse para estar no seu lugar. Essa competitividade que os defensores do capitalismo afirmam ser imprescindível do ponto de vista econômico é nefasto sob o aspecto social e humano. A corrida de ratos nunca acaba e para mim, que estava por último, era ainda pior.

Publicidade

Por mais que a economicismo nos iluda com palavras como globalização, a economia não é global. O que é global é a comunicação e os serviços financeiros. Na primeira entrevista para o que seria meu emprego pelos próximos dois anos, escutei que no escritório em Londres, sede da empresa, os juniors como eu não recebem salário, apenas vale transporte, e há uma fila de jovens aguardando a oportunidade de serem explorados pelo mercado. Eu deveria agradecer, estava dentro. "Mas lembre-se", disse o chefe com seu sotaque escocês e camisa de grife incrivelmente justa: "Você deve se pagar. Tem que pagar seu salário e trazer lucro para a empresa". Confirmei com a cabeça, mas nunca entendi esse conceito, por que que eu trabalharia para outra pessoa se eu mesma pudesse me pagar? Não inverta as regras, eu trabalho, você paga!

"Se você tiver outros interesses na vida, não vai ser bem-sucedida neste mercado." "Eu apenas malho, durmo e trabalho aqui." "Eu prefiro não almoçar para ter mais tempo para fazer as ligações." Foram algumas das muitas frases que ouvi daqueles cara brancos em seus paletós caros, que me fizeram questionar que tipo de pessoa se presta a essa devoção quase religiosa e se eu estava suficientemente disposta a abrir mão da minha alma para concorrer a uma viagem a Las Vegas com tudo pago pela empresa em companhia do meu gerente de negócios.

Existem histórias de superação, trabalho duro, crescimento pessoal e profissional. Há trabalhadores felizes praticando a corretagem, vivendo essa cultura a fundo e aqueles que legitimamente ou não, querem um pedaço de bolo que é o maior de todos. Esses caras existem, eu conheci muitos deles. Mas junto com eles existem maníacos, egocêntricos que preenchem suas existências com bônus, spreads e o que estiver no script e for necessário para validação daquela cultura.

Publicidade

Eu sabia que não tinha mais tempo lá. Apenas respondi à mensagem me chamando para a sala de reunião e já sabia o que poderia esperar.

- Vou ser bastante direto: você acaba de perder uma conta e decidimos que você não tem o perfil que procuramos na empresa.
- Mas eu só perdi a conta porque o compliance não aceitou o documento do cliente! O que queria que eu fizesse, falsificasse o documento?

Ele me olhou de forma muito sincera e falou:
- Eu queria que você tivesse ao menos cogitado fazer isso.

Eu entendi.

Peguei minha caixa com minhas coisas e voltei para o mercado de busca de um novo emprego.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.