O Homem Obcecado por Vidro
​Crédito: Marc Falardeau/Flickr

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Tecnologia

O Homem Obcecado por Vidro

Logo depois de ter conhecido Tarun Chitra, ele destruiu todas as minhas ilusões sobre o vidro.

Logo depois de ter conhecido Tarun Chitra, ele destruiu todas as minhas ilusões sobre o vidro.

Era uma noite de sexta no começo de setembro, o ar ainda com aquele clima de verão e estávamos na casa de um amigo antes de sairmos para dançar.

Chitra trabalha com um de meus colegas de quarto em ma empresa de pesquisa bioquímica chamada D.E. Shaw Research, com sede em Nova York. Ele está tentando descobrir como as moléculas de vidro se comportam, mas em um nível além dos modelos e simulações comumente utilizados por físicos.

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Ao invés de empregar modelos simplificados que essencialmente tratam moléculas como bolas em uma piscina de bolinhas, Chitra usa um supercomputador personalizado para rodar complexas simulações de moléculas de vidro que representam átomos de verdade ligados entre si por molas.

Além de ampliar a compreensão dos físicos quanto ao funcionamento do vidro, a pesquisa de Chitra poderia levar à produção de melhores tecnologias de vidro desde o resistente Gorilla Glass à melhores lentes óticas e vidros super fortes e ultrafinos que poderão ser utilizados com fibra ótica e nanotecnologia.

Vidro não é sólido, mas não é exatamente líquido também

Na minha experiência, perguntar a alguém sobre sua pesquisa pode ser imensamente recompensador ou tremendamente tedioso, mas eu estava na caçada por boas matérias de ciência, então resolvi tentar. Fora isso, curtia o estilo de Chitra: cabelos desgrenhados que decidi indicarem que ele priorizava o pensar ao invés de se preocupar com aparências, uma voz sutilmente nasal que supus que cairia bem com explicações sobre física, e meias de cores não fabricadas pela Crayola, que invejei profundamente.

Logo de cara Chitra largou dois fatos que me surpreenderam. Primeiro, vidro não é sólido (que eu sabia) – mas não é exatamente líquido também (o que eu achei que era). Segundo, vidro não é só aquele material à base de sílica que usamos para fazer garrafas e janelas. De fato, praticamente qualquer líquido, incluindo água, pode virar vidro se for resfriado além de seu ponto de fusão com velocidade o bastante.

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Daí Chitra começou a falar sobre filmes e contradança. Foi aí que soube que o que me esperava era uma baita aula de ciências. Ao final da conversa, ficou claro para mim que é vidro é um bagulho bizarro e que cientistas sabem relativamente pouco sobre ele.

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Talvez confundamos o vidro com um sólido por ser rígido e manter sua forma quando o tocamos, de acordo com Chitra. Mas se observássemos um vidro a nível microscópico, veríamos algo diferente. "O vidro é surpreendente porque é extremamente rígido, mas quando você mede suas propriedades, ele se parece exatamente com um líquido", disse. As moléculas do vidro estão espalhadas por toda a parte e não embaladinhas naquela bela estrutura que confere aos sólidos sua rigidez.

Parte da confusão sobre onde o vidro se encaixa em relação a sólidos e líquidos tem a ver com escala temporal, disse Chitra. Encare isso como as taxas de quadros em um filme, sugeriu. "Um sólido é um quadro único que nunca muda. Já um líquido se assemelha a um filme em velocidade normal. E o vidro é um filme que roda tão lentamente que leva sua vida inteira para passar um segundo."

Então mesmo que um único quadro de moléculas de vidro se assemelhe a um único quadro de moléculas líquidas, as taxas entre elas são muito diferentes. A taxa de quadros do vidro é tão lenta que parece agir como um quadro estático de um sólido. "É como se eu desse a você uma foto e dissesse 'Me fala se isso foi feito por uma câmera fotográfica ou de vídeo'", disse Chitra. "O vidro é como ver um filme tão lento que parece que o quadro simplesmente não muda."

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Mas não é como se o fosse um líquido marcha-lenta também. Na real, o vidro se diferencia dos líquidos de maneiras essenciais.

Resfriar basalto derretido na água cria um vidro

Para entender isso, ajuda saber como o vidro é formado. A criação de vidro envolve o resfriamento muito rápido de um líquido, um processo também conhecido como temperar. Resfriar um líquido além de um ponto determinado experimentalmente chamado temperatura de transição vítrea (temperatura esta que varia a cada material, e também depende da taxa de resfriamento) resulta em vidro. Não temperar o suficiente gera um líquido super resfriado, um material meio viscoso que flui como mel, mas que se assemelha ao vidro em nível molecular.

"Pense no líquido super resfriado como algo que está em vias de se tornar vidro", disse Chitra.

Líquidos super resfriados são altamente viscosos, como mel

Coisas esquisitas acontecem quando você tempera um líquido. Assim que a temperatura vai abaixo do seu ponto de fusão, ele tenta mesmo formar um sólido. Mas como o resfriamento é tão rápido, as moléculas no líquido não tem tempo o bastante para se arrumarem direitinho em camadas. O que significa que o produto final não é bem sólido.

Geralmente quando a matéria muda de um estágio para o outro, libera certa energia chamada de calor latente. A água libera calor latente quando vira gelo. Mas quando líquidos viram gelo, eles não liberam este calor.

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Então tem mesmo algo rolando com o vidro que não acontece com sólidos e líquidos. Mas como o vidro se comporta a nível molecular segue um mistério. É isso que Chitra está tentando entender. Parece que o vidro é governado por um conjunto completamente diferente de regras, disse. Para explicar o fenômeno, ele faz três analogias com a dança.

"Moléculas sólidas são como um monte de idosos de 60 anos em um asilo, numa pista de música lenta", disse. Cada pessoa arruma um par e vibram um pouco por aí. Eles não vão muito longe de onde começar, e todos ao redor fazem o mesmo. Se você ver de longe, parece que ninguém se move.

"Já um liquid é como um bar de solteiros", disse Chitra. "As pessoas dançam, piram, esquecem seus pares, os nomes, saem feito doidos. É tudo muito rápido."

E então temos o vidro. "O vidro é como uma dança folclórica do leste europeu ou uma contradança", afirmou Chitra. "De primeira parece tudo ser muito estruturado, nada muda, e de repente rolam umas mudanças aleatórios."

As moléculas de vidro comportam-se como dançarinos em uma contradança

Em uma dança típica romana ou húngara, por exemplo, podem ter 100 pessoas divididas em grupos de 10 pessoas, e cada uma destas 10 fica de mãos dadas em um círculo. em seus grupos, os dançarinos meio que se compartam como os dançarinos no bar de solteiros dos líquidos. Eles seguem mudando de pares até terem dançado com todo mundo. Mas ao contrário da galera no bar, os dançarinos continuam dentro de seus círculos. No caso do vidro, explicou Chitra, os dançarinos continuam nos mesmos círculos para sempre. Em um líquido super resfriado, eles ficam em um círculo por determinado tempo e então mudam subitamente.

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Dentro da dança folclórica, também parece que os grupos estão se comportando diferentemente. Quando o cientista estuda materiais, geralmente mede-se um parâmetro chamado de tempo de relaxação. No geral, as moléculas querem existir com o menor nível de energia que puderem. O tempo de relaxação refere-se ao tempo que leva para as moléculas encontrarem uma configuração relativa à suas vizinhas que minimize sua energia.

No escopo da analogia de dança feita por Chitra, podemos encarar o tempo de relaxação como a quantidade de tempo gasta pelos dançarinos com um par antes de trocar por outro. Com sólidos e líquidos, o tempo de relaxação é praticamente o mesmo, independente das moléculas medidas e quantidade destas.

Crédito: Tarun Chitra 

"Então se estou em um bar para solteiros, e pego dez pessoas aleatórias e lhes pergunto quanto tempo gastam dançando com cada par, a resposta média seria mais ou menos a mesma se perguntasse a 100 pessoas", disse Chitra.

Mas no caso de um vidro ou líquido super resfriado, a variação é muito maior, de acordo com Chitra. "Se pego dez pessoas e todas estão próximas uma das outras, elas darão a mesma resposta", disse. "Mas se escolho dez pessoas de outra parte do cômodo, a resposta será diferente. E caso pergunte a 100 pessoas, verei muitos ambientes locais diferentes, como se fossem pequenos grupos diferentes".

O resultado é que vidros são feitos de aglomerados moleculares com viscosidades muito diferentes, declarou Chitra. "Um aglomerado pode ser viscoso como água, enquanto outro é praticamente sólido e nunca muda. E outro é como mel, e ainda outro se assemelha a óleo de motor."

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No nível microscópico, o vidro parece ser composto de aglomerados de molécula próximos com diferentes viscosidades, um fenômeno conhecido como heterogeneidade dinâmica. Crédito: Tarun Chitra

O mecanismo exato por trás deste fenômeno, a heterogeneidade dinâmica, é uma das muitas questões que frustram os pesquisadores. Está claro que ocorre algo de estranho com o vidro, termodinamicamente falando.

Alguns cientistas creem que o vidro é seu próprio estágio natural, ainda operando sob regras termodinâmicas previsíveis, que tentam minimizar a energia no sistema. Outros pensam que o vidro não se encaixa no equilíbrio termodinâmico, ou seja, moléculas de vidro seguem em suas posições iniciais, mesmo que estas não sejam as mais energeticamente favoráveis. O não-equilíbrio explicaria porque as moléculas de vidro retêm a memória de sua posição inicial de forma que moléculas líquidas não o fazem.

***

Heterogeneidade dinâmica é um termo que também define bem Chitra. Além de pesquisar vidro, ele escala rochedos regularmente, vai a shows de música eletrônica que tomam a noite inteira durante a semana, pedala de 40 a 80 quilômetros por semana e cultiva interesses de longa data por café, startups de tecnologia, informática e aprendizagem de máquinas.

Ele atribui seu interesse pela ciência ao seu pai, químico, e sua mãe, matemática, além de ter assistido muitos episódios de Nova, especialmente um que falava sobre trens de levitação magnética que o fizeram pirar em supercondutores por toda a vida. Sua educação primária consistiu basicamente no método Montessori de educação e muito de sua infância se deu entre olímpiadas matemáticas e científicas. Aos 11 anos, ele ficou em segundo lugar no Kids Jeopardy (de três competidores, esclarece logo).

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Aos 10 anos, Chitra entrou numas de pirataria online, primeiro para assistir filmes de censura maior, e então como motivo de orgulho. Junto de um amigo da escola, ele administrava um canal de pirataria no IRC chamando #warezpunks.

"Eu tinha esse desejo de ser dono do maior canal de IRC de todos", disse Chitra. Sonho esse que se realizou: na semana de seu 12º aniversário, #warezpunks era o maior canal de pirataria no IRC.

Por volta daquela época, Chitra desenvolveu uma obsessão concomitante com Alexander Shulgin, o bioquiímico que apresentou o MDMA a psicólogos nos anos 70 e muitas vezes é considerado "o padrinho da psicodelia".

Comentei que ele parecia ser um rapazinho de 10 anos pra lá de rebelde. "Falando assim parece que eu era bem mauzão, mas na verdade com certeza era o mais nerd ali", disse Chitra.

Em Cornell, onde Chitra cursou a faculdade, ele fazia uma média de oito matérias por semestre e se formou com louvor nos campos da arte e engenharia – uma graduação dupla em matemática e história da arte e uma graduação em física aplicada. Após tentar projetos de pesquisa nos campos da biologia, bioengenharia, economia teórica e informática teórica, ele encontrou seu lar acadêmico na teoria das cordas.

Durante um tempo, Chitra achou que iria se especializar, mas eventualmente decidiu que não havia futuro na teoria de cordas. Ele então foi à D.E. Shaw Research logo depois de se formar, em 2011, e tem estudado vidros lá desde então.

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A pesquisa feita por Chitra na empresa é não-convencional dentro de uma empresa que já é considerada ortodoxa, de certa forma. Financiada por David Shaw, um cientista da computação que faturou uma fortuna no mercado financeiro com o uso de redes de computador de alta velocidade e que é proprietário de uma empresa de fundo de coberturas chamada D.E. Shaw & Co, também com sede em Nova York. Com uma dose saudável de financiamento privado, os pesquisadores da D.E. Shaw Reserach tem liberdade relativa para buscaram seus interesses intelectuais estilo lobo-solitário. A pesquisa de Chitra, porém, é tida como esotérica até mesmo entre seus colegas, que na maior parte do tempo conduzem estudos para a descoberta de medicamentos.

Chitra crê que existem diversos objetivos em sua pesquisa. Um deles é apoiar a pesquisa experimenta em vidros ao determinar o que acontece em nível molecular. Outro é resolver disputas já antigas sobre a formação do vidro em um campo de pesquisa altamente controverso. Ele também quer explorar a heterogeneidade dinâmica com modelos baseados em átomos de verdade e não com modelos em escala.

Em outro nível, seu trabalho poderia ajudar a melhorar tecnologias ligadas ao vidro, incluindo a fabricação de vidros extremamente resistentes com poucos nanômetros de espessura. Este material poderia ser empregado em fibras óticas de maior banda e nanotecnologia.

Mas talvez o fator que mais motive Chitra seja a oportunidade de descobrir algo completamente novo e inesperado. Ele me disse estar criando um modelo bizarro que não se encaixa totalmente nos parâmetros das atuais teorias sobre o vidro, mas não citou detalhes específicos. "É mais um lance que explica em um nível intuitivo o que sistema meio que parece", foi a vaga descrição que consegui arrancar dele.

Na vida adulta Chitra parece ter mantido muitas das melhores qualidades da infância. Como ocorria na escola de método Montessori que estudou, ele aborda tudo como um quebra-cabeça e sempre está de pé, alternando tarefas porque não consegue ficar quieto.

Ele ainda é o menino de 10 anos que construiu um império de pirataria com a necessidade de fazer as coisas do seu jeito. Mesmo quando gerenciava uma equipe de 30 hackers aos 12 anos, ele queria que seu canal tivesse certa atitude. Enquanto todos os outros canais piratas eram sérios, Chitra tinha uma sala separada para piadas e memes grátis em ASCII. "Afinal, éramos os #warezpunks", disse.

Hoje, o jovem de 25 anos põe seu intelecto de malandro à serviço da pesquisa de vidro e programar supercomputadores, dentre outros projetos. "Ainda quero ser o rei, de um jeito bem infantil", disse.

Tradução: Thiago "Índio" Silva