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Dormi na Es.Col.A. na noite em que não houve despejo

Húmus ao acordar e ioga matinal. A rotina de terroristas municipais.

Imediações da Es.Col.A. na manhã do dia 26, um dia depois da re-ocupação pacífica. A polícia não me deixou tirar fotos, mesmo depois de me ter identificado como jornalista. Saquei esta enquanto ninguém estava a ver, estavam todos mais ocupados a assentar tijolos nas portas e janelas da antiga escola.

Foi numa quinta-feira, dia 12 de Abril. Entrei na Escola do Alto da Fontinha por volta das duas da tarde. Ninguém me perguntou o que estava ali a fazer, aceitaram-me imediatamente. A maior parte do pessoal estava na cozinha a acabar de almoçar.

“É sempre a mesma coisa, são sempre os mesmos a lavar a loiça”, queixa-se um rapaz enquanto uma das vizinhas lá do bairro se oferece para ir a casa buscar detergente. Parece um dia normal no Es.Col.A. (Espaço Colectivo Autogestionado) não fossem as tendas espalhadas pelo recreio e as chamas de soldar que vêm de dentro do edifício. Hoje é o último dia da ordem de despejo imposta pela Câmara Municipal do Porto (CMP) e toda a gente está à espera que, durante a madrugada, alguém lhes venha dar um chuto-no-cu colectivo. A história vem de trás: em Abril de 2011 o pessoal instalou-se nesta escola abandonada há cinco anos, usada exclusivamente como sala de chuto. Dois meses depois estavam a ir porta fora, mas o colectivo voltou a ocupar a escola e, durante um ano, tornou-a num espaço de cultura e lazer, com workshops de pintura, aulas de línguas, capoeira, teatro e outras cenas. A princípio, o pessoal do bairro estranhou, mas como era tudo à pala começaram a aparecer e a escola do Alto da Fontinha acabou por servir de infantário onde deixavam os putos depois das aulas e de refeitório da comida que faltava em casa. A CMP é que não curtiu, cenas à pala não é com eles. Depois de várias tentativas de negociação, a única coisa que propôs foi um contrato, não negociável, de três meses (não renováveis) com uma renda de 30 euros. Uma ordem de despejo disfarçada de acção de beneficência. Claro que o pessoal do Es.Col.A. não aceitou. A desculpa para os tirar de lá é um alegado projecto que a CMP tem para o espaço, mas que ainda ninguém percebeu muito bem o que é ou quando é que surgiu — nos cinco anos em que esteve abandonada é que não foi, certamente. De repente, dois polícias passam lá fora e toda a gente se levanta, em alerta, mas eles limitaram-se a ir embora enquanto alguém cá dentro fecha o portão. A polícia não é bem-vinda aqui. A agitação só se faz notar mais ao fim da tarde, quando começam as reuniões para planear a defesa da escola, separada por três grupos: o da rua, o do pátio e o do edifício. A equipa da rua está encarregue de vedar o caminho à polícia, usando móveis para tapar a única passagem por onde os carros podem entrar. A ideia é retardar a entrada na escola para dar tempo ao pessoal do pátio de se organizar. Há vários sub-grupos: seis ou sete pessoas acorrentam-se aos postes da entrada e o quadrado — onde eu estou inserida — é um grupo de pessoas que se sentam no chão, pernas e braços entrelaçados de forma a que a força de cada um se funda e multiplique: por muito que se tente puxar ou empurrar, ninguém sai do sítio. Os outros dois sub-grupos vão receber as visitas como deve ser, são o grupo do ioga e o dos palhaços. Tudo isto está pensado para atrasar a entrada dos indesejados. O último grupo barricou-se para tentar resistir o máximo de tempo possível. Estão aqui cerca de uma centena de pessoas para defender o Es.Col.A.. Aguardam pacientemente, uns cá fora, enquanto aprendem a fazer malabarismo ou tentam dar umas voltas numa bicla quitada, outros na cantina, a dormir para recuperar as energias. Ninguém sabe exactamente o que vai acontecer, mas todos querem mostrar que ninguém sai de livre vontade, que pretendem resistir até ao limite do possível. Às seis da manhã é hora do despertar. Na cozinha prepara-se o pequeno-almoço: húmus, uma pasta de grão-de-bico esmagado com azeite, que se espalha pelo pão, ou uma tijela de cereais para quem prefere uma coisa mais tradicional. Lavados os pratos, toda a gente vem para o pátio. Começa a espera. Oito da manhã e não há despejo. Entre as conversas que agora enchem o recreio, um rapaz faz os seus exercícios matinais, as pernas torcidas por cima da cabeça, e alguém começa uma sessão de ioga. A sério, ioga às oito da manhã? Sinto-me tentada a dar razão à CMP, este pessoal deve ser perigoso. Com aquela elasticidade toda uma pessoa pode fazer, sei lá, estacionar o carro em cima do passeio da Praça Filipa de Vilhena ou privatizar um teatro municipal num negócio pouco transparente. Apesar de tudo, e paradoxalmente, a ausência da polícia faz nascer um sentimento de decepção. Está toda a gente pronta para receber os senhores de azul e não vem ninguém. Viriam, claro, uma semana depois. À cobarde, cem homens armados até aos dentes acompanhados de bombeiros na ignorância para expulsar vinte pessoas com narizes de palhaço, todos abraçados uns aos outros num quadrado. O Es.Col.A. só cometeu um crime: as palhaçadas são uma actividade exclusiva dos políticos.