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O Novo Capitalismo Afegão

Hoje, o Afeganistão produz o grosso dos opiáceos do mundo. Estima-se que mais de 90% do ópio do mundo, ou da heroína bruta, sejam produzidos lá.

POR SHANE SMITH, FOTOS POR THORNE ANDERSON

Não é mistura para bolo de chocolate (é ópio).

A primeira coisa que você percebe no voo de Dubai para Cabul é que os passageiros da classe executiva do avião parecem ter saído diretamente de uma agência de figurantes: homens grandes e musculosos na faixa dos 40 anos usando roupas da North Face como se fosse um padrão governamental, com cortes de cabelo estilo militar e a postura de um soldado com o coturno de um major enfiado bem no meio do traseiro por 20 anos ou mais. Eles levam suas sacolas cheias de bebida do duty-free perto do corpo (há uma escassez de álcool no Afeganistão), discutem alto sobre qual província é mais barra pesada e estão indo para Cabul por um motivo. Para ganhar dinheiro. Quase todo dinheiro que circula atualmente por Cabul vem das empresas para as quais esses homens trabalham. Existem as multinacionais subcontratadas para realizar projetos do governo, existem ainda mais ONGs internacionais com seus próprios projetos de desenvolvimento e inúmeras entidades assistenciais que estão se estabelecendo no Afeganistão com cofres aparentemente infinitos. Todas essas organizações precisam de homens destemidos que não tremem ao som da “guitarra afegã” (ou de uma AK-47) para conduzir suas boas ações, então esses sujeitos chegam em Cabul com suas garrafas de Jack Daniels, seu comportamento belicoso e um saldo de periculosidade. O problema é que os afegãos empreendedores que se deram conta disso estão tirando o máximo de proveito. Quando os EUA invadiram o país, sequestros eram raros e, na maioria das vezes, tinham motivações políticas. O valor médio do resgate era uma quantia extraordinária para muitos afegãos, US$ 10 mil, mas uma merreca para as companhias de seguro que faziam os pagamentos em nome das ONGs e entidades assistenciais. Quando os afegãos se deram conta disso, os sequestros aumentaram, assim como o valor do resgate – US$ 100 mil. Agora, os sequestros são comuns, e os resgates? Um milhão e meio de dólares, ou praticamente o limite de uma apólice de seguros. Muitos dos homens que estavam no meu voo já tinham sido sequestrados – um ex-fuzileiro naval, que foi fisgado três vezes, falou com muito entusiasmo sobre a hospitalidade de seus captores muçulmanos: “Nunca comi umpilaftão bom na minha vida! Engordei cinco quilos”.

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Seria isso um esboço feito pelo Johnny Ryan ou o graffiti afegão mais puro e anti-heroína de todos os tempos?

Quando esses homens chegam em Cabul são recepcionados por equipes de segurança e seus respectivos comboios de veículos blindados. Tudo é feito praticamente como uma operação militar, extremamente planejado. Eles são levados para seus QGs, que em geral ficam nas únicas propriedades habitáveis (e defensáveis) da cidade, chamadas de “bolos” pelos locais, porque a) parecem bolos e b) são pagas em “açúcar mascavo”, que é heroína – a outra fonte de renda real do país. Até pouco tempo atrás, esses palácios de papoula eram o lar dos poderosos dos narcóticos e da indústria de guerra afegã. Agora eles têm aluguéis entre US$ 50 mil e US$ 60 mil, alguns chegam a custar US$ 100 mil por mês. São ultraextravagantes, têm ouro emtudoe emtodaparte. Todos os cômodos têm banheiro, incluindo a cozinha, a sala de jantar e o escritório (encanamento interno é uma raridade na maior parte do país), e alguns tetos chegam a ter entre 60 e 70 lâmpadas espalhadas (a eletricidade também é rara, então, já que você tem, por que não iluminar tudo?). Os senhores das drogas pagam esses aluguéis exorbitantes e constroem ainda mais exemplares luxuosos da narcoarquitetura em Cabul e em suas províncias de origem. Hoje, o Afeganistão produz o grosso dos opiáceos do mundo. Estima-se que mais de 90% do ópio do mundo, ou da heroína bruta, sejam produzidos lá. Uma quantidade enorme de haxixe e maconha também vai para as províncias do Sul e do Oeste que fazem fronteira com o Paquistão e o Irã. As drogas, de uma maneira ou outra, contabilizam a maior parte do PIB do país. E enquanto os EUA estão no processo ostensivo de construir a nação do Afeganistão, essa cultura da papoula é aceita, senão abertamente consentida – o que significa que, se seguirmos a lógica de que os EUA estão controlando o Afeganistão (e estão), os EUA não são apenas o maior mercado de drogas do mundo, mas também são oficialmente o maior traficante de drogas do planeta.

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Os “palácios do cocô” que achamos foram concebidos como se Liberace fosse um muçulmano fundamentalista que vendesse heroína e sequestrasse gente.

Em dezembro, durante uma filmagem de um episódio para nossa sérieVice Guide to Everything, visitei a casa de um déspota conhecido, que tem uma ordem de prisão do governo americano por produzir quantidades enormes de ópio. Supostamente, ele está foragido, mas, estranhamente, entre seus dois vizinhos mais próximos estão o Ministério da Fazenda do país e a agência de segurança interna, ambos eficazmente controlados pelos EUA. Então, temos um traficante procurado morando confortavelmente ao lado das pessoas que deveriam prendê-lo. Isso me faz pensar no nível de hipocrisia da “guerra às drogas” nos EUA. Recentemente, os EUA ultrapassaram a Rússia em tempo de ocupação do Afeganistão, chegando ao décimo ano de presença oficial. Mas a contribuição americana para a cultura afegã consiste em grande parte em bases militares, um governo fantoche, bombardeio pesado, tropas e manobras de política externa quase incompreensíveis. Os americanos praticamente não saem das bases, e a interação com a população local consiste basicamente em ataques de aviões Predator não tripulados – motivos suficientes para o Talibã recrutar homens-bomba na região. Desde que os EUA assumiram o controle do Afeganistão, a economia da país é baseada em suborno, sequestro, extorsão e drogas, e apesar de todos os esforços contrários, os EUA estão apenas adiando o retorno de um dos passatempos nacionais do Afeganistão: a guerra civil. Quando perguntamos, a maioria dos afegãos apela para um chavão: quando os EUA vieram para o Afeganistão pela primeira vez nos anos 1970, havia um Talibã em todo país, hoje existem 50 mil e haverá 500 mil quando forem embora. Por causa da má administração, de políticas confusas e do apoio contínuo ao governo corrupto e odiado do presidente Hamid Karzai, os EUA estão criando o Talibã no Afeganistão. Enquanto fazem isso, também estão praticamente garantindo que o próximo regime no Afeganistão depois da sua retirada seja o Talibã.

Quando drogados atravessam as fases alucinógenas da heroína, retirar-se é o jeito, sabe? Dois burros avançando na direção deles com heroína o suficiente nas costas pra matar todo o Lower East Side por volta de 1979?

Perguntei a dois dos meus guarda-costas, ambos cazaques da região Norte do Afeganistão, sobre a ameaça de guerra civil após a retirada dos EUA. Eu estava preocupado com eles, uma vez que não tinham barba, usavam roupas D&G falsificadas e cabelo penteado para trás (o que seria registrado pelos muitos “observadores” de Cabul e relatado). O jeito deles de se vestir e seus modos eram tão ocidentalizados que eu os apelidei dehipster helpers. Perguntei o que aconteceria com eles se o Talibã e sua lei implacável assumissem o poder. “O Talibã não vai assumir o poder”, eles disseram. “Por que não?” “Porque vamos matá-los.” “Mas e se eles derem um jeito?” “Aí… estamos mortos.” Ah.