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Guimarães

Aproveitar o património para sacar estrageiras

É necessário dominar todo o zeitgeist da cultura indígena e dos arredores.

O centro histórico de Guimarães, Património da Humanidade há mais de dez anos, é um centro medieval mágico que nos põe a pensar nos reis e nas rainhas que viveram alegremente nesta terra. Agora que a cidade é Capital Europeia da Cultura, e está cheia de gente nas ruas, dou por mim a pensar que Guimarães até parece Paris, de tão cosmopolita.

Nós, os vimaranenses, aproveitamos bem o nosso património. Vamos para as esplanadas do centro fumar cigarros e beber cervejas, sempre com a intenção de ver se nos safamos num intercâmbio cultural com alguma das muitas estrangeiras que se passeiam pela cidade. Eu faço parte desse grupo e, para chamar a atenção às moças que vêm de fora, é preciso alguma arte. Tens de ter os adereços certos, como a agenda cultural num braço, o Les Cahiers du Cinema no outro, um pin da Capital Europeia na lapela e um chapéu da Cervejaria Martins na cabeça para proteger do sol inclemente. Assim, é garantido que tens o kit básico de sobrevivência para o engate. Tentem dar uma de intelectual, mas não se esqueçam dos adereços. Fui nestas condições para o Toural e o meu charme vimaranense começou a surtir efeito. Uma americana veio meter conversa, a dizer “how lovely” que a cidade era e coisa e tal. Apresentei-me como um vimaranense adiantado mental, que estava ali na capital da cultura como autóctone, um belo exemplar de aborígene culto, que dominava todo o zeitgeist da cultura indígena e dos arredores. A americana apresentou-se como poetisa e cantora. “Tipo Amélia Muge?”, peguntei e ela explicou que o seu género era o spoken word, que escrevia letras que depois recitava sobre uma batidinha house. Ou seja, qualquer coisa entre a Ursula Rucker e a Simone a cantar por cima do Larry Levan. Disse-lhe que esse estilo passava na Trás-Trás, mas que entretanto o espaço foi transformado em igreja evangélica. E assim fechei o assunto, sem ter de fingir que não sabia o que era o spoken word antes desta conversa. Perante a minha sapiência, ela assumiu que eu podia dar-lhe umas dicas sobre poesia portuguesa. Já lhe tinham indicado um poeta que era nada mais, nada menos, do que o Luís Vaz de Camões. "FODA-SE, CAMÕES?", pensei eu. Tanto poeta vimaranense: Zeca Paulo, Carlos Poças Falcão, Florbela Espanca, que esteve alojada em Gonça, Barroso da Fonte (que é transmontano, mas vive em Guimarães) e ela queria que eu lhe falasse de um gajo que escreveu uma epopeia em decassílabo há, tipo, coisa de 500 anos? Lá lhe tentei explicar que Guimarães era uma cidade à parte. Que o símbolo da cidade era o brasão do Vitória de Guimarães e que o próprio Afonso Henriques, que não sabia ler nem escrever, foi o modelo para fazer o logótipo da Capital Europeia da Cultura. Fundou um país e tinha dois olhos. Consegui convencê-la que toda a obra do Camões não valia grande coisa, tirando aquele poema que ele escreveu, o do "batem leve, levemente". Esse é fixe e até me admira ter sido um renascentista a escrevê-lo. Achei que foi um momento de justiça poética, pois finalmente vinguei a proposta, chumbada há uns anos, de trocar o Dia de Portugal do 10 de Junho para o dia da Batalha de São Mamede. E a americana ficou a saber como se faz cultura na nossa cidade. O Camões pode ter escrito um livro, mas há melhor manifestação cultural do que criar um país?